sábado, 16 de junho de 2012

Wilde V

                                   
                                                  Em Salomé

                                              (parte adaptada de minha tese)

Exotista, Wilde vê na Antiguidade cenário ideal para o deleite dos sentidos42  e, despreocupado com a exatidão histórica, faz desfilar em uma peça  figuras caricaturais, colecionadoras das emoções mais profundas do ser humano. Assim, abusou na confecção não de indivíduos, mas de máscaras, uma generalidade alegórica para caracterizar uma época de cores voláteis até o invisível.

         Intui, assim, uma realidade de fundo sensual, de “malignidade mefistofélica” , como disse Mario Praz, presenteando-nos, em 1893, com Salomé. Opta por escrever a peça originalmente em francês. Sobre a decisão por esta outra língua diz Philippe Julian em Oscar Wilde:



“Oscar had many causes for liking France. First, literary reasons: he saw himself as a character of Balzac, he revered Baudelaire, he had heard of Mallarmé, and the academic poets Hérédia and Leconte de Lisle had immense prestige in his eyes. Decadent poets such as Verlaine had more talent then their English counterparts(...)Orientated towards literature as much as fashion, the theatre also was more brilliant than in London(...)” .



A recusa em escrever na língua inglesa - que, gramaticalmente, não distingue gênero - já traz a insinuação de uma novidade, de “tocar esse novo instrumento, para ver se podia fazer dele algo de belo.” (WILDE, 2003, p. 31). Como o pintor  a quem faltassem as mãos e quisesse exprimir pelo canto a imagem que tem na mente, como diz Nietzsche em Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral 46, vislumbrava um futuro esteticamente preparado para ostentar o notável: uma nova linguagem. A peça, de potência trágica, em um ato, no espaço de vinte e quatro horas (nictêmero), seria o microcosmo do mundo ; mundo de desejo desgovernado, caótico, descontrolado. Nele desfilam um núbio: “Os deuses de minha pátria gostam muito de sangue. Duas vezes por ano sacrificamos a eles rapazes e moças; cinqüenta rapazes e cem moças(...)” (WILDE, 2003,p.614) assim como, segundo Salomé, “gregos de Esmirna com faces e olhos pintados e cabelos riçados em espiral, e egípcios taciturnos e sutis com suas compridas unhas de jade e seus mantos avermelhados, e romanos brutais e grosseiros com sua rude linguagem” (WILDE, 2003,p.616). A livre adaptação das fontes históricas – objeto de crítica feroz – fez com que seu Herodes, por exemplo, incorporasse elementos de Herodes Antipas, Herodes Agrippa e Herodes Tetrarca, sintetizando épocas diversas em um mesmo personagem.

Sabendo ser Wilde um escritor oral, jogamos, agora, uma luz sobre os refrões que tornam esta peça em um ato, musical, com as palavras unidas como em uma canção, embalada por passos de uma estranha dança.‘Martelando’ os sentidos da audiência com repetições sensacionais produz música orquestrada nas falas das personagens que embriaga, criando um estado de extrema acuidade e um turbilhão de imagens.  As cores se mudam em sons, os cheiros se traduzem em cores, garantindo um efeito hipnótico à vida interna do texto, aproximando-o de um sonho misterioso. A náusea produzida, desconfortável, ao invés de afastar a audiência, a seduz e atrai ainda mais pela curiosidade. Comenta o crítico Danson em Wilde’s Intentions que seu desejo era que na montagem de sua Salomé todos estivessem vestidos de amarelo e o palco revestido de negro para que os pés de Salomé se sobressaíssem47. Amarelo original, intuitivo; negro misterioso, superior; branco auto-suficiente, alheio a compromisso, meticuloso. Esta curiosa preocupação com as cores denota a importância de imprimir, pelo cenário, um caráter plástico ao texto.O esteta depositou, em profusão, na frase, expressões pitorescas e palavras sonoras, criando um sabor de perversidade forte e apropriado à ótica teatral. O estilo de poesia oriental assimila os procedimentos de Flaubert em sua Herodíade; o texto é permeado de uma sensação de desfalecimento, de langor, bem ao gosto decadentista.

