quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Amantes peregrinos

I  SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE LETRAS NEOLATINAS   Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro                                                   Setembro/2005-10-03                                Flora Tristán e Oscar Wilde – olhares peregrinos                                                  Stella Maria Ferreira            (  Mestre em Semiologia – UFRJ     /   Doutoranda em Poética – UFRJ  )                                                            

OLHARES PEREGRINOS
                         O fascinante desafio de mergulhar no século XIX de duas diferentes gerações, com o encontro imaginário de Flora Tristán e Oscar Wilde, mostrou “pelo buraco da fechadura da linguagem” (BOUÇAS, 2004, p.192) como a narrativa pode ser uma trilha perigosa convocada a ser voz.                      Nossa civilização ocidental pautada no olhar contou há dois séculos com exemplos de escritores que conseguiram misturar a este sentido odores e sons muito marcantes. Indivíduos para quem o tempo foi suspenso; foi o tempo de suas vidas, como diria Roland Barthes; olhares ‘estranhos’, estrangeiros, voltados para cidades que se consolidaram suntuosas no imaginário.                              
 
  FLORA TRISTÁN  E  OSCAR  WILDE:    
                                                                    “Mas um mapa-múndi em que não figurasse a Utopia não valeria a pena de ser olhado, pois nele faltaria o único                                          país em que a Humanidade desembarca diariamente. E                                               apenas nele, olhar para   mais além e, divisando uma terra                                               mais bela, torna a virar proa para ela. O progresso não é                                           senão a realização das utopias.” (A alma do homem sob o socialismo- p. 1177)                               UMA INTRODUÇÃO                                A História nos mostra homens e mulheres que, em épocas distintas, lutaram para fazer diferença, diante de sistemas políticos e sociais, gerando uma considerável produção intelectual. Havia um compromisso quase inato de reformas e batalhas contra injustiças e os artistas partiram para a verbalização deste descontentamento, vestindo-o de uma eficiente função significativa e
Página 2 de 7
07/01/2011file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\article s\Stella Maria Ferreira.htm
dando-lhe consistência.          No início do século XIX, em todos os cantos do mundo emergia uma preocupação com a instaurada negação do outro (em sua alteridade) e afirmação em sua diferença. Encontrava-se instituída a presença fria, surda e invisível de um ser indefinido, pairava silencioso rumor de um existir anônimo.          A necessidade de chegar a este outro encontrou ressonância na literatura. Na peregrinação, buscaria-se ser com o outro e para o outro tendo a linguagem como o elemento de convergência. O dogmatismo estabelecido nas sociedades refletia-se na língua que trazia em si reproduções camufladas de um real que se desejava impor e o desejo desconhecido e estranho revelaria indivíduos para quem “...a miséria e a pobreza têm tal força degradante e exercem efeito tão paralisador...”  (WILDE, 2003, p.1168) - re-direcionando as palavras. Na convivência com o “diferente”, este peregrino se proporcionaria um olhar interior sobre o esquecimento e os silêncios da História e desnudaria o que estivera guardado na memória de suas retinas. Ao gozo advindo da caminhada somar-se-ía se a dor na alma pelos que não reconhecia que “...mesmo em um cárcere pode um homem ser absolutamente livre. Sua alma pode ser livre e sua personalidade permanecer em equilíbrio perfeito. Seu espírito pode sentir-se em paz consigo mesmo...” (WILDE, 2003, p.1173 ).          Assim, Flora Tristán (1803-1844) e Oscar Wilde (1854-1900) aproximam-se num encontro fictício fruto do desejo em ambos de ir ao encontro deste outro e misturando-se a ele, revelar e assumir uma multiplicidade inerente ao ser humano.          Tristán, nascida em Paris, filha de um aristocrata peruano e de uma plebéia francesa, em sua estada em Londres, traçou um circuito entre 1826 e 1839 com um olhar ético ( porque não dizer, estético) do qual resultou Paseos en Londres (edição 1972). Espaço que seria amplamente revisitado por Oscar Wilde. Do desenho de contornos labirínticos temos uma narrativa que parece ser de uma só viagem, de sentido histórico, espalhando as marcas de uma época. Seu enfoque pessoal relacionando narrador e protagonista dá um dinamismo especial e uma dimensão pública à escrita – diário sem datas, cuja marcação é feita pelo lugar. Constitui um interessante diálogo com o leitor que, vez ou outra, é por ela convocado como em “...quisiera poder darsela a mi lector, a fin de que participara de la perplejidad que me produjo esta puerta.” (cap. IX- acerca das prisões inglesas). Romântica, mas sem se deixar seduzir pelas decorações da cena inglesa, nega a versão da vida oficial tão difundida entre os escritores da época. Sua condição de pária (pobre, ilegítima e separada do marido) aproxima-a do esteta irlandês, perseguido e condenado – protagonista trágico e vítima; agente num mundo que requeria duplicidade e disfarce para sobrevivência -  para quem “nenhum mal deveria sofrer o homem a não ser o que seus próprios atos causassem; deveria ser impossível despojá-lo de qualquer coisa. A única coisa que se possui é aquilo que cada um leva consigo. Tudo quanto está fora do homem não deveria ter importância nenhuma.” (WILDE, 2003, p. 1170).           De alma inquieta, oferece em Paseos en Londres um relato da vida do povo pobre, das lamentáveis condições de trabalho, da exploração social e da prostituição no primeiro estudo da realidade européia feito por uma latino-americana.          Oscar Wilde, figura até hoje controvertida, irlandês, herdou da mãe (poetisa nacionalista) uma inquietude que seria marca indelével de sua personalidade. Intencionalmente paradoxal, buscou a desconstrução dos estereótipos ainda instaurados na sociedade inglesa mais de trinta anos após a morte de Tristán. Dele diz André Gide: “...nem sempre se apercebem as pessoas de quanta verdade, sabedoria e gravidade se ocultavam sob a máscara do trocista.” (WILDE, 2003, p. 33).          É constante em ambos um jogo entre ‘como se definem e como definem o outro’. Espíritos sem cortinas, percebem que caminhando lado a lado com a máscara de uma cultura imposta estão rostos que trazem uma nova exigência – o respeito. A abordagem, porém, é diferente. Ela, testemunha, lança-se ao proibido optando pela denúncia aberta no relato de viagem, sem abrir mão de um certo lirismo e de estupendas comparações que atraem ao tornarem uma viagem real, literária. Ele, ator, escolhe uma escrita cujos significados viriam sob várias “camadas”. Sua rebeldia caracterizou-se mais pela provocação de assumir outros papéis, ficcionalizando a a própria vida. O ensaios, poemas e seu único romance encontram-se profundamente ligados às questões sociais de seu tempo – pobreza e privilégio, feminismo e gênero - e foram tentativas de
Página 3 de 7
07/01/2011file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\article s\Stella Maria Ferreira.htm
espelhar a vida num estilo mascarado. Os dois, Tristán e Wilde, unem-se no amor à beleza: “mis lectores que han tenido muchas ocasiones de notar la influencia que la belleza ejerce sobre mi.” (cap. IX-p.94). Este olhar duplo da vida urbana inglesa é a aventura a que somos chamados a partir de agora. Adotando um percurso dedáleo – descontínuo, móvel -, característica wildiana, provocaremos uma des-ordem na apresentação dos capítulos de Paseos en Londres, estabelecendo leituras do esteta irlandês acerca dos temas em algumas de suas obras.
   
