sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O que pode um corpo?

                       Nosso corpo é limitado, sujeito à ação do tempo e do espaço. Quando, porém, alçamo-
nos interiormente, crescendo por dentro, como diria ernando Pessoa, experimentamos o inusitado.
Este corpo singular saboreia toda a sua pluralidade e alcança movimentos e contornos só possíveis na
imaginação. Este corpo agiganta-se ao abraçar a existência em sua capacidade total.Dizendo sim, este
 corpo se encontra.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Diário IV- Desapego

     Desapegar-se. Tarefa muitas vezes árdua. O desapego é exercício de vida. Despargar-se para ganhar; desapegar-se pra vencer uma dificuldade; desapegar-se para garantir novos e melhores hábitos. A rotina atrai porque não gera surpresas (que podem ser indesejadas ou desagradáveis). A mesmice do cotidiano pode ser monótina,mas se não nos obriga a tomada de atitudes, pode conquistar-nos totalmente. Uma reviravolta pode surtir efeitos mágicos principalmente interiores. Ousar ser diferente,pensar diferente, dizer diferente. Isto também é arte.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Diário III

        Corro os olhos pelas páginas do livro favorito e viajo para Londres (lembro-me de Huysmanns tomando café aguardando o trem para Paris e fazendo todo o percurso ali mesmo).
       Entro na sombria Bond Street e penso nas carruagens a toda velocidade levando comerciantes ao trabalho, cavalheiros para encontros amorosos ou duelos vingativos e inspiro o ar de pó e nostalgia. Desço vagarosamente e chego no Hyde Park. A tarde cai e não posso me furtar do divertimento de me ver junto ao monstro (isto divertiria Stevenson). Indagaria acerca do que o moveria hoje. Acho que Dr Jekyll seria o escolhido. A impaciência e a cólera deste século deveria desejar a calma do médico.
     Devaneios.
    Até a próxima parada!

domingo, 9 de dezembro de 2012

Omnia vincit amor- Virgílio (70-19 a. C.)

*O amor vence tudo.

                    Verdadeira e acalentadora sentença de Virgílio. Tudo a que nos propusermos, se feito com cuidado, trará benefícios, especialmente interiores.
                    Fazer o trabalho com o amor de quem sabe ser este seu dever primeiro. Dificuldades, incompreensões, nada pode apagar ou abafar a alegria e a tranquilidade que vem da obra realizada. Aí reside o segredo da arte de viver. Isto exige criatividade e flexibilidade.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Para um aconchegante dia chuvoso, um pouco do "wild" Wilde


"Ser grande significa ser incompreendido."

Se existe no mundo coisa mais aborrecida do que ser alguém de quem se fala é certamente ser alguém de quem não se fala."


"A finalidade da arte é, simplesmente, criar um estudo da alma."

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Nulla dies sine linea -pintor grego Apeles, século IVa. C

*Nenhum dia sem uma linha


A excelência está na prática diária e constante. É fato. No entanto, escritores e pensadores como Borges e Nietzsche chamaram a atenção para a urgência da escrita. Escrever como necessidade física e intelectual. Escrever para não morrer. A arte não espera e resiste à delongas. O impulso à diligência torna-se marca de artistas que não se conformam,mas formam-se dia a dia. Non est ad astra mollis e terris via (da terra para as estrelas não há caminho fácil), já dizia Sêneca. A busca do belo convoca homens e mulheres de todos os tempos

sábado, 17 de novembro de 2012

Chá das cinco com Alberto Manguel

          À mesa com o Chapeleiro Maluco - sobre corvos e escrivaninhas, publicado em 2009 pela Companhia das Letras,constitui saboroso solilóquio do cidadão canadense, nascido em Buenos Aires, Alberto Manguel.
          Nos vinte e seis ensaios agrupados em cinco capítulos, Manguel 'discursa' um elogioso périplo cultural por entre as linhas de expoentes da cena artística, como Stevenson, Julio Verne, Conan Doyle, Van Gogh, além de suas próprias reflexões acerca do impacto destas figuras em sua vida e na 'vida do mundo'. Manguel oferece, assim, o chá de uma escrita fluida a leitores ávidos da talvez "única justificativa para a literatura: que a loucura do mundo não nos tome por completo (...)nossa copa, nossa sala e a casa inteira".
          Partindo do chá celerado promovido pelo Chapeleiro de Carroll - e compartilhado ao longo da história por torturadores,terroristas e exploradores -, Manguel empresta força para experimentar a loucura,mostrando como os artistas, lutando com suas penas e pincéis, dela emergiram "por meio de atos extraordinariamente humanos, irracionalmente sábios e insanamente audazes", lutando contra a prepotência.
             O mundo, esta biblioteca de signos, como diz Manguel, abriga textos misteriosos que a arte gratuitamente chama à interpretação. O tesouros dos segredos revelados residirá na mente aberta do leitor ideal de que nos fala em um dos capítulos que merece destaque:"aquele que é capaz de dissecar o texto, retirar a pele, fazer um corte até a medula, seguir pela artéria e depois dar vida a um novo ser sensível". Se viemos ao mundo como leitores, "nosso primeiro impulso é decifrar o que percebemos a nossa volta" e nada como a arte para revelar o oculto aos condenados à vida consciente.O primeiro passo foi dado por aventureiros, como O Quixote de Cervantes, que ousaram questionar e questionar mesmo permanecendo "implacavelmente sem resposta". Pelo espectro de uma resposta lutaram.
             Para a loucura ininteligível do mundo, Alberto Manguel atesta que "Alice e as sombras de se País das Maravilhas representam para nós os mesmos papéis que representamos e vemos  representados no mundo real(...), contam histórias de comportamentos absurdos e insanos que refletem os nossos para que possamos vê-los e entendê-los melhor" e assim, erigirmos, com criatividade e imaginação a verdadeira existência a que fomos chamados - a artística.
           

sábado, 10 de novembro de 2012

Conversa comigo especial: Horas non numero nisi serenos

                       Folheando o interessantíssimo Dicionário de máximas e expressões em Latim, de Christa Pöppelmann, a atenção, ávida de aprendizado, recai nesta máxima que constitui um lema de vida. O grande desafio do homem moderno (ou pós-moderno?) diante dos inúmeros obstáculos cotidianos. A angústia da indiferença, da insegurança, das incompreensões, ameaça corroer os corpos cansados. O olhar apressado deixa passar o colorido e abraça sem querer o cinzento. Esforço-me (e forço-me) a contar cada segundo feliz vivido ao lado dos que amo, fazendo o que gosto e exercitando desprendimento. O mundo tem uma beleza peculiar quase sempre velada, escondida, que veste e reveste as coisas. Nosso destino é a descoberta diária.