Dos vários personagens que desfilam, fixamos a simbólica escolha da Lua – referente temporal - como testemunha da história, ora na simplicidade do branco, ora no vigor caloroso do vermelho sangue,  é vertida e evidencia o amor de Wilde pela dança oferecida pelas fases desta deusa. Orbitando ao redor da Terra, este satélite reflete, em sua  peregrinação, a luz do Sol sempre alterada, garantindo variados matizes para os objetos. Diferente a cada vez, remete ao tema do olhar que permeia a escrita. Assim como os indivíduos ‘vêem’ a Lua, Salomé é vista. Ela é essencialmente a mesma, mas parece sofrer severas transições de identidade de acordo com as diferentes perspectivas. É pálida como uma virgem ou como uma mulher morta.Os adereços, inocentes objetos, se impregnam de cores maléficas, para uma beleza que transita entre as deusas gregas e as exóticas personagens orientais. Esta mulher tão diferente vem com a audácia já apresentada por Baudelaire. O resultado do contato com ela é uma incrível multiplicação de identidades que confunde o leitor ou o espectador, fazendo-o ir para onde, ‘conscientemente’, não escolheria. Os olhos parecem não ter opção e o perigo se alastra. Na fala do pajem: “É perigoso olhar de tal maneira as pessoas(...)” (WILDE, 2003,p.613), verificamos que o temor é gerado pela possibilidade de nos serem revelados, desmascarados nossos próprios segredos. O nosso reflexo no espelho do olhar do outro pode ser assustador. Talvez, daí, o medo do tetrarca em encarar Jokanaan e a proibição que qualquer pessoa o fizesse:

“Cap: Pode-se vê-lo?

1 Sold: Não. O tetrarca proibi-o.” (WILDE, 2003,p.615).”

O sírio, apaixonado, é dissuadido, porém, a trazer o profeta até Salomé que lhe faz uma promessa: “Olharei para ti através dos véus de musselina, olharei para ti, Narraboth, e talvez sorria para ti. Olha-me, Narraboth, olha-me. Ah! Sabes que vais fazer o que eu te peço. Bem sabes...sei que farás isto(...)” (WILDE, 2003,p.617). Wilde brinca com a iminência de um olhar que pode revelar a intimidade do coração, um olhar que libertaria o inconsciente, o que ocasionaria uma revolução de atitudes. A princesa recebe de Wilde o conhecimento do poder deste olhar prescrutador que acaba por ser fatal para Narraboth. Ao olhar Salomé, seus segredos são-lhe revelados, ele não resiste e se mata.

          Em seu mundo repleto de solicitude, a rejeição do profeta abre uma fenda pela qual os desejos e jogos secretos de Salomé podem se manifestar. Oprimida com um mundo onde tudo já foi dito, nada resta a não ser mergulhar na imaginação. A partir do encontro com Jokanaan, a protagonista, em completo frenesi, lança mão de comparações cheias de colorido feitiço seguidas de inusitada reação quando  da repulsa demonstrada pelo profeta, sempre procurando que ele a olhasse, quando é ela, de fato, atingida por seu próprio olhar. À vista do profeta, a jovem se transforma – se transtorna : “Teu corpo é branco como os lírios do prado que o segador nunca segou. Teu corpo é branco como as neves que repousam sobre as montanhas(...)”. E parece não se importar com a recusa de Jokanaan: “Para trás filha de Babilônia...Não me fales. Não te darei ouvidos(...)” e continua, “Teu corpo é horrível. É como o corpo de um leproso. É como um muro de cal por onde se arrastaram as víboras(...)” (WILDE, 2003,p.619); e ainda, “(...)É do teu cabelo que estou enamorada, Jokanaan. Teus cabelos parecem cachos de uvas, são como os cachos de uvas negras que pendem das vinhas de Edon...”, e quando o profeta mais uma vez a adverte, “Para trás, filha de Sodoma(...)”, diz: “Teus cabelos são horríveis. Estão cobertos de lama e pó(...) Parece um ninho de serpentes negras enroscadas em teu pescoço...” (WILDE, 2003,p.620). A série de contradições, como passos que avançam e recuam na dança,  movimenta o corpo da moça embalado pela dificuldade da princesa na descrição de alguém que lhe resistia aos charmosos apelos.  Percebemos um tom levemente infantil nas palavras da jovem: ambigüidade mantida por Wilde,  que graduará a manipulação de Salomé até o momento decisivo. A preocupação de Wilde pareceu ser não plagiar a figura da mulher fatal de sensualidade delituosa de Swinburne, mas de aderir, aceitar por meio dela, uma nova forma de linguagem insinuante: a feminina. A figura desta mulher, diferente das heroínas românticas (mas, ao mesmo tempo guardando elementos perceptíveis de certa doçura), insaciável na busca, pelas curvas do corpo, assemelha-se a do artista decadente pela forma nova e audaz. A verdade masculina se entregara à mentira feminina, maculada força .