                      PRIMEIROS  PASSOS            A presença nas ruas de Londres no século XIX foi considerada inquietante por contemporâneos; a visão de milhares de pessoas deslocando-se para o desempenho do ato cotidiano da vida incitou ao fascínio e ao terror. A identidade individual fora substituída pela condição de habitantes de um aglomerado urbano. Permanecia-se incógnito, dissolvido nesse movimento. Crescia um espanto e uma preocupação ante a pobreza que a multidão nas ruas revelava. O hábito entorpecera os indivíduos, que evitavam examinar as próprias profundezas. Prisioneiros da cotidiana mediocridade, sabotaram seus sonhos, jogando fora a essência da vida, aposentando a existência. Diz Tristán: “El londinense, que regresa a su casa por la noche, agotado por los viajes del día, no podrá estar alegre, ni espiritual, ni dispuesto a entregarse a los placeres de la conversación, de la música o de la danza. Las facultades intelectuales, de las que estamos dotados, desaparecen por las fatigas corporales llevadas al exceso, igualmente que la sobrexcitación de esas facultades afecta debilitando las fuezas físicas...” (p.147). Ainda sobre a época diz Wilde em O retrato de Dorian Gray (p.85): “...o século XIX caminha para a bancarrota...” e mais adiante: “...é uma época ao mesmo tempo sórdida e sensual...” (WILDE, 2003, p.151).          De dia, na hora do trabalho, a cena urbana se via ocupada pela multidão de trabalhadores. A atividade do olhar, decisiva para observar a vida cotidiana se tornava mais difícil ao cair da noite. Então, a multidão se adensava e quanto mais numerosos os homens, mais profundas as sombras – ninguém se desvendava para o outro e ninguém era para o outro inteiramente penetrável. O real circundante se tornara cada vez mais perturbador, impedindo a construção de um equilíbrio de paz. A cidade revelava um lado de ostentação e queria tornar ocultas as tristes conseqüências dessas transformações. O discurso é essencialmente masculino, burguês. A grande inovação deveria ser a da feminilidade da linguagem, um signo inverso.          A “cidade monstro” de que nos fala Tristán: “...produce la primera vez, um efecto embriagador...empero, me apresuro en decirlo, esta fascinación se desvanece como uma visión fantástica, como el sueno de la noche...del mundo ideal cae en todo lo que el egoísmo tiene de más árido y la existencia de material.” (cap. I- p. 4).                                 A JORNADA            No capítulo I, a escritora latina marca três setores da capital inglesa: a cidade (centro antigo) habitada pelos mercadores que, de tendas sombrias e úmidas, foram capazes de fazer certa fortuna; o west end da aristocracia, do comércio elegante, da nobreza provinciana e dos dândis e, por fim, o subúrbio dos trabalhadores, das prostitutas e daquela “turba de hombres sin destino que la falta de trabajo y los vícios de toda clase conducen vagabundaje, o a quienes la miséria y la hambre furzan a convertirse en mendigos, en asaltantes asesinos.” (cap. I- p.5). A opção é, portanto, a de circular pela cena e pela obs-cena, pelos subterrâneos, encontrando o bálsamo no escondido. Caminho escolhido também por Wilde, perfeitamente à vontade nos meios aristocráticos e no espaço da rua, operando uma duplicidade de comportamento.          Os capítulos II e III de Paseos en Londres são temperados pelo ar sepulcral, frio e úmido da descolorida Londres. O ‘spleen’ – uma certa irritabilidade – caracterizaria o inglês, alcoolizado por essa natureza, respirando tristeza e melancolia. O tédio em seus olhos nos adverte que a vida da alma está apagada e a atitude de seu corpo mostra que não está feliz nem tampouco está em
Página 4 de 7
07/01/2011file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\article s\Stella Maria Ferreira.htm
condições de aspirar pela felicidade. A escritora vê o londrino como pouco hospitaleiro, professando o maior respeito pelas coisas estabelecidas. Não demonstra opinião ou gostos próprios – adotam-nos de acordo com a maioria elegante. O olhar de Wilde, ferino, é expresso em suas peças em meio a momentos supostamente inocentes, em conversas informais. No capítulo XVII de O retrato de Dorian Gray conversam a Duquesa de Monmouth e Lorde Henry. Diz ela:   “- E que dizem de nós?  -Que Tartufo imigrou para a Inglaterra e aqui se estabeleceu...Nossos compatriotas...equilibram a estupidez com a riqueza e o vício com a hipocrisia.”.
 
