sábado, 30 de junho de 2012

A palavra na era da imagem

                           (primeiro lugar no Concurso de Redação para professores-Academia Brasileira de
                                                                 Letras-Folha Dirigida-2005)



                         Nossa civilização ocidental pautada no olhar destaca a imagem cada vez mais e parece ofuscar o exercício da palavra. Para que informações sejam veiculadas o mais rapidamente possível, vê-se o texto ameaçado pelo constante limite de expressão. Entretanto, não se pode esquecer que a imagem é substantivo  adjetivá-la é a feliz tarefa da palavra.
                          Escritores ao longo dos anos teem buscado mesclar ao sentido da visão odores e sons muito marcantes proporcionando aos leitores o mergulho num mundo onde o imaginário artístico completa a vida. Os discursos multicoloridos revelam nuances, ambiguidades não percebidas ou solucionadas no cotidiano porque tuteladas, por imposição, pela representação plástica. A palavra liberta o olhar que a imagem dirige; torna-o transitivo. A parceria entre as duas traz para uma mesma cena uma gama de interpretações, porque o discurso está sempre se ultrapassando. O indivíduo, se só exposto à profusão de imagens pode, aturdido, abrir mão do encantamento da descoberta e não realizar todo o potencial a que é chamado dia-a-dia.
                        O texto tem uma forma humana, sua linguagem vem revestida de pele e, por isso, o prazer advindo da leitura nunca se esgotará. Ao contrário, ao lado, da mais alta tecnologia está o fascínio despertado pelo livro quando do toque nas folhas de papel, ao virar das páginas. A relação que se tem com as letras é física. O texto costurado, tecido, dá origem a inúmeras emoções, magicamente definidas. O poder e a força da palavra escrita nunca poderão fenecer, já que esta constitui resultado da necessidade intrínseca a todo indivíduo - comunicar sensações, tornando-as perenes. O equilíbrio que traz a palavra evita o entorpecimento dos outros sentidos,vestindo-os de uma eficiente função significativa e concedendo-lhe consistência. O corpo textual desafia a lógica, acorda a imaginação, convoca o belo e altera a mente dos homens e a cor das coisas. O agradável jogo estabelecdo entre autor e leitor provoca o deslocamento de qualquer pré-concepção e desencadeia um sentimento de deleite diante do mundo. A viagem a que a literatura convida liga o indivíduo a tudo que o cerca.
                       A imagem (na televisão, por exemplo) parece nos aproximar com propriedades estáveis e imediatamente perceptíveis quando, na verdade, a rapidez de sua veiculação a dilui e facilmente pode cair no esquecimento. A escrita  produz e desvenda seus próprios segredos, para iniciar-nos em outros. Juntas, no entanto, podem imprimir e eternizar um efeito, evitando, assim, o encapsulamento de uma ideia e mantendo os indivíduos comprometidos.
                       A atração pela palavra exclui, portanto, toda possibilidade de se tê-la suprimida. O direito à expressão adquirido quando do primeiro uso da escrita e, felizmente, irreversível. Mesmo numa era de intensos avançoes, o espaço do texto estará para sempre garantido pela memória de seus amantes.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

food for thought-special


UMA EXPERIMENTAÇÃO PARA A CRISE


Stella Maria Ferreira
(texto publicado na Revista Garrafa-Faculdade de Letras da UFRJ)


“Foi despojado do diverso um

E dos rostos, que são o que eram antes

Das ruas próximas, hoje distantes (...)

Resta dos livros o que lhe consente

A memória, essa forma de olvido

Que retém o formato, não o sentido,

E que reflete os títulos somente.

O desnível espreita. Cada passo

Pode ser uma queda. Sou o lento

Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não marca sua aurora nem seu ocaso.

É noite. Não há outros (...)”

1


A ‘cegueira física’ de Jorge Luis Borges é metáfora para uma cegueira que se

instala em nosso tempo – de esgotamento de experimentações. As redes das

significações caracterizam-se pelas dualidades múltiplo

x fragmentado e pluralidade x


anulação. Uma limitada utilização do sentido da visão, tão privilegiado, levou-nos a

desconsiderar o que poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que

nos é apresentado, pode haver cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação,

desvios. Ver algo significa ignorar alguma coisa também. Outras opções de percepção

são deixadas de lado. Esta ‘cegueira’ deve ser levada em consideração.

Tomando o século XIX como prefaciador das grandes experimentações que se

instaurariam no século XX, passaremos à verificação dos elementos neutralizadores

deste ímpeto de revolucionar-se observado nos dias de hoje, na chamada pósmodernidade.

Como leitor apaixonado que, no manejo da linha, escolhe a entre-linha,

acompanhamos Heráclito quando diz: “...é à vossa vista curta e não á essência das

coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da

evanescência. Usais o nome das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até

o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira

vez.” ( NIETZSCHE, 2002 , p.40), e desejamos o caminho do diálogo que nos re-situe

nesse espaço disseminado. Espaço que gerou uniformidade e não igualdade; espaço

submerso numa multiplicação de tendências que ao invés de ser experimental, gera

padronização.

Para tanto, tomaremos três textos: o conto

Wakefield de Nathaniel Hawthorne


(1835), o romance

A invenção da solidão de Paul Auster (1988) e o ensaio A muralha e


os livros

de Jorge Luis Borges (1950).


O conto do americano Hawthorne – elogiado por Borges como sendo “um mundo

de castigos enigmáticos e de culpas indecifráveis” (citado em TAVARES, 2005,p.50)

– constitui um exercício de duplicidade do sujeito. Hawthorne apresenta inquietações

que serão explicitadas na proposição nietzschiana de que a verdade estaria onde o

estilo de pensamento disse que ela está. Os disfarces de que o protagonista lança

mão, como elementos estéticos para uma nova identidade, ratificam a idéia de que

todas as nossas orientações são produzidas poeticamente, estruturadas

ficcionalmente. As formas de nosso agir, inclusive o conhecer demonstraram caráter

de produção e, se a realidade é construção, é preciso contar com o surgimento de

mundos muito diferentes. Transferimos um estímulo nervoso para uma imagem, esta

para um som e, finalmente, para um conceito. Através dessas transferências de uma

esfera para outra, as camadas de realidade emergem. Assim, o protagonista que dá

título ao conto, em certa tarde de outubro, despede-se da esposa para uma breve

viagem ao campo, alertando-a que não deve passar de três ou quatro dias.