         O clímax vem com a dança de Salomé. A marcação temporal que até então fora olvidada chega caracterizadora do ‘agora’ para o destino das personagens.  A força e a flexibilidade dos movimentos acentuam sua auto-disciplina, apesar da paixão por Jokanaan. Leves e firmes, os passos de Salomé remetem para a filosofia de um corpo novo, guia e não guiado, irrepetível na diversidade, posicionado no intervalo entre o sano e o insano As pernas traçando uma escritura de leveza e graça; nos pés, a concentração para o equilíbrio do corpo, os passos para a perdição .Olhar de desdém, de sublime frieza mascarado de sedução, almejando roubar não o fogo dos poderosos, mas sua paz; hedionda pela montra de seu impudor e de sua crueldade. O olhar que lançou para o profeta afetou-a por completo e todo o seu corpo é invadido pela necessidade de uma revolução. O transe que enreda dançarina e assistência contagia o leitor. Salomé domina pela expressão, não de conceitos, mas da estonteante mistura de tons e aromas que enlevam Herodes e seus convidados até o desapossamento de si. Ao decidir-se pela dança, Salomé subjuga o padrasto à própria lei e vinga-se de Jokanaan que a desprezara. Esta ‘super-fêmea’ desafia uma sociedade masculina. Réu do desejo, Herodes se torna juiz do profeta a quem tanto temia. Prisioneiro das curvas daquela mulher, figura idolátrica que fatalmente prende a si e destrói de forma inebriante, Herodes  tem as mãos, cercadas de fausto,  atravessadas por raios de sangue. Herodes governava um mundo, Salomé era seu mundo, grito clandestino de uma alma em busca.

         Charles Feitosa, no ensaio Por que a filosofia esqueceu a dança? medita sobre o esquecimento ou a pouca menção desta manifestação artística na obra dos filósofos, a exceção de Nietzsche. O que nos remete ao destaque dado por Wilde a este instante da trama. Wilde, ao ofertar uma cópia de Salomé a Beardsley, atesta ser texto apropriado.. Richard Ellmann destaca em seu Oscar Wilde o fascínio que a descrição dos quadros de Gustave Moureau em À Rebours teve sobre Wilde:



“Only Moureau has conveyed that she is not just a dancing girl, but ‘the symbolic incarnation of undying lust, the  goddess of immortal Hysteria, the accursed beauty exaltedabove all beauties by the catalepsy that hardens her flesh and steels her muscles(...(indifferent, irresponsible(...)poisoning, like the Helen of ancient myth, everything that she touches.’(...)”.



O espetáculo da dança é precedido por uma interessante observação do sírio: “A princesa escondeu o rosto por trás de seu leque(...)” (WILDE, 2003,p.615). Este interessante adorno será objeto de destaque para Wilde na peça O leque de Lady Windermere pela capacidade de multiplicar ‘máscaras’ na graça de seu simples manuseio. Preparava-se para a transformação que selaria seu destino. Após a dança, com a cabeça do profeta entre as mãos, Salomé diz: “Abre teus olhos... Puseste sobre teus olhos a venda daquele que deseja contemplar seu Deus. Pois bem, já viste teu Deus, Jokanaan, mas a mim, a mim nunca me viste. Se me tivesse visto, ter-me-ias amado(...)Sei muito bem que me terias amado e o mistério do amor é maior do que o mistério da morte(...)” (WILDE, 2003,p. 634) para notarmos o estado de emoção extrema em que se encontra. Ao contemplar a cabeça, Salomé vê todo o corpo. A parte tem para ela uma beleza própria – integra um conjunto desejado, mesmo existindo ao mesmo tempo, em isolamento. Como se a parte pudesse ser bela em si, como se isso se desse por conter a imagem global do corpo.