O relato objetivo de Tristán encontra ressonância na ironia ‘mascarada’ de Wilde. Nos capítulos IV, X, XI E XII do relato de viagem, Tristán descobriu os finos véus da presença estrangeira em Londres. O olhar estrangeiro sobre a vida do estrangeiro em solo inglês foi também o que encontramos em Wilde que, como irlandês, aos 20 anos de idade vai para Oxford e, mais tarde, instala-se em Londres.          Tristán apresenta trabalhadores de diferentes ofícios “gentes honestas que trabajan laboriosamente para sostener a su família”; artistas contratados pelos teatros, professores, médicos e diplomatas. Verifica, porém, uns tantos que, sem capital ou crédito para dedicarem-se ao comércio – percebendo o gosto da aristocracia por títulos – para se introduzirem na sociedade inglesa “se adornam rapidamente de los títulos de Baron, marqués, conde, duque, coronel, general.” (cap.IV- p.5). Destaque para o capítulo XX em que visita Saint Gilles, refúgio dos irlandeses - diz Tristán: “Más de doiscentos mil proletários irlandeses habitan diversas partes de la metrópoli britânica...La miséria irlandesa está representada en médio de los mejores barrios de Londres. Es alí que es preciso ir conocer, em todo su horror, la miséria que se produce en un país rico y fértil, cuando es gobernado por la aristocracia y en provecho de la aristocracia...” (Cap. X, p.125). A descrição traz as cores da dor e do abandono, transmitindo ao leitor o sentimento do não lugar. Tem-se a imagem de indivíduos na integração mascarada do trabalho, mas condenados a uma vida à margem.          Wilde viajou inúmeras vezes pelo desejo de ir aos extremos, fugir do corriqueiro. O olhar transitivo da peregrinação o atraía. Daí, as viagens aos Estados Unidos terem sido consideradas um dos marcos decisivos em sua vida.          Numa cena emblemática de Uma mulher sem importância (1893), o esteta, pela boca de uma jovem norte-americana Ester Worsley desfere uma crítica áspera: “Vós, os ricos da Inglaterra, não sabeis como estais vivendo... Fechais vossa sociedade ao que é nobre e bom. Vivendo desse modo, por cima dos outros e à custa deles...Amais a beleza que podeis ver, tocar e manejar, a beleza que podeis destruir e que destruís. Perdestes o segredo da vida...” (WILDE, 2003, p.677/678).          Os estilos de Tristán e Wilde revelam espíritos que refletem, que meditam. Depreende-se a surpresa que alguns costumes causaram nos viajantes.          Passemos aos capítulos V, VI e VII de Paseos en Londres, onde afloram os políticos, as câmaras do Parlamento e a vida do Proletariado. Tristán posiciona-se  com muita clareza: “La división del trabajo llevado a su más extremado limite, la mecánica reemplazando todos los procedimientos de los oficios, la fuerza mottriz de más alto poder, que se encuentra siempre a disposición del capitalista, son en el proceso de producción tres grandes revoluciones que seran muy importantes en la organización política de los pueblos...”(cap.5- p.37). A escritora latina lança-se à empreitada de visitar as Câmaras do Parlamento que proíbem mulheres em suas sessões. O obstáculo, longe de inibi-la, incita sua curiosidade e o corpo subversivo vê como alternativa mascarar-se de homem. Tanto na Câmara dos Comuns quanto na dos Lordes o disfarce foi descoberto. Permanecem registradas, porém, suas impressões sobre o espaço limitado ao masculino: “los honorables se extienden sobre los bancos como hombres fatigados y aburridos. Muchos se acuestan exteramente y ‘duermen’. Aquella sociedad inglesa que se martiriza siempre poe la estricta observación de las reglas de la etiqueta...muestran en la Cámara un desprecio completo por todas las atenciones que los usos de la sociedad imponen...”(p.52)          O que notamos em Wilde é uma crítica ora feroz como em Vera e os niilistas: “...e se um homem conhece a lei, não há nada ilegal que ele não possa fazer, quando quiser...” (WILDE, 2003, p. 456), ora irônica, própria do dândi: “Ninguém deveria pertencer a partido algum em nada”, diz Lorde Illingworth em Uma mulher sem importância, “Não obstante, a Câmara dos