O narrador, onisciente, o segue e diz: “Devemos apressarmo-nos atrás dele pela

rua, antes que se dissipe sua individualidade e se mescle à grande massa da vida

londrina, onde seria inútil procurá-lo.” (p.52). Fazemos aqui uma pausa no trajeto para

acentuar a apontada insatisfação com a progressiva massificação emanada dos inícios

da Revolução Industrial. Continuamos, agora, com o personagem que adentra um

apartamento que provavelmente já havia reservado para aluguel e, a partir daí, passa

a observar pela janela as conseqüências, para a esposa, de sua travessura: “...ele não

retornará enquanto ela não estiver quase morta de medo”, diz o narrador. Passadas

algumas semanas, começa um movimento de carruagens em frente à casa, sendo

uma delas de um médico: “que deposita seu corpanzil solene, coroado por longa

peruca, à porta da casa.” (p.56) e o auto-exilado sente-se compelido a voltar, mas,

surpreendentemente, não o faz: “Havia inventado (ou por outra, sucedera-lhe) de

apartar-se do mundo – desaparecer – abrindo mão de seu lugar e seus privilégios

junto aos vivos, sem com isso ser admitido entre os mortos.” (p.57). Utiliza-se, de

agora em diante, disfarces para seguir de perto os passos da esposa. Diretor e

roteirista do filme de sua vida, no vigésimo ano de seu desaparecimento pára junto à

casa e avista “através das vidraças da sala do segundo andar, o clarão avermelhado e

o bruxuleio e o brilho intermitente de uma aconchegante lareira. No teto se projeta uma

sombra grotesca da boa Sra. Wakefield” . Ele galga os degraus, bate à porta, que se

abre. O narrador termina assim: “Não seguiremos nosso amigo após transpor a

soleira. Ele já nos proporcionou bastante material para reflexão, parte do qual

emprestará sua sabedoria a uma moral e será moldado numa imagem. Em meio à

aparente confusão de nosso mundo misterioso, os indivíduos estão tão bem ajustados

ao sistema e os sistemas entre si e a um todo, que, ao colocar-se à margem por um

instante, o sujeito expõe-se ao temerário risco de perder para sempre seu lugar.”

(p.59).

Vítima de um aparente encantamento, Wakefield enreda-se em uma teia que o

compele a suspender o tempo linear e manipular seu destino. Em meio a

impossibilidades, vê a oportunidade de de-cidir-se para afirmar sua própria liberdade.

Depreende-se, assim, que só houve movimento, ação, durante os vinte anos de

ausência. Até então, fora prisioneiro de uma existência medíocre, pré-determinada.

Como ‘marginal’ que recusa o mesmo, pelo exercício da imaginação, liberou a

inconsciência das amarras do consciente manipulado e manipulável. Experimentou

seu outro, por isso, pôde voltar à casa calmamente – por mais estranho que possa

parecer, depois de vinte anos de ausência – sem culpa. A casa, silenciosos palco do

estertor de uma existência sem perspectivas era, agora, eloqüentemente, um ‘lugar’,

seu lugar. Os olhos de Wakefield foram abertos a partir da audácia que teve para ouvir

de si a urgência de uma mudança.

A experimentação do personagem toma contornos mais interessantes ao

considerarmos que, segundo Borges, Hawthorne teria imaginado o conto a partir de

certa história lida em um jornal : “Hawthorne lera no jornal ou fingiu, com fins literários,

ter lido no jornal, o caso de um senhor inglês que, sem motivo algum, instalou-se a um

passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte anos

escondido...Quando já o davam por morto...um dia, abriu a porta de casa e

entrou...Hawthorne leu com inquietude o curioso caso e procurou entendê-lo...”

(BORGES,1999 , p. 57).

Consideremos dois pontos: primeiro, uma dúvida intencional que Hawthorne atira

ao leitor sobre ser a base de seu conto um fato real. Isto faz-nos pensar que qualquer

indivíduo comum poderia ter agido como Wakefield. Fez de sua ficção espelho do

sentimento interior de insatisfação do homem da época. Segundo, ao buscar o

entendimento do caso, imagina o homem; sonha a realidade. E este sonho, que é o

conto, nos dá de presente.

Em

A invenção da solidão, Paul Auster apresenta o indivíduo como em um


turbilhão. De início, tenta encontrar a saída e, por fim, sucumbe ao inevitável e tornase

um a mais na multidão confusa, e não mais perplexa. A conseqüência é um vazio e

uma profunda solidão, a que ele se acostuma e aprende a ‘ignorar’.

O autor constrói, assim, uma narrativa labiríntica por meio de fragmentos que, no

exercício da escrita, desvelam uma identidade plural para o homem moderno, tecida

num processo contínuo de descobertas. O ponto de partida escolhido pelo escritorpersonagem

para demonstrar este percurso foi a morte do pai: “um homem morrer

sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é um homem, nos

leva para tão perto da fronteira invisível ente a vida e a morte que não sabemos mais

de que lado estamos. A vida se transforma em morte e é como se essa morte tivesse

possuído essa vida o tempo todo. Morte sem aviso. Em outras palavras: a vida pára. E

pode parar a qualquer momento.” (p.11).

Dividido em duas partes, o romance explora, de início, a conclusão a que chega o

protagonista revirando papéis, fotos e cartas antigas – ‘objetos de um morto” (p.17) de

que tudo o que o pai vivera havia sido uma grande construção e o modo de vida

paterno, aparentemente indiferente, escondia, na verdade, o medo do confronto

consigo mesmo. A imagem do pai era como de alguém sob uma máscara, não porque

desejava ocultar-se, mas porque ela mesma era parte dele: “como nada tinha

importância, ele dava a si mesmo a liberdade de fazer o que bem entendesse...Toda

vez que se sentia pressionado quase a ponto de ter de se revelar, meu pai se

esquivava do aperto contando uma mentira...O que os outros viam quando meu pai se

apresentava diante deles, portanto, não era o meu pai, na verdade, mas uma pessoa

que ele tinha inventado...Ele mesmo permanecia invisível.” (p.23). Pluralidade que

anula a ação no mundo. O protagonista continua seu caminho como em uma cidade

de vidro onde várias imagens se sobressaem, mas a espessura do vidro distorce toda

beleza. A decisão de escrever sua história “em vez de me curar, como pensei que

fosse acontecer, o ato de escrever manteve essa ferida aberta. Algumas vezes,

cheguei até a sentir sua dor concentrada na minha mão direita, como se toda vez que

eu pegasse a caneta e pressionasse a ponta sobre o papel minha mão estivesse

sendo arrancada do braço.” (p.41). Este dilaceramento descrito, no entanto, constitui a

única esperança contra o esquecimento e a fuga pela indiferença. A única maneira de

experimentar saídas ainda é evitar a cicatrização da ferida.