A Rui Barbosa

                                              Coração criador
                                                Presença palpitante
                                                Sem passado ou futuro
                                                Argumentação que nega
                                                O torpor
                                                Microcosmo do mundo,
                                                Intrépido,
                                                Convoca indivíduos
                                                À ação em defesa da justiça esquecida
                                                Águia na escolha das palavras
                                                Fortiter  in   re,  suaviter  in   modo*



* Mais forte nas coisas, mais suave nas maneiras.
                                            

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Diário II

                         Adormeço o passo enquanto, à minha volta, a agitação frenética persiste. A arte de ver o belo em tudo parece contaminada e abafada pelo acúmulo de informações, cores, aromas e sons. As inúmeras opções  de lazer, de compras distraem o indivíduo do inerente desejo de pausa. O culto ao ócio tão prezado aos artistas do século XIX - que bem entendiam da necessidade do exercício do pensamento para um melhor desenvolvimento das potencialidades - foi substituído pela ação excessiva até nos momentos que seriam de descanso. É como se pairasse sobre aquele que se decide pela pausa uma certa 'culpa'.
                        Amorteço o passo e penso que escolho a pausa. Para fazer nada e fazer deste nada o tudo de descanso que meu corpo e minha mente necessitam, para perceber os sons encantadores da natureza, das vozes queridas, das risadas infantis. Escolho a pausa e torço por mais companheiros de jornada.
                       Vem comigo?

domingo, 28 de outubro de 2012

Sonho o conto, conto o sonho I

                          Conto o sonho que contei ou sonho o conto que contei. Nem sei. O que sei é que acordei em uma sala com pouca luz e uma biblioteca gigantesca. A maior que os olhos da imaginação poderiam conceber. As capas dos livros eram multicoloridaas. Cada corem uma determinada prateleira como se representasse o assunto do texto. Chamou-me atenção a coleção amarela (por certo - afinal,minha cor favorita). A ordenação não era alfabética,nem pelo autor nem pelo título. Todos os livros, no entanto, com capas amarelas (de diferentes matizes, é verdade - o que aguçou ainda mais a curiosidade até então cansada da rotina do escritório. Autores estrangeiros e brasileiros desfilam  diante de meus olhos ávidos de explicações. Oscar Wilde, Clarice Lispector, Gustave Flaubert, Charles Baudelaire, João do Rio, Rubem Dario, Elysio de Carvalho, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Joge Luis Borges, Miguel de Cervantes, Lima Barreto. Todos em amarelo. Rapidamente, olhos cerrados, busco nos arquivos da memória o que teriam em comum. A rebeldia, a não conformidade, amor incondicional à arte, jogo constante de palavras, construtores de labirintos. Era isso, então. Os tons mais fortes ou mais suaves poderiam significar as consequências enfrentadas na defesa desta paixão. Abro os olhos, pensando que sim. Obras de uma beleza peregrina, delicados (e por vezes bruscos) toques de genialidade. Fascinante! Passei do encantamento à indagação acerca do organizador e idealizador de tal façanha.  Um empreendimento como este deve ter consumido anos. E quanto às outras cores? No vermelho apaixonado, visceral encontrei Augusto dos Anjos, Bocage, Alvares de Azevedo, Cruz e Souza, Medeiros e Albuquerque, J. D. Salinger, Philip Roth, Graciliano Ramos. Artistas da carne, da terra, que insistiram pela rai das coisas. O verde da natureza trouxe Victor Hugo, José de Alencar, Cecília Meireles, Bernardo Guimarães...Extático, deixo correr os olhos e a textura parece se ajustar às nuances das cores. Explico-me: abri os olhos rapidamente para observar que os tons mais fortes eram de uma maciez e suavidade impressionantes. Odores variados chegam no instante completando a dança dos sentidos. Onde estou? O pensamento se materializa e as palavras rompem num grito. Onde estou? Olhos de um verde esmeralda encantador e reluzente me observam do centro de uma das prateleiras e de lá soa uma voz: "Alea. Você está em Alea." Onde fica este lugar? Em que país? Em que continente?" "Em Alea, a vida é aproveitada em sua plenitude e procurmos evitar atribulações e perturbações". "Estou perturbado agora, já que não sei como cheguei nem o que faço aqui e tampouco como sair daqui!" "Você se preocupa demais. Percebeu tudo a sua volta? Já tinha visto algo assim? "Nunca." "Já não valeu a pena a vinda?" "Não sei. Não consigo entender o propósito." "De que?" "De estar aqui!!!!" "Hum... Caso difícil o seu." "Como ousa julgar-me. Estou em uma cidade fictícia, conversando com um par de olhos brilhantes numa biblioteca com inusitados aromas e cores mil. Como não estranhar?" "Maravilhar" "O que?" "Maravilhar-se. É disto que precisa. Abra os olhos." "Estão abertos." "Ainda não. Abra-os agora..."

                           Ao pé do moinho nas montanhas, avisto a armadura. Adiantou-se e isso me alegrou. Sorri, ansiosa. Seus olhos eram de umaa zul profundo e de sincera pureza e brandura. "Encantado, bela donzela. Dom Quixote, a seu serviço. Perdoe-me se pareço um tanto cansado. Volto de uma aventura em terras geladas e ainda recupero o fôlego. A nobre donzela sabia que novos povos estão se estabelecendo ao norte? Gente interesante. Viam-me como aumigual. Quase não quis voltar. Mas,você sabe...Dulcinéia me espera." "Onde ela está?" "Boa pergunta. Preciso consulta meus manuscritos e mapas. Encontro-me ao sul de Alea.." " Sim, sim. Alea. Estamos em Alea. Ou assim me disse o ser de olhos de esmeralda." "Encontrou-se com ele também?! Ele me indicou   caminho quando aqui cheguei." "Você veio de onde?" "De Mancha. Que saudades! Para voltar devo fechar os olhos, mas há aqui tanto ainda a se fazer...Estou deveras cansado,porém...Não posso parar. Sigo. Boas sortes, amiga." "Não vá ainda. Ajude-me.  Quero ir para casa." "Ha, ha. Mas, você está em casa. Adeus."

                          Sozinha mais uma vez. A visão parece falhar. Vejo um vulto ao longe....

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Diário

                     Vozes de inúmeras pessoas que passaram por minha vida ecoam em minha mente. Risos, lágrimas, pedidos, respostas, encontros, desencontros, tudo torna o meu silêncio um saboroso barulho. Sons resgatados pela memória sequiosa daquela alegria juvenil que embala os dias de ócio.
                  Se o medo cala, a audácia procura seu lugar em meio ao sonho de mudanças a cada nova descoberta e amor. Só pelo e com amor seremos lembrança e palavra imortal.
                  Muito há ainda por fazer.