Página 5 de 7
07/01/2011file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\article s\Stella Maria Ferreira.htm
Comuns é realmente pouco prejudicial. Não podem os senhores melhorar as pessoas por meio de uma lei, o que já é alguma coisa...”(WILDE, 2003, p. 665).          O capítulo VII de Paseos em Londres é dedicado a um detalhado relato do que o poder econômico e sua aplicação são capazes, tornando o raciocínio e a reflexão inúteis. Em visita a uma fábrica de gás, o olhar constata que o progresso exige um trabalho para além do que as forças humanas podem resistir. O ar é viciado, a tristeza marca os rostos e os movimentos são lentos e sincronizados. A individualidade é esmagada porque ameaça a tirania do hábito.          O capítulo VIII – dos mais extensos – é dedicado às ‘mulheres públicas’, que Tristán considera ‘un mistério impenetrable’, um misto de beleza e loucura, pois sofrem “torturas físicas incesantemente repetidas, muerte moral en todos los instantes.”. Excluídas do trabalho no campo, quando não conseguem espaço nas fábricas são “empujadas a la prostituición por el hambre.”. O olhar destaca que a virtude ou o vício supõe a liberdade de fazer o bem ou o mal. Qual pode ser a moral de uma mulher que foi ‘preparada’ para não se pertencer, para não ter nada, para vender o amor próprio?          Um grande número de prostitutas podia ser visto em Londres a qualquer hora do dia nas ruas, palco de delícias e horrores. Os ‘interessados’ eram levados a casas destinadas ao ofício, como nos Tristán. Wilde nos desvela uma delas em A casa da cortesã de 1885:      “...Lá dentro, acima, do rumor e do motim, Ouvimos os músicos, altos, tocarem... Como bonecos movidos a cordel, Dos esqueletos a magra silhueta Desliza ao som lento da quadrilha... Às vezes boneca mecânica apertava A seu peito um amado fantasmal, Tentar cantar às vezes pareciam...” (WILDE, 2003, p.943/944)            O capítulo IX traz a emoção extrema de uma testemunha ocular da dor de quem “...escucha el ruído de la calle, puede ver por encima de la puerta pequenos destellos de sol relucir sobre la plaza...”. E, caminhando lado a lado com ela, Wilde, que sobreviveu à dor de “...Sempre no coração a meia noite                 E na cela sempre crepúsculo...”. (p. 983). O jogo com a memória alcança um destaque de excelência: os olhos dela no corpo dele.          Tristán visita três casas de detenção – Newgate, Gold-Bath-Fields e Penitentiary –, pois “halla escuchado versiones contradictorias sobre las prisiones inglesas y el interes que me inspira la cuestión social se hallaba aumentado por el deseo de esclarecer mis dudas...”(p.91). Destacaremos a primeira – Newgate -, a de aspecto mais selvagem, como o imaginário conceberia a prisão dos tempos bárbaros. A visão é nauseante. As futuras palavras de Wilde em A balada da prisão de Reading de 1898 parecem ecoar no texto:   “...A seu lado dois guardas vigiavam Para que a morte não se desse... As mais vis ações como ervas daninhas Florescem bem no ar da prisão; Somente o que há de bom na alma do Homem Ali se estraga ou emurchece...” (WILDE, 2003, p. 982)  
     