Na segunda parte do livro, intitulada

Livro da Memória , o estilo entrecortado,


recortado, é espelho de seu interior. Percebe-se em um processo irreversível, no

caminho de encontrar-se junto a zonas de escuridão. Sua primeira reação é o

isolamento. E, tendo a escrita como aliada para iluminação, Auster retoma a idéia da

história em movimentos cíclicos e, assim, ‘dentro da baleia’, resgata textos bíblicos,

relatos de sobreviventes e vítimas do holocausto, mitos como o de Édipo e descrições

de pinturas como as de Van Gogh. Este caminho é montagem efervescente de

imagens descontínuas – saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Mundo de

cores e formas para onde o protagonista se leva ou leva a história da família, da

humanidade, experimentando as essências da beleza e do sofrimento humanos – “um

mundo em que tudo é duplo, em que a mesma coisa sempre acontece duas vezes.”

(p.95). As recordações vão surgindo espontâneas, perdidas no meio dos

pensamentos. Na memória, as figuras são construídas para depois serem destruídas,

lugar de transformações constantes onde os eventos se desencadeiam de fora para

dentro e vice-versa. A solidão deve ser re-inventada. Auster deixa clara a idéia ao citar

Pascal: “toda infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar

sossegado no seu quarto.” (p.95).

A aceitação das diferentes identidades presentes em cada um assusta, mas pode

levar à consideração das diversas vozes até então silenciadas. Ser plural é admitir a

insegurança que se insiste em combater, mas que pode constituir força que rejeita e

desconstrói estereótipos. Produto de uma crise finissecular, este homem moderno

apresentado por Auster busca um espaço onde a comunicação se origina. Não há

mais lugar para as ‘certezas’. Auster não se limitou a descrever o impacto do sujeito,

mas convoca os indivíduos a se repensarem como seres livres.

Afinal, o intrigante

A muralha e os livros que Borges, no terno retorno de todas as


coisas, assim inicia: “Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase

infinita muralha chinesa foi aquele primeiro imperador, Che-Huang-Ti, que também

mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas operações –

as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição

da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoa e serem de certo modo

seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me.

Indagar as razões dessa emoção é o fato desta nota...” (p.9). A partir daí, como em um

sonho – tal qual Hawthorne – imagina Che-Huang-Ti e seus motivos: “...Che-Huang-Ti

talvez quisesse suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam” (de ter

condenado a mãe ao desterro por libertinagem) “...Pode ser que o Imperador tenha

tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o

primeiro...Talvez a muralha fosse uma metáfora, Talvez Che-Huang- Ti tenha

condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado,

tão néscia e tão inútil...” (p.10). Fazemos aqui uma pausa para sonhar um destaque ao

caráter volátil do passado para Che-Huang-Ti. Enquanto séculos mais tarde, Auster

lutará para que a memória o ajude a não perder referências, o imperador chinês ‘reescreve’

três mil anos de cronologia ao ordenar a queima dos textos antigos,

produzindo, magicamente, o elixir da imortalidade.

Os experimentos literários apresentados garantem a contínua repetição. O

primeiro sonho, o de Hawthorne, acrescentou maior entendimento aos enigmas

humanos que a literatura, desejando ou não decifrar, imprime inegável selo pictórico. O

segundo, o de Auster, ouve pelo espelho da memória seu destino dedáleo, mas repleto

de sublime esperança. No terceiro, o de Borges, é proposto o seguinte, ao final: “A

música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos

crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos

ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não

se produz, é talvez o fato estético.” (p.11).

Nos dias atuais, parece-nos imposta uma cultura de ócio que inibe a

criatividade; tudo nos é dado prontamente. Na projeção inversa dos séculos XIX e XX,

precisaríamos redescobrir o descontentamento que mobiliza. Há necessidade de um

passo além.

Sonhamos agora nosso sonho; sonho onde formas se repetem e algumas delas

nutriram estas páginas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


AUSTER, P. A invenção da solidão. SP: Companhia das Letras, 1999.

BORGES, J.L. Obras Completas II. SP: Editora Globo, 1999.

FOULCAULT, M. Ditos e escritos III (org. Manoel Barros da Motta). RJ: Editora Forense,

2006.

NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 2002.

TAVARES B. (org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. RJ: Casa da palavra, 2005.

1 BORGES, J.L.O cego in Obras Completas II – p.510 )

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Na meia-noite do coração


na meia-noite do coração em A balada da prisão de  Reading.

                        (texto adaptado de um capítulo de minha tese)

“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve

Morrer também mais de uma morte.” .

                                                                                

         O som metálico de correntes é a música incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo.  Obra prima, universalmente admirada, com três cores predominantes: branco, vermelho e cinza, que acompanham os últimos dias de condenados à forca. Foi iniciado no chalé de Bourgeat em Berneval, França, em 1897, após sua saída da prisão. De todos os poemas por ele confeccionados, mostra-se o mais comovente, o mais carregado de experiência e de sentimento humanos. Em carta inédita de 19 de julho, declara seu propósito:



“La poésie est um art difficile, mais j’aime la plus grande

                                                  part de ce que j’en ai fait jusqu’ici.” .



         O compasso das palavras faz com que acompanhemos o prisioneiro-narrador e  Wilde no banho de sol, nas refeições, no árduo trabalho, na solidão de mil e uma noites sem contos, sem letras, tomadas, por vezes, de fantásticas e sobrenaturais experiências.  Os dois corpos agora são um. Diante do espelho, os rostos podem parecer diferentes, mas a dor os iguala; dobra-se sobre si mesmo e o embalo que conseguiu imprimir, angustia. O cumprimento da sentença poria fim às inúmeras ‘mortes’ enfrentadas a cada dia: viveu mais de uma vida, então “deve morrer também mais de uma morte.” (WILDE, 2003,p. 978). Os versos de um condenado cuja perturbação está no fato de que: “(...)igual a um ano é cada dia, ano de dias infindáveis.” (WILDE, 2003,p. 982). A rima, produz neste ambiente um forte eco, “que no mais fundo do vale das Musas cria sua própria voz e a ela responde; a rima, que em mãos de um verdadeiro artista é não somente um elemento material de beleza métrica, mas um elemento espiritual de pensamento e de paixão, porque desperta novos estados da alma, dá lugar a um ressurgimento de idéias e abre, com sua doçura e com a sugestão de sonoridade, portas de ouro que a própria imaginação não conseguiu abrir(...)” (WILDE, 2003,p.1114). O chamado da Balada não segue o apelo das baladas tradicionais de rua; nela, a voz de Wilde é angustiada e determinante para que o poema fosse recebido com elogios.

O esteta, prisioneiro C3.3, constata, inversamente ao bardo Shakespeare,  que os homens matam a quem amam (Bassanio pergunta a Shylock: ‘Os homens matam aquilo que não amam?’)e matou-se, ao cair nas teias de uma justiça que desprezava, para renascer da lama e do lodo. Um dos prisioneiros do poema matou a mulher amada e morreria – não que esse fosse o destino de todos os criminosos no mundo, mas certamente o seu ( “já não usava a túnica vermelha/ Pois sangue e vinho são vermelhos;/ E sangue e vinho havia em suas mãos/ Quando co’a morta o encontraram,/ A pobre mulher morta a quem amava/ E assassinara no seu leito(...)./Uns matam seu amor, quando são jovens, Outros quando velhos estão(...)Uns matam a chorar, com muitas lágrimas, Outros sem mesmo suspirar../.Mas nem todos hão de morrer(...)”- WILDE, 2003,p. 969/970) .