A Capitu

                                                    Meus olhos
                                                    Não são como os teus
                                                    Admiro,
                                                    de longe, a ressaca
                                                    E invejo teus instantes
                                                    O fulgor que embalava
                                                    Teus dias de ócio
                                                    E, mais
                                                    O amor pela vida
                                                    Ou ainda,
                                                    O amor pelo que a vida ofereceria
                                                    Àqueles que ousassem
                                                    O passo além

sábado, 13 de outubro de 2012

Infância

                                 Presente no tempo
                                 Alheia ao espaço
                                 Avessa à solidão
                                 A criança corre
                                 Vai e volta
                                 Ri-se como se fosse múltipla
                                 Conversa com seus duplos
                                 Cai, gargalha
                                 Recomeça
                                 Sente-se toda
                                 Completa
                                 Única em sua multiplicidade
                                 Corre ainda vez mais
                                 O tempo é como se não fosse
                                 De olhos fechados,
                                 O espaço não existe
                                 É só ela
                                 Plural e singular

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Pedro Bandeira

                                                    Carregaste minha infância
                                                    Afagaste meus dias
                                                    Surpreendeste-me com o brilho das aventuras
                                                    Coloriste minha vida com a fantasia necessária
                                                    Descobri tesouros
                                                    Esqueci fracassos
                                                    De palavras inocentes  cobri minha alma
                                                    Sorveste o melhor de mim
                                                    Retribuo a delicadeza
                                                    És parte de mim

sábado, 6 de outubro de 2012

Rituais II

                                       Veste a melhor roupa
                                       Escolhe o batom e a bolsa.
                                       Senta-se de frente para o espelho
                                       Os olhos parecem cansados
                                       Mas ainda guardam o brilho infantil da curiosidade
                                       A esperança ainda nutre suas entranhas
                                       Levanta-se
                                       Era a hora da estrela

O instante

  "Às vezes podemos passar anos sem realmente viver, e de repente toda a nossa vida se concentra em um só instante". Oscar Wilde


   Por este instante, vale a pena tudo o que tenha passado. Por este instante, caminhamos na dificuldade.Pela lucidez deste instante, movemo-nos por entre espinhos.Por este instante, ousamos viver e não apenas existir.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Na noite



                                             A luz esmaece
                                             O burburinho cessa
                                             O silêncio cresce

                                             À força, a página se abre
                                             Criaturas fantásticas se descolam
                                             Ligeiras
                                             Matreiras
                                             Em busca do eleito
                                             O tempo é curto

                                             Encontra-se sentado o jovem
                                             Sonhador
                                             Olhos no firmamento
                                             Livro na mão

                                             Encontra-se ali
                                             O nosso quinhão
                                             A ele corramos
                                             O canto entoemos
                                             Que seja seduzido
                                             Aquele varão

                                             O jovem sente as lágrimas
                                             Os olhos voltam à página

                                              O dia amanhece

                                              Missão cumprida.


                                   



Alice e eu - uma fábula

  "Quem é você?"
 "Ninguém."
 "Ora veja se você se parece com Ulisses. E acaso pensa que sou um ciclope? Responda-me sem gracejos. Quem é você e o que faz aqui?"
"Peço que me perdoe. Ainda estou surpresa e, confesso, assustada. Você é mesmo  Alice? A Alice de Carroll?
"Sou Alice do Pais dos Espelhos e não me lembro de nos conhecermos. Você vem de que reino?"
"Conhecêmo-nos há muitos anos. Eu ainda era pequenina e sábia. Meu reino fica distante daqui."
"Como se chega lá?"
"Daqui, não sei. Soube chegar."
"Como o fez."
"Fechei os olhos, comi um pedaço de bolo e imaginei-me com o livro aberto, no portal dos Espelhos."
"Uff! Você  é então das nossas. Por um instante pensei que pudéssemos estar passando por uma nova invasão da Rainha de Copas. Do que necessitava para recorrer a nós?"
"Repouso."
"Entendo. Seja bem-vinda. Estava a caminho da escola. Quer me acompanhar?"
"Escola, aqui? "
"A lição de hoje é de Edgar Allan Poe: Toda certeza está nos sonhos."
"É uma bela lição."
"Um pouco difícil para alguns. As pessoas estão sempre atrasadas para compromissos (lembra-se do coelho? Bem, o corre-corre dele até me foi útil para chegar até aqui) e deixam que o maravilhoso lhes escape.Você está de parabéns hoje."
"Como?! Nada fiz. Sou exatamente como você descreveu - apressada por demais."
"Você está aqui, não é? Encontrou seu territóro de repouso - esta página - que pertence a você."
"Sinto os olhos pesados, Alice."
"Hora de voltar. Venha visitar-me de novo."

sábado, 22 de setembro de 2012

Machado de Assis, profundamente plural

                A obra que, em sua gestação alimenta o desejo de resistir à inexorabilidade do tempo cronológico, propõe embates que impelem questionamentos. Abrindo-se em cada releitura a novas perspectivas de ação e reação ela traça, assim, seu destino rumo à perenidade.
              Machado de Assis, escritor com olhar de ressaca,colecionador de memórias póstumas, marca sua entrada no jogo da literatura com um exercício singular na escolha de temas que primam por um bailado atemporal. Pinçados meticulosamente, são convite para a aventura de experimentar e desenvolver as potencialidades.
               O bruxo do Cosme Velho, na alquimia das palavras, transita pelos gêneros literários 'alienando' o leitor a todo comportamento previsível e ensaia na helênica beleza de espelhos conjugados o entrelaçamento de realidade e ficção. Esaú e Jacó, Machado e leitor, parecem engendrar uma luta pelo amor da mesma musa - a letra. Mais verdadeiro, no entanto, seria firmar que são parceiros como a mão e a luva, um completando e estetizando o outro. A multiplicidade de seu corpus exalta o brilho  da vida devotada à arte. Quando o leitor pensa ter desnudado sua intenção, Machado, sempre à espreita, desfaz fio a fio o bordado das sílabas e das frases. O recuo exigirá um impulso ainda mais forte para além da obviedade, em direção ao imensurável. Este maravilhoso escritor permite a percepção do texto como corpo com espaço, tempo, cores e formas próprios que não se quer, porém, descolado do universo cotidiano porque é coincidência entre natural e artificial, entre a atividade voluntária e a inconsciente.
               Consagrando um século precursor de importantes mudanças, Machado de Assis provoca ainda hoje, com ironia e doçura, a aversão à comodidade. Em um escritor como ele, a arte sempre vence.

domingo, 16 de setembro de 2012

ainda, a carta

            Peço desculpas pela demora em voltar à carta. A emoção da releitura dos textos tomou-me de tal maneira que faltaram-me as palavras. Diverti-me depois comigo mesmo. Como para alguém que ama as palavras pode as deixar faltar? Que meu silêncio,porém, fale da importância que escritos como A alma do homem sob o socialismo ou De Profundis podem oferecer para a compreensão,não só do pensamento revolucionário de uma época,como também das capacidades adormecidas de cada indivíduo. Espíritos livres de amarras que ameaçem a imaginação e a criação teem um papel revelador em qualquer época da história. A cada releitura,Sr.Wilde, vejo-me impelida àquele passo a mais, exigido de todos os que se entendem como texto.
           Prometo ainda não atrasar-me na carta. Volto ainda.