                                         ÚLTIMAS PALAVRAS     Escolhemos fazer uma pausa em nosso percurso onde os olhos dos dois artistas se entrecruzam. Cada um a seu modo viu no outro seu próprio ser, mutilado, fragmentado. As dores foram as mesmas; são as nossas também. Por isso, esta viagem não tem fim.                                            
 

                       BIBLIOGRAFIA:     COUTINHO, L. Edmundo e CORRÊA, I. E. Jones (organizadores). O labirinto finissecular e as idéias do esteta – ensaios críticos. RJ: 7Letras, 2004.   TRISTÁN, F. Paseos en Londres. Lima: Biblioteca do Peru, 1972.   WILDE, O. Obra Completa. RJ: Editora Nova Aguilar, 2003                                          
Página 7 de 7
07/01/2011file

Allegro

 ALLEGRO                  publicado na Revista Garrafa- Faculdade de Letras - UFRJ
(um olhar sobre Sinfonia em amarelo de Oscar Wilde)

    Stella Maria Ferreira            (Doutoranda em Poética)

   “ ‘Estou sedento por encontrar um mestre na arte dos sons’,    dizia um inovador ao seu discípulo, ‘um mestre que pudesse     apreender os meus pensamentos e em seguida os traduzisse    na sua linguagem: desta forma eu atingiria melhor os ouvidos    e os corações dos homens...” 1.