No mesmo ano de 1898, após sua liberação, escreve ao diretor do Daily Chronicle “na qualidade de homem que conhece a vida em uma prisão inglesa por experiência pessoal(...)” (WILDE,2003,p.1446) sobre as condições e possíveis reformas no sistema presidiário, pois, uma das coisas mais trágicas da vida na prisão é petrificar o coração humano. Os sentimentos e o afeto natural, como todos os demais, necessitam nutrir-se de algo, porque morrem facilmente de inanição...” (WILDE, 2003,p.1449). Assim, o condenado  narrador  da Balada, sucumbe ao irresistível desejo de morrer diante da aterradora solidão, pois “(...) nunca se aproxima voz humana/ Para dizer meiga palavra;/ Os olhos que da porta nos vigiam/ São duros e sem compaixão(...)” (WILDE, 2003,p.983). Esperava ansioso o derradeiro véu. Haveria, assim, paz? Não sabia. O desespero interior que o corroera por dentro só deixara brecha para esperança na morte: “A água salobra que bebemos lenta/ Com lodo, escorre, repugnante;/ E o amargo pão que pesam em balanças/ Está cheio de cal e gesso/ E de olhar desvairado insone vaga/ O Sono o Tempo a implorar.” (WILDE, 2003,p.983). Indiferente a tudo a seu redor – assim aprendera com os anos de confinamento : “E assim enferrujamos a corrente/ Da Vida, sós e degradados;/ Alguns praguejam, outros homens choram,/ E outros nem um gemido dão(...)” (WILDE, 2003,p.983) – aguarda contrito “as mãos sagradas que levaram/ O Bom Ladrão ao Paraíso(...)” (WILDE, 2003,p.984). O narrador está entregue a profunda desilusão, de onde se pergunta insistentemente se  poderá renascer em outra vida. Ele e seus companheiros, porém, “Esquecidos de que grande ou pequeno/ Fora o mal por nós praticado, olhávamos com triste olhar de espanto/ O homem à forca condenado/ E era estranho que o véssemos passar/ Alegre e leve a caminhar /E era estranho que o véssemos olhando/ Tão ansioso a luz do dia,/ E era estranho pensar que ele tivvesse /Tamanha dívida a pagar.” (WILDE, 2003,p.972).  O condenado, diferentemente dos outros – até do narrador- abraçara o destino com estranha alegria; superara o sofrimento do erro e sentia ser a morte a libertação dele que matara a quem amara. O impacto deste comportamento do companheiro foi tão grande que tem, certa noite – que podia ser qualquer uma ou todas - uma visão estarrecedora : a dança de criaturas imaginadas que, moviam-se loucamente e pareciam mais vivas e reais que ele – de corpo e alma agrilhoados e, aqui,  o efeito hipnótico da dança – marcadamente assustadora e macabra – “(...)E rápidos passavam, deslizavam,/ Como na névoa os viajantes; /Imitavam a lua numa dança/ De giro e curvas delicados,/ E com passo solene e graça vil /Ao sabá chegavam as almas. /Passar vimos com careta e momos,/ Quais frágeis sombras de mãos dadas,/ Em tropel fantasmal rodopiando/ Dançaram a sarabanda:/ Os danados grotescos como o vento/ Na areia traçam arabescos!/ Com piruetas de marionetes/ Em pontas de pé saltitavam;/ Mas as plantas do Medo retiniam/ Naquela horrenda mascarada/ E cantavam bem alto e longamente(...)” (WILDE, 2003,p.976). O texto, portanto, guarda o elemento de sedução da morte tão peculiar nos decadentistas. A idéia, no entanto, fica ainda mais significativa quando, adiante, descrevendo o dia de trabalho, tece uma comparação: “A girar pelo pátio, lentamente,/ Éramos loucos em parada!(...)E a cabeça rapada e pés de chumbo/ Formam alegre mascarada./ Cordas alcatroadas esfiávamos/ Com unhas roídas a sangrar;/ Esfregávamos porta, co chão limpávamos, /Púnhamos grades a luzir; /Aos grupos, o soalho ensaboávamos,/ Chocando baldes com barulho(...)” (WILDE, 2003,p.974). Wilde convida mais uma vez para essa manifestação artística, recurso para que sentimentos sejam expostos. Desta vez, não marcada pela sedução que pode levar à morte, como em Salomé, mas pela morbidez, como se o personagem experimentasse o pesadelo anterior à fatídica visita da morte.

         Enfim, este serão lúgubre chega ao fim, o galo canta, as formas tortuosas se recolhem nos recantos das celas, deslizarão como fantasmas. Marionetes conduzirão o hediondo mascarado e cantarão para despertar o condenado. Enfim a sombra das barras se perfila sobre o muro caiado; o silêncio reina; o hálito gelado da Morte enche a prisão. Não há ofício nesse dia. Os detentos permanecem fechados até o meio-dia. Aí então, os guardas com suas chaves abririam cada cela, os prisioneiros desceriam pesadamente a escada de ferro. O passeio os faria notar a cal no sapato dos guardas: o trabalho estava feito, a horrível tarefa cumprida. Na prisão de Reading ficou o cadáver de um miserável devorado pela cal. Este túmulo de infâmia não tem nome.

A perfeição da forma do poema se junta às emoções sugeridas pela vida na prisão - o pavor, a piedade, o desespero, a indignação – ali desenvolvidas com uma simplicidade trágica.


      Wilde, condenado como o outro a morte do banimento, das profundezas de sua dor, desejou ainda alguns passos, algumas doces palavras ainda. Os duplos se encontram na memória do esteta. Dois condenados, o mesmo temor, a mesma humilhação, a mesma escuridão -  diferentes? Um dia se cruzam: “(...)não na noite santa/ Mas foi no dia, que vergonha(...)” (WILDE, 2003,p.973); havia morrido o companheiro e “(...)Um novo muro da prisão nos circundava/ A nós dois míseros proscritos; O mundo nos havia repelido(...)” (WILDE, 2003,p.973); o outro, porém, encontrara a paz da morte.