Limiares

             A cada dia somos desafiados a ultrapassar limiares. Do umbral da porta de casa a escolhas de tarefas ou empregos. Não sabemos o que nos aguarda do outro lado - só a expectativa pela novidade que transformará mais uma vez nosso cotidiano. Cada página virada escreve e reescreve nosso roteiro,pontuado de clímax e anti-climax. Por vezes, a trama surpreende com limiares, à primeira vista, assustadores. Enredamo-nos neste texto que escrevemos com nossas decisões e com o bem que podemos fazer a partir delas. Num mundo marcado pela rapidez, ousamos caminhar vagarosamente saboreando cada palavra e cada frase como são - únicas e irrepetíveis. Cada partícula de tempo é uma palavra que não voltará ao nosso texto da mesma maneira.
             Aproveitemos o instante para 'arrumar' e 'enxugar' nossa obra de arte, atravessando limiares com coragem e repletos de alegria interior.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Ainda a carta

                   
 O emprego do paradoxo nas cativantes comédias dramáticas marcam o estilo que este novo artista gostaria de imprimir à letra vivida. Nas idas e vindas destes corpos, percebe-se uma leveza e uma atraente simplicidade. Dotadas de vigor, vestidas com o manto da arte,  com que o senhor as vestiu, as personagens deslizam pela hipocrisia da sociedade vitoriana, pincelando o contexto com novas nuances. Seus textos teem o primor e o frescor da atualidade.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Carta a Oscar Wilde

                            Caro amigo.

                            Cada palavra lida - um intrigante bailado - modificou sensivelmente minha visão acerca do papel, ou ainda, da força da obra artística.
                             Começando pelos contos infantis, declaro, sem reservas, que o encantamento persiste quando da releitura. A sensibilidade dos textos alcança o adormecido nos leitores. Não digo desconhecido, mas adormecido mesmo. O grande autor descortina, desvela o que a vida com suas exigências leva-nos, de certa forma, a deixa para trás. Foi-me relembrado o valor que algumas coisas não podem deixar de ter : a lealdade a princípios, a amizade, o desprendimento em relação ao material, o amor.
                            Acho que será uma longa carta, folgo em dizê-lo. Escrevo uma página por vez em homenagem à página que o senhor recebia por vez na prisão.

sábado, 8 de setembro de 2012

Rituais

                              O monge beneditino Anselm Grün em seu livro 50 rituais para a vida, destaca a importância dessas atitudes como lugar de encontro.
                              Pus-me a considerar como alguns escritores, seja em busca de inspiração ou mesmo como espaço de recolhimento, exercitam rituais na criação. Oscar Wilde, por exemplo, não saía de casa sem um caderninho de anotações. Alguma frase ou comentário, alguma situação ou incidente que acreditava pitoresco, anotava como tema para debates com amigos ou novos escritos. Ainda ele, à noite, contava histórias para os filhos antes que estes adormecessem. Alguns outros escritores contam que visitavam as cidades que serviriam de cenário para seus livros antes de confeccionarem os textos. Outros ainda fecham-se em um quarto ou na biblioteca pessoal para,no silêncio, aguardarem o amanhecer das palavras antes adormecidas. Rituais fazem parte de nós e trazem uma certa segurança em meio a tantas incoerências. Os amantes da arte buscam nos rituais este espaço onde o mundo descrente não tem vez; onde a fantasia se apropria do tempo e do espaço; onde existências imaginárias dançam livremente e oferecem um colorido inusitado ao cotidiano.
                               Um belo ritual para tranquilidade da mente é a leitura de uma página literária por dia. Que tal?

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Nos passos do Rio antigo II


                  No Cosme Velho do bruxo Machado de Assis, exercito meu olhar de ressaca e vislumbro por entre as belas casas as cores dessa pena que destacou com destreza a alma humana, deliciando leitores de todas as épocas. Confundindo certezas, Machado habilmente mostrou o paradoxo de uma sociedade: o preconceito e a afabilidade; a rudeza e o acolhimento.
                 Intrigas, ciúme, desentendimentos, temas que contribuíram para uma profunda análise de comportamento. Também por causa de Machado enxergo mundo com outros olhos.

Nos passos do Rio antigo


                Caminhando pela Rua do Ouvidor, imagino-me com o olhar aguçado do detetive literário João do Rio. Como flâneur ele examinava a alma da cidade que se queria a Paris Tropical em meados do século XIX e início do XX. Admiro o cuidado de retratar o que podia observar nas ruas, nos salões,nos teatros; o comportamento e a atitude de umapopulação que se concentrava no centro e entre a tradição e a modernidade procurava o seu lugar. João do Rio deu voz e chamou a atenção para estes excluídos que recebiam as consequências do que exigia a virada de século. O mundo mudara, uma nova classe social - o proletariado - se formava e João com a pena no compasso deliciava seus leitores com perspicácia e ironia.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

No labirinto com Borges

 Em Arte poética:

                             "Fitar o rio feito de tempo e água
                              E recordar que o tempo é outro rio,
                              Saber que nos perdemos como o rio
                              E que os rostos passam como a água.

                              (...)

                              Às vezes pelas tardes certo rosto
                              Contempla-nos do fundo de um espelho;
                              Aarte deve ser como esse espelho
                              Que nos revela nosso própro rosto.

                              (...)"


   Vejo-me muitas vezes nas linhas destas obras que perduraram e sinto que,como eu fui modificada por elas, suas páginas também foram por mim modificadas.

domingo, 2 de setembro de 2012

Jane, Oscar e eu II

"Mesmo reconhecendo o merecido sucesso de Orgulho e preconceito, confesso que o meu favorito foi Persuasão."

"O tema oferece mesmo motivo para reflexão. Quantos de nós  somos persuadidos a apresentarmos determinado comportamento ou opinião para sermos aceitos no grupo, não? Ann foi convencida a renunciar ao grande amor porque a situação econômica do jovem não condizia com sua condição. O Capitão Frederick conservou-se fiel ao sentimento, apesar da mágoa."

" Uma das minhas partes favoritas: a carta em que ele declara que há oito anos esperava por ela. A carta é uma forma de expressão tão íntima e pessoal. Penso ter sido a escolha perfeita."

"Concordo plenamente. A carta mais longa que escrevi foi De Profundis. Mesmo persuadido a desistir pelas circunstâncias e dificuldades (só recebia uma folha de papel por dia e não podia reler o já escrito anteriormente), impelia-me a vontade de mostrar na letra a dor e o aprendizado."