 A arte alicia a vida e o convite chega precedido de uma música encantatória que, continuamente, remete ao mistério para manter o intangível e o inesgotável murmúrio das forças imaginativas. O indivíduo que se puser à escuta, que se descola de uma existência marcada pela obviedade, disponibiliza-se a um jogo estético que destacará sua personalidade singular. Ao que, ao contrário, não se deixa enlevar, só resta a pura reprodução de modelos “fora de qualquer magia, de qualquer entusiasmo, como se fosse natural, como se essa palavra que retorna fosse sempre rigorosamente adequada...” (BARTHES, 2001, p.85). A obra artística, com a provocação da dança dos sentidos, traz um colorido prazeroso em cada matiz rejeitando a repetição fossilizada.  Oscar Wilde, figurino sem par cuja corporeidade transbordava imagens de uma vida dedicada exclusivamente à beleza, louva a ‘ação’ de certas cores como gestação para este novo olhar, este compromisso com novas perspectivas. Para a névoa oriunda de um mundo mergulhado na monotonia, o artista propõe frases curtas e densas que se aplicam à epifania da embriaguez como caminho para uma existência em plenitude.   A proposital escolha do amarelo transgressor e do verde caótico a procura de uma nova ordem fixam a embrionária opção wildiana pela renovação do conceito de inexorabilidade do corpo. O ‘tempo’ insatisfatório é atravessado por rasgos de eternidade. O aparente desequilíbrio, produto do devir, assegura, paradoxalmente, um renovado equilíbrio que não se esgotaria diante de pré-concepções e cristalizações. A
                                                 1 NIETZSCHE, 2004, p.102. 
conseqüência é uma estranha alegria que emana do sopro repetido destas cores. Alegria que enlaça o leitor para que a vida individual seja ultrapassada a cada momento. Na insistente repetição do amarelo e do verde, Wilde convida ao som dos movimentos da sinfonia que formam, de fato, o circuito de instantes, de ‘agoras’ que é a vida. Esta multiplicidade dos possíveis aproximaria o corpo percebido do corpo sonhado. O artista, desejoso de evitar a perplexidade diante do não vivido, instaura a graça do espanto. O irlandês acreditava ser dever de cada um dar uma forma –ainda que não a concebida de maneira ortodoxa – ao caos. Diz ele, em carta de 1897 ao amigo Robert Ross:

   “Do outro lado do muro da prisão há...árvores...que estão agora    cobrindo-se de brotos de um verde quase gritante. Sei perfeitamente    o que lhes sucede: encontram sua expressão...” 2.

 Escrito em 1889, o poema Sinfonia em amarelo reluz pela simplicidade. Em cenas cotidianas, Wilde insere elementos com a cor da revolta, do anseio por mudanças. Em versos serpentinos, o poema é concebido para, da tragicidade que emana da monotonia, chegar à alegria das oportunidades de escolha. Visitemos, enfim, o texto:

  Um ônibus atravessa a ponte,   Borboleta amarela a deslizar,   E aqui e ali, algum passante   Parece um mosquito inquieto


   Grandes barcaças cheias de amarelo feno    São impelidas para os cais sombrios,    E como um amarelo cachecol de seda    Pende ao longo do molhe de espessa névoa



   Começam a secar as folhas amarelas   E dos olmos do Templo caem, girando,    E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido   Jaz como uma barra de enrugado jade.


                                                 2 WILDE, 2003, p.1240.


O estilo impressionista é predominante. A transgressão imposta pelo amarelo mostra o desejo do artista de sentir seu hálito contaminando todo o lugar ‘exigindo’ um posicionamento acerca da ordem estabelecida. Dos três movimentos que uma sinfonia tem, Wilde enfatiza na hora silenciosa o andante, obscuro, trágico, melancólico. Cada indivíduo experimenta a dor e o que determinará uma vida de ‘tranqüilidade’ é como passará deste para o próximo movimento. Allegro neste poema está ainda implícito nas palavras, é a esperança nutrida pelo poeta; allegro está dentro dele. A força do desejo, no entanto, explode para os ‘eleitos’ – aqueles que se mantêm abertos, à deriva, à espera.  O poeta vislumbra a beleza dentro do disforme. Foi capaz de, sem cavar, perceber intensa luz e enigmático ar. A procura, no entanto, ainda é do outro; a ele cabe o exemplo de quem re-emergiu, para tornar-se novo. Diz Wilde mais tarde em O crítico como artista (1891):

   “(ao poeta)...pertence a vida em sua absoluta e plena totalidade;    não somente a beleza que os homens vêem, mas a que ouvem;     não só a graça momentânea de forma ou a fugaz alegria da cor,     mas toda a esfera da sensação, o ciclo completo do pensamento...”3.   