         Ao prisioneiro da Balada “de vermelho o homem que lê a Lei /Deu-lhe, de vida, três semanas,/ Só três semanas para lhe curar/ A alma da luta de sua alma,/ E limpar de qualquer mancha de sangue/ A mão que a faca segurava.” (WILDE, 2003,p.984). A Wilde foram dados cerca de três anos e, num colóquio nomeado Reunião em Paris, ciclicamente conclui: “Por  muito que nos esforcemos, nunca chegaremos a alcançar, por trás das aparências das coisas, a sua realidade. E a razão terrível de tudo isto talvez seja a seguinte: que não existe realidade alguma nas coisas, se são separadas de sua aparência.” (WILDE, 2003,p.1453).Se assim não fosse, como entender um condenado tão surpreendentemente feliz com seu destino, contemplando “(...) com tão embevecido olhar, Aquela pequenina tenda azul/ Que os presos chamam de firmamento...” (WILDE, 2003,p.969)(...)” “ E cada nuvem errante, que arrastava/ No ar seus desmanchados velos. /As mãos não retorcia como fazem /Aqueles néscios que pretendem,/ Na caverna do negro Desespero/ Erguer a Esperança enganosa,/ O sol ficava a contemplar, apenas,/ Sorvendo a brisa da manhã.” (WILDE, 2003,p.971). A tristeza da reclusão transforma-se na alegria do fim.





Richard Aldington em The Portable Oscar Wilde cita as seguintes palavras ditas por Wilde a André Gide acerca da leitura de livros na prisão:



“I thought, at first, that what would please me most would be Greek

literature, so I asked for Sophocles, but I could not get a relish for it. Then I thought of the Fathers of the Church, but I found them equally uninteresting. And suddenly I thought of Dante. Oh! Dante. I read Dante every day, in Italian, and all through, but neither the Purgatorio nor the Paradiso seemed written for me. It was his Inferno above all that I read; how could I help liking it? Cannot you guess? Hell, we were in it – Hell, that was prison.” .



     Wilde foi libertado em maio de 1897 e diria que se tivesse sido libertado um pouco antes teria deixado o lugar sentindo por ele e seus funcionários um ódio amargo que teria envenenado sua vida. Agora relembra as grandes bondades que quase todos tiveram por ele, no último ano (o diretor havia sido trocado e fora permitido ao esteta a leitura de jornais e uma alimentação mais diferenciada).  

O prisioneiro C3.3 foi a máscara de ferro que mudou sua fisionomia, fez a cabeça tombar, mas redobrou o amor à vida. Desse conflito chegou à harmonia da luz e da treva; ao se colocar meditativamente acima das consideráveis conseqüências da dor, gerou mais uma vez a obra de arte. Terminado o poema, Ross tentou que uma grande editora aceitasse publicá-lo, mas só conseguiu com a livraria-alfarrabista Smithers, especialista em livros de venda clandestina. Diz Wilde a Ross, em carta:



 “(...)C’est une sortr de choca troce pour moi, de constater qu’il

s’élève une telle barrière entre moi et lê public. Il fault que j’examine à nouveau ma situation, car je ne puis continuer à vivre ici sur lê pied actuel, bien que je sache que changer as vie est une chose vaine :on tourne et tourne simplement dans le cercle de sa propre personnalité.” .



      Em 13 de fevereiro, é publicada a primeira edição composta de 30 exemplares ao preço de um guinéu em papel Japão e de 800 exemplares sobre papel Holanda vendidos por meia-coroa.


     Os 2000 exemplares da sétima edição impressos em 23 de julho de 1899 trazem na capa sob o número C3.3 o nome de Oscar Wilde entre parênteses. Em seguida, Leonard Smithers vai à falência. No entanto, continua a imprimir, clandestinamente, edições da Balada – mesmo após a morte de Wilde.

Em 1913,  uma importante edição em língua francesa foi precedida de um relato histórico acerca das circunstâncias que permearam a composição e publicação do poema em língua francesa na Coleção Autores estrangeiros de “Mercure de France”. O texto em inglês foi colocado ao lado da tradução no volume à venda. A principal razão seria oferecer um número de páginas razoável que justificasse o alto preço, o que preocupou Smithers, pela concorrência.  A grande novidade foi ser ilustrada – o artista deveria interpretar a expressão tragicamente simbólica do destino humano, este canto de dor vindo das profundezas da pior miséria - e Gabriel Daragnés foi o escolhido. Wilde havia conhecido as alegrias e o orgulho do sucesso, o futuro lhe ofertara a miragem da celebridade, das honras e da glória, mas chegou à imortalidade por uma estrada imprevista. Amante do desenho, Wilde imaginara a composição, o formato, a encadernação e fazia disso um jogo no qual os recursos de seu gosto delicado e de sua faustosa imaginação eram infinitos. O esteta sabia que seu poema não era uma obra de circunstância, mas inspirado por um suplício físico e moral de dois anos; por isso, estava destinado a co-mover tantos quantos o lessem. Conta D-Dravray, o tradutor francês, da relutância de Wilde em transpor o poema para esta língua. Ele sentia algum embaraço para justificar sua recusa, tentando dissimular com um sorriso contido, uma faísca no olhar; parecia não entender que D-Davray pensava numa versão em prosa. Entendida a intenção, disse que o mérito do poema residia em grande parte na sua forma e sem a música do verso não restaria nada. Começou por desafiá-lo a traduzir com perfeição e esmero passagens de Keats, Racine, Shakespeare, Coleridge, Shelley e William Morris, torturando a memória  do tradutor. Continua D-Davray que Wilde parecia escutá-lo com um ar ao mesmo tempo divertido e surpreso. O último argumento para convencer Wilde foi fazê-lo observar que os próprios poetas ao traduzirem poetas, haviam recorrido à prosa, por exemplo, Mallarmé com sua versão do Corvo de Allan Poe. Sentiram a necessidade de escapar aos entraves e às restrições da métrica. E termina dizendo que o próprio Wilde teve a experiência, já que sua Salomé é um poema em prosa. Gargalhando, o esteta se dá por vencido e ambos passam a trabalhar na primeira versão, pronta em poucos dias, com cada palavra pensada, cada frase lida em voz alta, relida, silabada, com todas as entonações possíveis. Os detalhes sobre a prisão desconhecidos pelo tradutor eram explicados com toda boa vontade por Wilde, que reconhecia o esforço de D-Davray, mas repetia que faltava a ele ter estado em uma prisão, e inglesa! Até lá, não possuiria uma versão completa e a tradução estaria imperfeita. E sobre isto, certo dia declara num tom solene estar tudo resolvido para que D-Davray passasse uma temporada em uma cela na prisão de Reading, por Wilde alugada. O tradutor estremece e diverte o esteta. A partir da jocosa sugestão passa a se mostrar indulgente e bem-humorado. D-Davray termina o relato desculpando-se por entrar em cena, mas a intenção foi evocar a luminosa e inesquecível figura do poeta. É preciso ler, reler e descobrir novas maneiras de admirar este raro exemplo de harmonia entre o artista e o poeta . Com a Balada, deixa de ser o Sirius  – estrela mais brilhante do céu, da constelação do Grande Cão – da comédia irônica, atitude ensaiada em De Profundis (ainda escrita no cárcere). Acolhe a tragédia com mais veemência.
A Balada é fruto do martírio; visa a eternidade. E verdadeiramente a atingiu.