"Caro Oscar. Releio a carta para de alguma maneira compartilhar o que sentiu."

"Jane, Jane. Sempre encantadora. Não pense que não recorro a seus textos com frequência. Simplesmente adoro sua análise de personalidades."

"Hoje,permitam-me, eu gostaria de propor um brinde de agradecimento. Nas entrelinhas da história, vislumbramos um ponto de encontro. A nós."

O silêncio na entrelinha

                         Toda obra literária conserva, entre os sons e os ruídos das frases, muita informação no silêncio das entrelinhas. Poderíamos ir ainda além: os silêncios entre cada palavra guarda alguns segredos que, ao longo dos anos, vamos decifrando, um a um, vagarosamente. Neste sulco, o autor lança sementes que o leitor atento fará florescer. Um texto lido em diferentes fases da vida trará diferentes matizes. Deste silêncio que fala retiramos ensinamentos, advertências, novos movimentos para a grande biblioteca do mundo.

sábado, 1 de setembro de 2012

Jane, Oscar e eu

"O século XIX gerou artistas singulares que selaram seus destinos em textos provocantes, sempre à procura de respostas e ousando formular curiosas perguntas. Como você, Jane Austen, conseguiu se destacar em uma sociedade predominantemente masculina?"

"A jovem parece estar me entrevistando, Oscar. Deveríamos conversar informalmente."

"Deixe-a, Jane. Os encontros com você sempre evocam questões nos leitores e admiradores. Gostaria também de saber sua resposta."

"Desculpem-me. É a empolgação."

"Ora, deixe disso. A verdade é que o Sr. Wilde diverte-se quando a atenção se volta para mim e coro como uma adolescente."

"Ah, deveras."

"Sinto tê-la ofendido."

"Você não me ofendeu, querida. Não foi nada fácil. Espíritos livres que se recusam a perpetuar convenções que limitavam a força imaginativa e criadora enfrentaram consequências sem, contudo, nutrir arrependimento algum. Minhas histórias estão recheadas de romantismo com aquele toque indagador acerca do papel da mulher, sempre submissa e dependente de imperativo casamento para plena realização pessoal e social. Oscar, você como ninguém enfrentou os que chamou de filisteus quando do lançamento de sua Salomé."

"Uma mulher que despiu-se dos receios e vestiu-se de sedução, dançando para a morte. Uma ousadia que me custou diversas explicações e a publicação em língua francesa como repúdio às críticas sem sentido."

"Eu amava a letra e queria viver dela, com ela. Foi um caminho árduo,mas válido em cada instante."

"E para você, Sr. Wilde?"

"Oscar, por favor. Vivi na arte e pela arte. Não saberia ter vivido de outra forma. Imaginei cada passo como se imagina e escolhe a frase ideal a ser dita por cada personagem. Espero, agora, sua Ode à literatura. Jane e eu a convidamos  para  um brinde. Ao que virá após as reticências..."

Da literatura

                     O professor catedrático da Universidade de Bristol H.D.F. Qitto diz em seu livro Os gregos: "O que destila, conserva e enriquece a experiência de um povo é a literatura."
                     A força desta palavra que se quer imortalizada se insinua  e feliz o povo que a abraça e acolhe, reconhecendo nela a perpetuação de sua cultura. Escrever para ler e reler os costumes, hábitos e pensamentos de personagens que não se abstiveram de imprimir suas marcas para que aqueles que viessem depois pudessem desfrutar dos movimentos em cada ato. Cada texto vivido e descrito revela forçosamente a vontade de progresso e desenvolvimento.

                     Sempre amei os livros e tive com eles uma relação muito pessoal;  acredito que a literatura tem um encanto curativo. Ela dá esperança num futuro que parece próximo. Frequentemente aconchego-me nas páginas de certos livros quando necessito de silêncio,  de um sorriso ou mesmo de soltar de vez as lágrimas retidas. O texto literário é sempre generoso. Temos caminhado juntos. Ele me escreve e eu leio. Minha história vai assim sendo fiada.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Acerca da saudade

               Continuo refletindo sobre a saudade e Borges e chama a atenção para uma perspectiva nova para este sentimento: "a música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo,ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético." (A muralha e os livros, 1950). Essa dor querida parece ser, assim, um gemido da arte para que nossa atenção se volte mais uma vez para o que ficou para trás. Mesmo tomados de emoção, exercitaríamos pela memória certo tipo de criação artística, observando agora o que poderia ter passado despercebido. Sonhando acordados, rememorando, fazemos arte.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Ainda conversando comigo

              Pensava hoje na saudade, esta nostalgia do inacessível,a ansiosa evocação de um passado querido ou daquele olhar, daquela voz de alguém que deixou sua marca em nós. É inevitável uma comparação entre o já vivido e o tempo presente. A saudade parece ser assim uma saudação àquele instante que,agora, chega à memória envolto em magia. Transportamo-nos a esse tempo outro, livre das amarras da cronologia e sonhamos que o amigo estimado não se foi e nos sorri, que aquela cidade visitada está mais uma vez de braços abertos a nos esperar.
              Saudade tem isso. Alguns poetas definiram-na como aquela dor gostosa. É... é verdade. Lágrimas insistem em rolar,nem tanto de tristeza,mas de alegria também. Dor doída e querida,que faz perto o que já vai longe...

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Converso comigo

                   Algumas vezes imaginei roteiros para o meu dia a dia. Imaginei diálogos com conhecidos, com chefes, com familiares e amigos. Oscar Wilde disse certa vez que para vivermos uma verdade precisamos imaginar inúmeras mentiras. Não é verdade que quando queremos dizer algo importante, exercitamos as falas em nossa mente antes, para estarmos preparados para as réplicas? Vivemos a vida real e a vida que 'treinamos' em nossa imaginação. Somos forçosamente criativos. Todo o encantamento pode residir na fantasia das variadas conversações com nossas vozes interiores. Os textos nascem dali. Do que parece ser nada quando é tão parte de nós.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poemas para um corpo mascarado II


             (parte do texto publicado no livro Faces rituais de poesia)
 
            Ao hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo.  Obra prima, universalmente admirada, com três cores predominantes: branco, vermelho e cinza, que acompanham os últimos dias de condenados à forca, A balada da Prisão de Reading foi iniciado no chalé de Bourgeat em Berneval, França, em 1897, após sua saída da prisão. De todos os poemas por ele confeccionados, mostra-se o mais comovente, o mais carregado de experiência e de sentimento humanos.