Para tanto, Wilde elenca ícones de recriação: a borboleta, as flores amarelas da estação e o rio para produzir o ritmo do poema. A borboleta a deslizar lembra o leitor do esforço interior pelo qual se deve passar para que a beleza desabroche. De lagarta com cor turva à dama de vestimenta colorida e leve, assim é o processo de desdobramento do eu; camada após camada deixando que o fluido da vida nutra os membros de forma a garantir perene liberdade. Logo de início, o ônibus que atravessa a ponte anima o poeta, toma um impulso na corrente de sentimentos, mesmo em meio às perdas – afinal, este sofrimento já levara o poeta à sublime abstenção de qualquer queixa. Ele espera pelas estações e deposita neste momento crédito especial ao outono – tempo de recolhimento, para que nova vida possa brotar. Após a queda das folhas, a visão se tornará mais límpida, menos                                                  3 WILDE, 2003, p.1134.
obscurecida pelos estereótipos. A alusão a esta estação satisfatória, já que de mudança, faz-nos indagar do tempo musical em consonância ou dissonância com o tempo cronológico. O tempo em Wilde é predominantemente interior, regido pela imaginação. Esta pode e deve superar todo e qualquer empecilho, permitindo um constante deslocamento, um exercício para o corpo insubmisso. Nesta desmesura, aposta na fronteira para garantir o estado de exceção da arte. Daí, ser imprescindível a escolha pela simultaneidade que, aflorando no tempo e no espaço, permite matizes de sons até então impensados. A repetição do amarelo e do verde não nasce do tempo, ela é o tempo4. As insistentes cores se aninham nos corações e esperam que, pelo ‘desconforto’, possam atingir resultados. A resistência do ‘passante’, ‘inquieto mosquito’, contrasta com a ‘borboleta amarela’, já transfigurada, plena da força da vida que espera e vence. O rio, acostumado ao movimento contínuo das águas, que mudava sua constituição diariamente, observa com curiosidade a névoa encantada. Enquanto isso, deseja também ser observado e que o verde de suas águas seduza outros passantes. Ele leva as barcaças para os sombrios cais e se deslumbra, com certeza, diante do contraste com a luz dos feixes de feno, que quer envolver e aquecer os corações frios e sem destino. O Tâmisa, verde, é então, testemunha e junto ao poeta aguarda o momento de revelação. O rio, em seu fluxo constante, observa a ambiência caótica e este sentimento é abrilhantado pela cor.  É o mesmo do ensino de Heráclito, o sempre novo, o perseverante, posse que não se reduz com o uso. É preciso olhá-lo e rir, descobrindo em si um herói e um insano, bailar em suas águas como trocista, sem vergonha de experimentar a leveza que a vida social negara.  As folhas que caem desenham também uma trilha a ser seguida pelos que se dispuserem à aventura e jazem na rua – lugar de alma encantadora. Estas mesmas folhas, como não imaginar, já transformadas em sua textura e sua cor pela estação, aos pés do amado e precioso rio, tal qual narcisos, invejariam os homens capazes do mergulho que resultaria em transmutação. A coragem de banhar-se no verde caótico e recriar-se rumo a uma ordem – fato que se repetiria , pois “a criação tende a repetir-se” (WILDE, 2003,p.1123) – está nos versos finais:
                                                 4 FINK, 1983, p.106(ver)
...            “E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido     Jaz como uma barra de jade.”  Wilde sabia que enquanto os indivíduos não expressassem seu verdadeiro ‘eu’ selariam um destino infiel ao elevado potencial a respeito da vida. Mantém, porém, um espírito vago, um tom de indeterminação no texto para forçar seu leitor a entender a mensagem de que a “virtude e a maldade são simplesmente para ele (artista) o que são para o pintor as cores em sua palheta...Vê que por meio delas pode produzir-se certo efeito artístico e produz...” 5. O amarelo procura envolver e seduzir semelhantes. O trabalho é árduo, avança lentamente, o sofrimento é voluntário e, por isso, compensador. Ele sabe que não é fácil ultrapassar a fronteira da consciência, mas se o ônibus atravessa uma ponte diariamente haverá um instante em que a inconsciência chamará os indivíduos a entregarem-se à embriaguez favorável a obstrução de todo e qualquer preconceito. A resposta está no acolhimento estético de todas as coisas: “discernir a beleza de uma coisa é o mais alto ponto a que podemos alcançar. Até mesmo um senso de cor é mais importante no desenvolvimento do indivíduo do que um senso de bem e de mal...” (o crítico-p.1163). A sociedade, dizia ele, primava pela emoção que levasse à ação e a arte queria a emoção pela emoção. A sociedade existia simplesmente para concentrar energia humana suficiente para assegurar a perpetuação de todas as coisas a partir de uma sadia estabilidade. “As belas emoções estéreis que a arte desperta em nós são odiosas a seus olhos e esse horrível ideal social domina com sua tirania tão por completo as pessoas...” ( WILDE, 2003, p.1143).  A visão desta cena captada por Wilde devia levar ao descanso daquele que escolhe o sonho; daquele para quem deseja que nenhuma forma de pensamento seja estranha, nenhuma emoção, obscura. Simpatizar com o pensamento: eis o segredo, pois, “a arte é uma paixão e em matéria de arte o Pensamento está inevitavelmente colorido pela emoção...” (WILDE, 2003,p.1152). A entrega ao poema é essencial e o que se espera é que nada além dele povoe a mente; nada de preconceitos, preferências. Assim, a cor do texto se mostrará, seu prodígio criará, enfim, um mundo mais real do que a própria
                                                 5 WILDE,2003, p.1327.
realidade, um sentimento sem limites se ‘imporá’. E este é o momento oportuno para o ‘grande salto’ em direção ao labirinto, que recusa a obviedade da linha reta.  A Sinfonia continua a ecoar aos ouvidos, “seus pastéis são fascinantes como paradoxo...se não abriram os olhos aos cegos, deram, ao menos, grandes alentos aos míopes...” (WILDE, 2003, p.1156).  Para um artista como Wilde, o som da liberdade de expressão só poderia vir por esta cor de energia, de uma luz inebriante, ao mesmo tempo de Apolo e de Dionísio; cor de duas ‘faces’ que, no jogo estético, garante o allegro, seqüência sonora que desvela para cada indivíduo o que jaz em seu interior: esta vontade de completitude, de experimentação das várias existências dentro de uma mesma. A cor assegura a força da mascarada e, na fortaleza que emana da música que só a ouvidos atentos se permite ‘descobrir’, Oscar Wilde ativa o mecanismo de um texto que se quer diferença. Aí, neste instante, a Arte vence.





REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS:

BARTHES, R. O prazer do texto. Lisboa: Edições70, 2001. FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1983. WILDE, O . Obra Completa. Rio de Janeiro; Nova Aguilar, 2003.

Mais um pouco de Rubem Alves

Todo jardim começa com um sonho de amor.
Antes que qualquer árvore seja plantada
ou qualquer lago seja construído,
é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma.

Quem não tem jardins por dentro,
não planta jardins por fora
e nem passeia por eles...

Viva a vida, segundo Rubem Alves

A vida não pode ser economizada para amanhã. Acontece sempre no presente

Ah...Wilde...sempre!

Feliz sou porque amo e sou amado
Sem ter que alterar nem ser alterado.

Sou o que sou, e quem me apontar
Os excessos medirá os que são seus;
A prumo talvez eu esteja, e eles vergados;
Os seus pensamentos não denunciam os meus atos.

Ano novo

Nova é a atitude, as ações que com coragem desempenhamos. O tempo é o mesmo. O ciclo só se fecha se o coração se abre. Aventurar-se na novidade...isso é ano anovo, minuto novo.
Desejo aos leitores um novo de verdade. De alegria.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Qual sua personagem favorita? II

O Rouxinol... O Rouxinol e a Rosa é um adorável conto infantil do querido Oscar Wilde. O pássaro tão cantado pelos poetas personifica um ve...