domingo, 24 de junho de 2012

Dedicatória


  (texto adaptado do publicado pela Revista  Garrafa, da Faculdade de Letras da UFRJ)
                                                                  Por Stella Maria Ferreira

           As linhas escarlates e serpentinas que se seguem deslizam pelo papel

para destacar o traçado de palavras que comporta sinuosidades

desconcertantes de contraditória maestria. Este é, de fato, um elogio dirigido

ao leitor atento à música das letras, cujos passos rejeitem a monotonia; leitor

que se abandona “com toda essa alegria serena e segura que a gente goza

somente quando captou algo que os séculos não podem enfraquecer” (WILDE,

2003, p.1260); leitor para quem a vida real “é com frequência a que ele não

vive e podem ser tecidas belas poesias como se fossem ricos fios de

brilhantes sedas em múltiplos desenhos, em numerosos modelos,

maravilhosos e diferentes de todos.”(WILDE, 2003, p.1260); leitor que ama a

obra de arte pelo que ela é, fatalmente incompreensível.

              Em 30 de novembro de 1900 o irlandês Oscar Wilde morreu. Nasce neste

instante o texto, alimentado por ininterruptos enigmas, que ansiava por colimar

mentes adormecidas. Texto inteiramente dedicado a este leitor que, de posse

do segredo do prazer duradouro, “abandonará sem pesar muitas coisas que

em outro tempo tinham sido preciosas para ele.” (WILDE, 2003, p.1261).A

admiração por esta escrita peregrina de Wilde – montra de ironia, perversão e

ternura – se revela na pura e inusitada consagração de um artista à Arte.

Na escolha das cores, na imobilidade das personagens, nos provocantes

epigramas, na crítica ferina, na tristeza contida, na incontestável alegria, o

amante do paradoxo aceitou da existência o lado luminoso sem renegar o

sombrio. A chave do labirinto saltou-lhe das mãos e a Arte, sua musa e guia,

concedeu-lhe uma eterna e impressionante capacidade de sonhar.

Desconsiderando tempo e espaço – numa repulsa às glórias da ação -

apostou no ócio como facilitador do exercício do pensamento que procura

trazer de volta à individualidade o seu lugar. A veemente temática do Belo,

no reconhecimento das instâncias cotidianas, libertaria a expressão.

              Sob a máscara da excelência da produção ficava cada vez mais retida a

identidade criadora. A consciência, impossibilitada de fixar seu domínio, se

veria convidada ao repouso da incerteza. A leitura outra para este corpo

comunicaria o incognoscível.Concentrado em si mesmo, percebeu-se em luta

inevitável com o ‘mundo real’. A tranquilidade, porém, foi sua marca, já que

garantira a completitude de si ao decidir-se pela construção de um mundo

poético, multiforme, fruto da improvisação, com a superioridade absoluta do

inconsciente. Recorrendo à melodia interior, banhada de mistério, opera uma

transformação radical questionando toda solidez. O fixo deveria ser usurpado;

a solução residia na aparência. Lembra-nos Foucault que “o saber não é feito

para compreender; ele é feito para cortar”.

               Aos olhos imaginativos de Wilde pululavam diversas máscaras que

objetivariam um encontro com os outros ‘eus’. Seus ‘eus’ e de tantos quantos

se arriscassem no mergulho. Ocultando o rosto por meio deste artifício,

poderiam ser reveladas facetas da personalidade. A superficialidade

promoveria profundas e marcantes mudanças de comportamento para aqueles

que se quisessem livres dos grilhões de uma vida óbvia. Para uma época de

‘certezas’, só a opção pelo obscuro, pelo disforme, levaria os sentidos ao

completo exercício. Visão, olfato, audição e tato, todos a serviço da Arte. E ela,

agradecida, possibilitaria que aromas fossem vistos, sons fossem tocados e

cores exalassem perfumes exóticos num louco e vertiginoso bailado.

Este discurso ‘alternativo’ tornaria a percepção mais extensa e intensa a

partir da exaltação do efêmero. Oscar Wilde re-traduziu-se e foi banido da vida

ordinária. Buscou na auto-superação a grandeza possível do humano e cada

porção de seu organismo formou o retrato de uma vida que se sabia desde

sempre artística. A rebeldia deste corpo marcado pela estranheza acompanhou

e executou o destino de cada personagem de sua vasta obra confirmando o

princípio de Beleza “pelo qual as sombras inconstantes de sua existência são

captadas no momento mais fugaz e fixadas perduravelmente.” (WILDE, 2003,

p.1261). A extraordinária simplicidade levaria olhos míopes à cegueira,

enquanto ele se dirigia a passos largos em direção ao Sol, tal qual o mitológico

Ícaro.

               Ignorando o tempo da natureza, irrequieto, buscou vivenciar experiências

de séculos anteriores – exatamente como seu Dorian Gray define a ‘ação’ do

anti-herói Des Esseintes.Para tanto, olhou tudo e a ele se revelaram

diferentes mundos, os que podia ver e os que uma memória encantada

desnudava. Se aos olhos até então só era permitido ver o que estavam

treinados a ver, Wilde admitiu plena atuação das forças imaginativas. Os

espaços visitados perderam suas fronteiras geográficas para, unidos, formarem

o palco ideal para um super-artista, um artista de superação de limites. O efeito

hipnótico de sua escrita permite ao leitor caminhar por entre o luxo e o

escombro, o digno e o ignóbil, a evidência dos salões e o mistério da rua. Cada

pensamento expresso apresentava um capítulo sempre no tempo-presente. Da

glória dos teatros passando pela meia-noite do coração na Prisão de Reading

até o quase ostracismo dos últimos anos entendeu que precisava manter-se

atento para inventar-se constantemente – o que lhe permitiria estar no local

para onde queria transportar seu texto. Escalou o zênite de cada dia entre a

aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito era o infinito.

                    Neste abandono às impressões, chegou ao amor absoluto pela arte, pois,

“quem não necessita da arte em tudo, dela não necessita para nada” (WILDE,

2003, p.1019), Daí ter contagiado – e ainda contagiar – inúmeros leitores em

todo o mundo. Ao longo dos anos, elegeu discípulos que, como ele, transitam

com a imaginação por lugares maravilhosos – reais, porque literários,

garantindo o eterno retorno deste corpo-viajante.