         O compasso das palavras faz com que acompanhemos o prisioneiro-narrador e  Wilde no banho de sol, nas refeições, no árduo trabalho, na solidão de mil e uma noites sem contos, sem letras, tomadas, por vezes, de fantásticas e sobrenaturais experiências.  Os dois corpos agora são um. Diante do espelho, os rostos podem parecer diferentes, mas a dor os iguala; dobra-se sobre si mesmo e o embalo que conseguiu imprimir, angustia. O cumprimento da sentença poria fim às inúmeras ‘mortes’ enfrentadas a cada dia. Os versos de um condenado cuja perturbação está no fato de que: “(...)igual a um ano é cada dia, ano de dias infindáveis.” (WILDE, 2003,p. 982). A rima, produz neste ambiente um forte eco, “que no mais fundo do vale das Musas cria sua própria voz e a ela responde; a rima, que em mãos de um verdadeiro artista é não somente um elemento material de beleza métrica, mas um elemento espiritual de pensamento e de paixão, porque desperta novos estados da alma, dá lugar a um ressurgimento de idéias e abre, com sua doçura e com a sugestão de sonoridade, portas de ouro que a própria imaginação não conseguiu abrir(...)” (WILDE, 2003,p.1114). O chamado da Balada não segue o apelo das baladas tradicionais de rua; nela, a voz de Wilde é angustiada e determinante para que o poema fosse recebido com elogios.

O esteta, prisioneiro C3.3, constata, inversamente ao bardo Shakespeare,  que os homens matam a quem amam (Bassanio pergunta a Shylock: ‘Os homens matam aquilo que não amam?’)e matou-se, ao cair nas teias de uma justiça que desprezava, para renascer da lama e do lodo. Um dos prisioneiros do poema matou a mulher amada e morreria – não que esse fosse o destino de todos os criminosos no mundo, mas certamente o seu ( “já não usava a túnica vermelha/ Pois sangue e vinho são vermelhos;/ E sangue e vinho havia em suas mãos/ Quando co’a morta o encontraram,/ A pobre mulher morta a quem amava/ E assassinara no seu leito(...)./Uns matam seu amor, quando são jovens, Outros quando velhos estão(...)Uns matam a chorar, com muitas lágrimas, Outros sem mesmo suspirar../.Mas nem todos hão de morrer(...)”- WILDE, 2003,p. 969/970) .
No mesmo ano de 1898, após sua liberação, escreve ao diretor do Daily Chronicle “na qualidade de homem que conhece a vida em uma prisão inglesa por experiência pessoal(...)” (WILDE,2003,p.1446) sobre as condições e possíveis reformas no sistema presidiário, pois, uma das coisas mais trágicas da vida na prisão é petrificar o coração human. Os sentimentos e o afeto natural, como todos os demais, necessitam nutrir-se de algo, porque morrem facilmente de inanição...” (WILDE, 2003,p.1449). Assim, o condenado  narrador  da Balada, sucumbe ao irresistível desejo de morrer diante da aterradora solidão, pois “(...) nunca se aproxima voz humana/ Para dizer meiga palavra;/ Os olhos que da porta nos vigiam/ São duros e sem compaixão(...)” (WILDE, 2003,p.983). Esperava ansioso o derradeiro véu. Haveria, assim, paz? Não sabia. O desespero interior que o corroera por dentro só deixara brecha para esperança na morte: “A água salobra que bebemos lenta/ Com lodo, escorre, repugnante;/ E o amargo pão que pesam em balanças/ Está cheio de cal e gesso/ E de olhar desvairado insone vaga/ O Sono o Tempo a implorar.” (WILDE, 2003,p.983). Indiferente a tudo a seu redor – assim aprendera com os anos de confinamento : “E assim enferrujamos a corrente/ Da Vida, sós e degradados;/ Alguns praguejam, outros homens choram,/ E outros nem um gemido dão(...)” (WILDE, 2003,p.983) – aguarda contrito “as mãos sagradas que levaram/ O Bom Ladrão ao Paraíso(...)” (WILDE, 2003,p.984). O narrador está entregue a profunda desilusão, de onde se pergunta insistentemente se  poderá renascer em outra vida. Ele e seus companheiros, porém, “Esquecidos de que grande ou pequeno/ Fora o mal por nós praticado, olhávamos com triste olhar de espanto/ O homem à forca condenado/ E era estranho que o véssemos passar/ Alegre e leve a caminhar /E era estranho que o véssemos olhando/ Tão ansioso a luz do dia,/ E era estranho pensar que ele tivesse /Tamanha dívida a pagar.” (WILDE, 2003,p.972).  O condenado, diferentemente dos outros – até do narrador- abraçara o destino com estranha alegria; superara o sofrimento do erro e sentia ser a morte a libertação dele que matara a quem amara. O impacto deste comportamento do companheiro foi tão grande que tem, certa noite – que podia ser qualquer uma ou todas - uma visão estarrecedora : a dança de criaturas imaginadas que, moviam-se loucamente e pareciam mais vivas e reais que ele – de corpo e alma agrilhoados e, aqui,  o efeito hipnótico da dança – marcadamente assustadora e macabra – “(...)E rápidos passavam, deslizavam,/ Como na névoa os viajantes; /Imitavam a lua numa dança/ De giro e curvas delicados,/ E com passo solene e graça vil /Ao sabá chegavam as almas. /Passar vimos com careta e momos,/ Quais frágeis sombras de mãos dadas,/ Em tropel fantasmal rodopiando/ Dançaram a sarabanda:/ Os danados grotescos como o vento/ Na areia traçam arabescos!/ Com piruetas de marionetes/ Em pontas de pé saltitavam;/ Mas as plantas do Medo retiniam/ Naquela horrenda mascarada/ E cantavam bem alto e longamente(...)” (WILDE, 2003,p.976). O texto, portanto, guarda o elemento de sedução da morte tão peculiar nos decadentistas. A idéia, no entanto, fica ainda mais significativa quando, adiante, descrevendo o dia de trabalho, tece uma comparação: “A girar pelo pátio, lentamente,/ Éramos loucos em parada!(...)E a cabeça rapada e pés de chumbo/ Formam alegre mascarada./ Cordas alcatroadas esfiávamos/ Com unhas roídas a sangrar;/ Esfregávamos porta, co chão limpávamos, /Púnhamos grades a luzir; /Aos grupos, o soalho ensaboávamos,/ Chocando baldes com barulho(...)” (WILDE, 2003,p.974). Wilde convida mais uma vez para essa manifestação artística, recurso para que sentimentos sejam expostos. Desta vez, não marcada pela sedução que pode levar à morte, como em Salomé, mas pela morbidez, como se o personagem experimentasse o pesadelo anterior à fatídica visita da morte.

         Enfim, este serão lúgubre chega ao fim, o galo canta, as formas tortuosas se recolhem nos recantos das celas, deslizarão como fantasmas. Marionetes conduzirão o hediondo mascarado e cantarão para despertar o condenado. Enfim a sombra das barras se perfila sobre o muro caiado; o silêncio reina; o hálito gelado da Morte enche a prisão. Não há ofício nesse dia. Os detentos permanecem fechados até o meio-dia. Aí então, os guardas com suas chaves abririam cada cela, os prisioneiros desceriam pesadamente a escada de ferro. O passeio os faria notar a cal no sapato dos guardas: o trabalho estava feito, a horrível tarefa cumprida. Na prisão de Reading ficou o cadáver de um miserável devorado pela cal. Este túmulo de infâmia não tem nome.