Wilde minimiza a luxúria em Herodes e a intensifica em Salomé. A paixão da jovem a leva ao desastre. Seu olhar de luar convoca à adesão e à aceitação irrestrita. Sádica, herdeira do Marquês, tem na provocação da dor tanto de Herodes quanto de Jokanaan a realização suprema do prazer. Experimenta os outros de seu corpo e acaba vítima de si mesma, condenada à morte. Segundo um dos biógrafos de Wilde, Joseph Pearce, a intenção original de Wilde seria que Herodes não a condenasse a morte, mas a banisse. Ela vagaria no deserto, solitária, duplicando a vida do profeta: vestida com pele de animais e se alimentando de gafanhotos e mel silvestre. Reconheceria o Messias, mas se sentiria incapaz de segui-lo pelo peso do remorso. Atravessaria terras até um deserto de gelo. Ao passar por um lago, o gelo se quebraria sob seus pés e ela seria decapitada por blocos, mas não sem antes gritar pelo nome de Jokanaan. A protagonista da peça wildiana acaba, no entanto, vítima de si mesma, condenada à morte. Morte necessária para a regeneração, como são necessários os dias que precedem o ‘renascimento da lua’. Diz Borges em Noite cíclica:

                   “(...)Não sei se voltaremos em um ciclo segundo,

                         Como voltam as cifras de uma fração periódica;

                         Sei, porém, que uma obscura rotação pitagórica

                         Noite após noite deixa-me em um lugar do mundo.”52



Onde estará Salomé? João do Rio disse reconhecê-la em todas as mulheres .

 Salomé permanece pergunta sem resposta, charada sem solução – já diria Wilde em A esfinge sem segredo que mulheres são para serem amadas e não entendidas. Esta nova linguagem deveria ser amada porque é parte constituinte de cada um e não afetada pela consciência que delimita. Esta era a linguagem defendida por Nietzsche; linguagem que fugisse ao óbvio e lançasse o indivíduo num redemoinho de onde só sairia renovado, pleno do vigor da vida. Acompanhando este simbólico enfoque do feminino, Wilde diz, certa vez em conversa com amigos, que as mais atraentes não eram exatamente as mulheres imorais, mas sim, as amorais. Estas, segundo ele, eram completamente irresistíveis. Wilde sintetizou na peça, desejos obscuros, timidez evocada, amor, ódio – tudo em uma mulher. Uma vez mais a idéia é feminina e se insinua como mulher de beleza inesquecível, perfume de perigo e queixo de soberana, espetáculo de um futuro que quer elevar a alma do chão.

         A liberdade que Wilde reconhecia advir da arte permitia que Salomé fosse também uma das máscaras de que se utilizou durante a vida. Nas reuniões sociais em que estava presente Wilde   – por vezes seu nome constando nos convites como que atrativo especial para que as pessoas comparecessem ao local -, o dom que tinha para contar e divertir à volta da mesa criava pontes de atenções. Tudo o que os rodeava era para exalar prazer, então que fosse assim. Prazer tão ‘real’ quanto o prazer teatral. Contava horas a fio; essa dança de palavras inebriava os ouvintes e ninguém parecia resistir a seus encantos. Wilde foi, então, também, Salomé, e desejou ardentemente a cabeça dos conquistados. Queria indivíduos novos para uma época desgastada pela tradição. Indivíduos comprometidos com eles mesmos e com o poder que tinham enterrado. Não foi coincidência, portanto, a escolha de Strauss pelos diálogos originais de Wilde para sua ópera, Salomé, com estréia em 1905. Ele entrevê a eficácia cênica do drama.

         Salomé dança na mente do pensador Wilde e ele entrega a ela sua cabeça. Sem temor, aceita o desafio e as conseqüências. Conquistador e conquistado, nas mãos desta bailarina nada ficcional, mas sim, reflexo puro de um real fascinante porque plural. Diz Alvin Redman em seu The wit and humor of Oscar Wilde:



Salomé has an eerie atmosephere of impending doom and we are allowed to peer into that strange world of unreality into which his mind often wandered(...)” .



Salomé dançou uma vez por todas para Wilde; Wilde dança com as letras até hoje levando consigo audiências encantadas. Sua personalidade dedicada à beleza com amor imenso fez com que nas voltas seu corpo fosse pouco a pouco transmutado em pura manifestação artística. O comprometido coração abriu-se como palco para o desempenho e o beijo da morte o perseguiria desde então. Uma vez mais não havia como retornar; os véus o prendiam, o que para ele era irresistível. Ruína num mundo descrente, glória no mundo que a Arte oferecera. Desejo de mãos dadas com desastre. A graça e o humor, no entanto, não o abandonariam, já que ouvia constantemente agradável música ao fundo. Daí ter dito a C.F. Gill  no segundo julgamento:



         “I am not happily, I think, an ordinarily constituted man(...)”

                             

Salomé mantém ainda o vigor e a leitura provoca um certo ‘desconforto’ . Isso a ele agradecemos: sermos co-movidos. A dançarina sorri e volta a bailar.

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