                 Oscar Wilde existe agora em uma inacreditável gama de imagens, traços,

pedaços de identificações desvelada a cada leitura; ele continua a convocar o

leitor para ser não o que os outros são, mas tudo o que pode ser. Esta foi a

dedicatória esculpida por indomável artista para o leitor no texto definitivo que

foi sua vida.



.

do Guardador de existências

                                                          Persuasão
                                                          Palavras, ideias
                                                          Delicadamente introduzidas
                                                          Discurso de jogo
                                                          Nos salões da Inglaterra vitoriana
                                                          Jane Austen dribla desencantos
                                                          Escrita límpida:
                                                          Desconcertante
                                                          Orgulhosa, sensível
                                                          Sem preconceito,
                                                          Racional.
                                                          Heroína que brilha
                                                          No baile da literatura
                                                          Desafiando
                                                          Conquistando.

Chá literário II- "O feijão e o sonho"


                      Fernando Pessoa em Ideias estéticas faz duas considerações a partir das quais examinaremos a figura de Campos Lara, protagonista de O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Diz o gênio português:"o maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho" e ainda, "a libertação é uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos".
                     O feijão e o sonho, publicado em 1938, traz Campos Lara como arquétipo do homem das letras, do homem do perene exercício do pensamento - e, por isso, incompreendido pelo soutros, envolvidos nas preocupações diárias, em luta pela sobrevivência. Campos Lara não é homem de ação - ele pesquisa, pondera, cria analogias, descortina segredos da natureza e dribla a efetiva ação. Ele ascende interiormente, o que para os outros constitui escândalo. O jeito sonhador que encantou e conquistou Maria Rosa levou-a ao embaraço e à amargura. As correntes que prendem Campos Lara são as da música de seus versos - doces grilhões. À força do amor, é claro, o casal ultrapassa dificuldades e a harmonia se estabelece. No entanto, fica para o leitor a indagação do impacto da obra artística na vida. Cabe ao ser humano - obra de arte por excelência - encontrar o equilíbrio que faça com que,  em meio às exigências da vida, ainda possa encontrar no deserto interior o lugar para o inesperado, o lugar do texto.







                                     (Texto a partir de uma pergunta feita por Elisabeth Pinto)O

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Food for thought V

  Sobre Shakespeare, diz Fernando Pessoa em suas Ideias estéticas:


                   "Sua intuição, a maior que já houve, que via claro através de um pensamento e exprimia-o como se o próprio pensamento falasse, vivendo uma vida alheia até a seu sangue e sua carne e falando como o próprio homem jamais pôde ter feito; seu poder de observação, reunindo um todo num só aspecto de importância primacial; sua habilidade prática nascida de sua compreensão das coisas(...).".


                          Shakespeare tem sua genialidade redescoberta  cada dia por milhares de leitores, ávidos.

Oscar Wilde- por quê? (parte da introdução de minha tese)


 PRIMEIRAS PALAVRAS


    
   

Muito foi dito e escrito sobre Oscar Wilde, e cada máscara coube-lhe com perfeição. Escolhemos, aqui, mascararmo-nos e adentrar em seu labirinto – assumindo o risco de nos perdermos para sempre – a fim de experimentar sua ousada escrita.

Nosso percurso não segue uma lógica: é movimento inquietante que parece ora nos levar para frente ora fazer-nos retroceder! No entanto, é só progressão e nunca fracasso ou decepção. O alvo é o infinito – a que não se chega, porque se pudéssemos fazê-lo, não mais o seria. Porém, não residiria aí a resposta para a ‘felicidade’? Não é o calor da busca que impulsiona e faz com que nos sintamos tons de eternidade?! Buscar já não é uma forma de conhecer?

Começamos em movimento espiral pelo centro por ele escolhido: a obra de arte a partir da qual se viveria sob modelos supra-humanos. Por ela e nela nos moveremos daqui por diante, como a Alice de Carroll: às vezes, temerosos, presos ao que pensamos ser seguro, mas vertiginosamente do centro para a periferia e vice-versa, sempre para cima. Sentimo-nos seus ‘novatos eleitos’, mas sabemos que, para o sermos, de fato, precisamos poetizar-nos, deixando que o esteta nos conduza. A condição, no primeiro momento, é deixarmo-nos ser, sorvendo suas idéias com atenção, para além das cortinas tecidas pela razão. O esteta guia nossos primeiros passos; depois parece abandonar-nos. Sua figura, central, recua cada vez mais do possível lugar de uma revelação. Sabe que a chave que desarma a aventura esboça outros enigmas e se diverte.

Adentramos, assim, seu mundo, mas, sem sairmos de nós próprios, narrando, destarte, as aventuras de nossas almas nos seios das obras. Afinal, acreditamos que para nos conhecermos, precisamos renunciar ao que imaginamos de nossa individualidade.Seguimos esse audacioso mestre da iluminação em silencioso andar pelo mutável.

Enamorado da filosofia shopenhauriana, por volta do verão de 1876, em troca de idéias com a mãe2 , acreditamos ter-se voltado para a alegria a Nietzsche, rejeitando a auto-anulação da vontade e a mortificação dos sentidos passando por entre lutas e paixões, aventuras e perigos. Se a vontade é fonte de todo sofrimento, só por ela, compondo-se pela ruptura, exercitaria a liberdade poética. Como diz Michel Foucault:



  “Após Zaratustra, o retorno da filosofia-teatro; não absolutamente reflexão sobre o  teatro;  não  absolutamente teatro  prenhe de  significações. Mas a filosofia tornada cena,  personagens, signos, repetição de um acontecimento  único e que jamais se reproduz.”



         À medida que nos embrenhamos em suas paisagens, o esteta sorri-nos.

E, como aqui tudo é possível, voamos para uma visão panorâmica e constatamos, sem surpresa, ser tudo um grande livro - tema recorrente: a obra literária como ponto de convergência de um labirinto. Seguimos no livro – como num jogo de liga-pontos – em que a imagem de um rosto é traçada em cada capítulo, para logo adiante desaparecer; cada página contendo elementos representativos de sua obra. Escolhidos por nós? Não sabemos mais. Diverte-se o trocista. Desvendar seus segredos, seus enigmas, classificá-lo seria uma segunda morte.

Este trabalho pode definir e explicar as várias impressões recebidas da obra de arte, entretanto, a escolha buscou ser a de coincidir com o que nela há de único e inexprimível. A obra diz e esconde, faz-se e nunca está feita porque exige perspectivismo Oscar Wilde não se resumiu a sua obra e, sim, resumiu-se nela. Apesar de parecer sempre ‘preencher’,‘ornamentar’ as narrativas por inteiro, deixa espaços em branco à espera. Obra irreal como um tapete persa; força de oralidade numa escrita que não se cristaliza porque se sabe recebida de maneiras diversas. O interesse de Wilde estava em como seu público poderia ser afetado e afetar as histórias – que poderiam, assim, ser recriadas indefinidamente.