A perfeição da forma do poema se junta às emoções sugeridas pela vida na prisão - o pavor, a piedade, o desespero, a indignação – ali desenvolvidas com uma simplicidade trágica.

 Wilde, condenado como o outro a morte do banimento, das profundezas de sua dor, desejou ainda alguns passos, algumas doces palavras ainda. Os duplos se encontram na memória do esteta. Dois condenados, o mesmo temor, a mesma humilhação, a mesma escuridão -  diferentes? Um dia se cruzam: “(...)não na noite santa/ Mas foi no dia, que vergonha(...)” (WILDE, 2003,p.973); havia morrido o companheiro e “(...)Um novo muro da prisão nos circundava/ A nós dois míseros proscritos; O mundo nos havia repelido(...)” (WILDE, 2003,p.973); o outro, porém, encontrara a paz da morte.

         Ao prisioneiro da Balada “de vermelho o homem que lê a Lei /Deu-lhe, de vida, três semanas,/ Só três semanas para lhe curar/ A alma da luta de sua alma,/ E limpar de qualquer mancha de sangue/ A mão que a faca segurava.” (WILDE, 2003,p.984). A Wilde foram dados cerca de três anos e, num colóquio nomeado Reunião em Paris, ciclicamente conclui: “Por  muito que nos esforcemos, nunca chegaremos a alcançar, por trás das aparências das coisas, a sua realidade. E a razão terrível de tudo isto talvez seja a seguinte: que não existe realidade alguma nas coisas, se são separadas de sua aparência.” (WILDE, 2003,p.1453). Se assim não fosse, como entender um condenado tão surpreendentemente feliz com seu destino, contemplando “(...) com tão embevecido olhar, Aquela pequenina tenda azul/ Que os presos chamam de firmamento...” (WILDE, 2003,p.969)(...)” “ E cada nuvem errante, que arrastava/ No ar seus desmanchados velos. /As mãos não retorcia como fazem /Aqueles néscios que pretendem,/ Na caverna do negro Desespero/ Erguer a Esperança enganosa,/ O sol ficava a contemplar, apenas,/ Sorvendo a brisa da manhã.” (WILDE, 2003,p.971). A tristeza da reclusão transforma-se na alegria do fim. Richard Aldington em The Portable Oscar Wilde cita as seguintes palavras ditas por Wilde a André Gide acerca da leitura de livros na prisão:

“I thought, at first, that what would please me most would be Greek

literature, so I asked for Sophocles, but I could not get a relish for it. Then I thought of the Fathers of the Church, but I found them equally uninteresting. And suddenly I thought of Dante. Oh! Dante. I read Dante every day, in Italian, and all through, but neither the Purgatorio nor the Paradiso seemed written for me. It was his Inferno above all that I read; how could I help liking it? Cannot you guess? Hell, we were in it – Hell, that was prison.” 7.

 

Wilde foi libertado em maio de 1897 e diria que se tivesse sido libertado um pouco antes teria deixado o lugar sentindo por ele e seus funcionários um ódio amargo que teria envenenado sua vida. Agora relembra as grandes bondades que quase todos tiveram por ele, no último ano (o diretor havia sido trocado e fora permitido ao esteta a leitura de jornais e uma alimentação mais diferenciada).  O prisioneiro C3.3 foi a máscara de ferro que mudou sua fisionomia, fez a cabeça tombar, mas redobrou o amor à vida. Desse conflito chegou à harmonia da luz e da treva; ao se colocar meditativamente acima das consideráveis conseqüências da dor, gerou mais uma vez a obra de arte.

Em 13 de fevereiro, é publicada a primeira edição composta de 30 exemplares ao preço de um guinéu em papel Japão e de 800 exemplares sobre papel Holanda vendidos por meia-coroa. A dedicatória , aqui reproduzida, foi suprimida a pedido do editor Leonard Smithers:

 

 

“Quand je sortis de prison, certains vinret à ma rencontre avec des

vêtements et avec des épices, Et d’autres avec de sages conseils,

Vous ,’avez apporté votre amour.”

 

Em 1913, uma importante edição em língua francesa foi precedida de um relato histórico acerca das circunstâncias que permearam a composição e publicação do poema em língua francesa na Coleção Autores estrangeiros de “Mercure de France”. O texto em inglês foi colocado ao lado da tradução no volume a venda. A principal razão seria oferecer um número de páginas razoável que justificasse o alto preço, o que preocupou Smithers, pela concorrência A grande novidade foi ser ilustrada – o artista deveria interpretar a expressão tragicamente simbólica do destino humano, este canto de dor vindo das profundezas da pior miséria - e Gabriel Daragnés foi o escolhido. Wilde havia conhecido as alegrias e o orgulho do sucesso, o futuro lhe ofertara a miragem da celebridade, das honras e da glória, mas chegou à imortalidade por uma estrada imprevista. Amante do desenho, Wilde imaginara a composição, o formato, a encadernação e fazia disso um jogo no qual os recursos de seu gosto delicado e de sua faustosa imaginação eram infinitos. O esteta sabia que seu poema não era uma obra de circunstância, mas inspirado por um suplício físico e moral de dois anos; por isso, estava destinado a co-mover tantos quantos o lessem. Conta D-Dravray, o tradutor francês, da relutância de Wilde em transpor o poema para esta língua. Ele sentia algum embaraço para justificar sua recusa, tentando dissimular com um sorriso contido, uma faísca no olhar; parecia não entender que D-Davray pensava numa versão em prosa. Entendida a intenção, disse que o mérito do poema residia em grande parte na sua forma e sem a música do verso não restaria nada. Começou por desafiá-lo a traduzir com perfeição e esmero passagens de Keats, Racine, Shakespeare, Coleridge, Shelley e William Morris, torturando a memória  do tradutor. Continua D-Davray que Wilde parecia escutá-lo com um ar ao mesmo tempo divertido e surpreso. O último argumento para convencer Wilde foi fazê-lo observar que os próprios poetas ao traduzirem poetas, haviam recorrido à prosa, por exemplo, Mallarmé com sua versão do Corvo de Allan Poe. Sentiram a necessidade de escapar aos entraves e às restrições da métrica. E termina dizendo que o próprio Wilde teve a experiência, já que sua Salomé é um poema em prosa. Gargalhando, o esteta se dá por vencido e ambos passam a trabalhar na primeira versão, pronta em poucos dias, com cada palavra pensada, cada frase lida em voz alta, relida, silabada, com todas as entonações possíveis. Os detalhes sobre a prisão desconhecidos pelo tradutor eram explicados com toda boa vontade por Wilde, que reconhecia o esforço de D-Davray, mas repetia que faltava a ele ter estado em uma prisão, e inglesa! Até lá, não possuiria uma versão completa e a tradução estaria imperfeita. E sobre isto, certo dia declara num tom solene estar tudo resolvido para que D-Davray passasse uma temporada em uma cela na prisão de Reading, por Wilde alugada. O tradutor estremece e diverte o esteta. A partir da jocosa sugestão passa a se mostrar indulgente e bem-humorado. D-Davray termina o relato desculpando-se por entrar em cena, mas a intenção foi evocar a luminosa e inesquecível figura do poeta. Com a Balada, deixa de ser o Sirius  – estrela mais brilhante do céu, da constelação do Grande Cão – da comédia irônica, atitude ensaiada em De Profundis (ainda escrita no cárcere). Acolhe a tragédia com mais veemência. A Balada é fruto do martírio; visa a eternidade. Diz Michel Foucault que “o encantamento não está ligado a um segredo depositado nas dobras da linguagem por uma mão exterior; ele nasce das formas próprias a essa linguagem quando ele se desdobra a partir dela mesma segundo o jogo de suas possíveis nervuras.