         Projetando-se como mergulhador délio, em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou os instantes de pouco mais de quarenta anos, passou a experimentar a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão - “não há verdade comparável com a dor e há momentos em que penso que a dor é a única verdade possível(...) da dor que surgiram os mundos e sempre houve sofrimento ao nascer uma criança ou uma estrela(...)” (WILDE, 2003, p.1396). Entretanto, refuta a renúncia ao mundo; liberdade que viria de outra constatação: “o amor, qualquer que seja sua categoria(...)” (WILDE, 2003, p.1397). “Compreendi que a única coisa que poderia fazer era aceitar Tudo. Desde então, por estranho que pareça, tenho sido mais feliz(...)” (WILDE, 2003, p.1402).Percebeu que cada ato escolhido de vida importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas; não sofreu pelo que não viveu. Esta adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra, “ (...)uma plena memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.  (WILDE, 2003, p.1413). É inegável o impacto schopenhauriano e o surpreendente ultrapassamento. Destaca Joseph Pearce em The Unmasking of Oscar Wilde que, em carta à mãe, Wilde sintetizara a questão do pessimismo naquele filósofo, dizendo que ele acreditava que toda a humanidade deveria se encaminhar para o mar e deixar o mundo; o problema era que, invariavelmente, furtivos elementos se esconderiam, deixados para trás, e povoariam o mundo novamente. Tem-se, então, uma clara oposição entre o trágico como elemento fundador da existência humana e a seriedade da reflexão acerca das dores da vida. Para ser o homem que buscou em tudo a superação – um super-homem para um super-tempo -,  colocou-se ao lado de outras pessoas, conseguindo um vivenciamento de si como outro. Esteticamente, na categoria de outro, alcança o esbanjamento interior, mas não solitário, do corpo. Rejeita a resignação, pois se assim não fosse se negaria como obra de arte.


 Alegria, essa satisfação incoerente, força de superfície que cresce do conhecimento do caráter trágico da vida e que, por isso, permite uma profundidade outra; força que capacita para um saber alquímico.

   
             

         O chão falseia, sentimo-nos invadidos pelo simulacro, com o mundo desrealizado à nossa volta. O espaço sulcado exige a conformidade do corpo – ora alargando-o, ora encolhendo-o. Pergunta-nos se vacilamos. Não! Como estagnar ao sol se somos do tamanho do que vemos! 9

Participamos, agora, da mesma viagem por ele empreendida, partilhando do fascínio que esta escrita que se quis e se viu condensadora de sentimentos e atitudes suscitou, sem, contudo, estabelecer níveis ou constituir valor. Sabemos não ser possível fundir-nos a ele  para não deixar escapar o acontecimento que foi sua vida. Só queremos (como ele o quis) parecer ser mais do que somos na realidade; não podemos ver nossa presença genuína - efetivamente nunca acreditamos até o fim que somos apenas este aqui e agora.Ele escolheu refletir seus mestres.Com a vida reconstruída, neste mundo visível, teve rostos ímpares em toda a sua plenitude. Criou um todo estético que permitiu ao contemplador uma co-vivência.

Como leitores, obedecemos, somos ensinados, provocados, irritados Lutamos com a obra, contornando-a, somos vencidos pela letra que ordena. A palavra acorda quando o livro é escolhido e atualiza-se, age, para de novo sumir. Se a letra passa, nós, os leitores, ficamos, alterados por ela. Diz Elysio de Carvalho – admirador de Wilde e um declarado ‘nietzschiano’ em Esplendor e decadência da sociedade brasileira:



        “a vida tem de fazer-se, como  a  composição de um poema

         ou de um quadro, é arranjada por um artista, como se faz uma

         obra de arte(...)” .



Nossa tentação aqui foi a de juntar às obras a nossa leitura no embalo da ilusão de um criador em segundo grau.Aceitamos o convite feito no prefácio de O retrato de Dorian Gray e buscamos o que há sob a superfície – conscientes do perigo de que a arte espelha a nós, espectadores, e não à vida:a nós, múltiplos e mutáveis Esculpimos, fixamos algumas perspectivas pelas obras que parecem mundos autônomos, instintivamente procurando nelas nossos traços.  Aprendemos, então, que na busca pelo significado das obras, refletimos, na verdade, sobre o porquê da necessidade desta busca. Encaramos o fato de que o percurso nos torna diferentes e não as conclusões a que possamos chegar.

A obra artística de Wilde nos escolheu para confundir nossas certezas, questionar nossos limites. A impressão que isso nos causa? Seu efeito, seu prazer? Percebermos que, vivendo na idéia de que não existimos em toda a nossa potencialidade, levamos a eterna esperança na permanente possibilidade do milagre interior de um nascimento,

Como nos lembra Foucault, para sonhar não é preciso fechar os olhos e sim, ler A vida quando estamos despertos não dispõe das mesmas interpretações que se nos apresentam na vida de sonho; é refreada, uma linguagem convencional, com juízos morais,limites e a eleição do ‘essencial’. Essas avaliações, de fato, escondem um desconhecido onde estranhos instintos esperam por serem saciados. Viver é imaginar, disseram Wilde e Nietzsche em várias ocasiões. E o esteta nos aconselha a deixar a língua falar e não tentar dominá-la.

Sonhamos, assim, nosso sonho, em que as difusas formas, repetidamente, nutriram estas páginas.  Nada nos parece ser tão nós mesmos.






Esta é parte do capítulo introdutório de minha tese.










mais Guardador

                              Aconchego-me no livro
                              Não a seu lado
                              Dentro dele
                              Temo, como Borges, que as letras se embaralhem à noite
                              Salvo-as da confusão, então.
                              São brincalhonas e prendem-se em meus dedos
                              Sacudo-as rapidamente de volta
                              Um aroma inebriante se destaca no instante
                              Suspense, o drama se instala
                              O final da história avança
                              Os passos dos meus olhos, sem descanso
                              Mas,  se ofim chegar, o que fazer a seguir?
                              Aconchego-me na folha novamente
                              Pressa, para quê?
                              Releio as partes mais queridas
                              Volto ao suspense
                              Espero pelo inusitado
                              Um ardor queima-me os olhos
                              Agora, não há como parar
                              Resisto, sem êxito
                              Se a história acabar...
                              "Escreva você um novo capítulo"
                               Não sei se poderia
                               Discuto com a voz interior
                               "Louco!"
                               Sorrio
                               Volto à última página
                               Tremo,
                               Fim.
                               "Continue". O lápis à mão.
                               Pois bem,
                               Capítulo 2.
           

Qual sua personagem favorita? II

O Rouxinol... O Rouxinol e a Rosa é um adorável conto infantil do querido Oscar Wilde. O pássaro tão cantado pelos poetas personifica um ve...