         A escrita poética feita vida por Wilde abriu nosso olhar não só para o que fora criado, como para tudo o que ainda poderá vir a acontecer quando a força artística é reconhecida parte integrante e essencial da existência.



 

domingo, 26 de agosto de 2012

País do Espelho

                     Ainda visitando os lugares imaginários recolhidos por Alberto Manguel, faço uma parada no País dos Espelhos, idealizado maravilhosamente por Lewis Carroll. "A língua do país do Espelho, embora utiliza a gramática e as palavras inglesas tem regras próprias. As palavras teem o sentido que quem fala lhes dá porque seus habitantes acreditam que são eles-  e não as palavras - que mandam.". Saboroso pensamento do gênio de Alice. Quantas vezes nos faltam palavras para a expressão de sentimentos? Ou ainda, as que encontramos não parecem conter em si  a força, a ênfase de que precisamos para que outros nos entendam? E pior, tentamos em vão explicar-nos e somos mal entendidos. Nossa presença , nossos ideais, nossos gestos e nossas palavras, todos juntos constituem  diálogo com o mundo. A escrita em nossa pele representa  marca indelével no mundo. Cada um de nós é uma palavra única sussurrada por Deus e nunca repetida.

Lêonia

                         Personagem da vida, chamada a desempenhar vários papéis diariamente, refugio-me em Leônia, cidade da Ásia que se refaz todos os dias. De acordo com o Dicionário de lugares imaginários, de Alberto Manguel, Leônia se mede "pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Certos viajantes se perguntam se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente.". Escolhi Leônia por acreditar que nos refazemos todos os dias. Cada instante vivido, cada experiência desdobrada constitui elemento modificador, moldador de meus instantes futuros. Deixar para trás  ou abraçar algo, ou ainda os dois movimentos ao mesmo tempo, intensificará meu caminho de escolhas, definindo-me mais à frente. A arte de viver na beleza de cada momento exige paciência, cautela, um passo de cada vez,sem medo do afastamento, já que logo adiante sonhos esperam.
                         Escolhi Leônia hoje para descanso. Nela, deixo para trás o que não fui e lanço-me ao que desejo ser.  

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Converso comigo

Há um tempo, pensava em qual livro escolheria ser. Hoje quis imaginar-me uma personagem e desejei ser duas de uma vez: O Quixote de Cervantes e o Rouxinol (do conto O rouxinol e a rosa) de Wilde. Com audácia, amor, fidelidade aos princípios e ideais e... uma pitada de loucura.

mais de Wilde por ele mesmo

Em A alma do homem sob o socialismo:

"Tens uma personalidade maravilhosa. Desenvolve-a. Sê tu mesmo. Não imagines que a perfeição consista em acumular ou possuir coisas exteriores. Tua perfeição está dentro de ti mesmo. Assim que conseguires compreender isto,já não necessitas de ser rico(...)."

"Mas um mapa-múndi em que não figurasse a Utopia não valeria a pena de ser olhado,pois nele faltaria o único país em que a Humanidade desembarca diariamente.E apenas nele, olha para mais além e,divisando uma terra mais bela, torna a virar proa para ela.O progresso não é senão a realização das utopias.".


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

especial


                                      Coração partido
                                      Anjo na terra retorna ao céu
                                      Coração doído
                                      Choro na terra, festa no céu

                                      Das alturas vem mensagem de cura
                                      Nos braços de Deus repousa um anjo
                                     



                                       Para Elisabeth

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Converso com Maurice Blanchot

 Em A parte do fogo (Rocco, 2011), Blanchot traz uma saborosa reflexão sobre a literatura:

"a literatura tem um privilégio: ela ultrapassa o lugar e o momento atuais para se colocar na periferia do mundo e como no fim dos tempos, e é dali que fala das coisas e se ocupa dos homens(...)palavras reais e  uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado da realidade, e esse mundo é inacessível(...)ela não é explicação,nem pura compreensão, pois o inexplicável está nela(...).".


Este paradoxo faz da obra literária uma fascinante viagem, que amplia nossa visão de mundo e a visão de nosso interior.

Poemas para um corpo mascarado I

                                                          A Esfinge

           (adaptação do texto publicado no livro Faces rituais da poesia- Confraria do Vento,2010)



      
A Esfinge  e A balada da  Prisão de Reading – poemas para um corpo mascarado



                                                                       Stella Maria Ferreira



“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve

  Morrer também mais de uma morte.” .



         Projetando-se como mergulhador délio, em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou os instantes de pouco mais de quarenta anos, Oscar Wilde fez da vida uma experiência literária para que a eternidade estivesse ao alcance do corpo. Operou um auto-enfeitiçamento e confundiu àqueles a quem a percepção sensorial inibira qualquer manifestação criativa. Nesta circunvolução, como autor e herói, exercitou venturas e desventuras e, purificado do conformismo, encontrou-se com a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão.Em sua obra poética conciliou a improvisação, a oportunidade, a superioridade do inconsciente em um domínio absoluto da técnica, sem abdicar, contudo, da surpresa, reservada para o roteiro. O vigor de sua inteligência deu a seus textos a pureza almejada pelos decadentistas.Percebeu que cada ato de vida escolhido importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas, não sofreu pelo que não viveu. Esta adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra: “(...) uma plena memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” (WILDE, 2003, p.1413).

            O inconsciente ditava rapidamente e a trilha se tornava cada vez mais iluminada e já não havia nada a temer. A cada volta, Wilde sabia que subiam, ele e o leitor, um degrau de cada vez. Ele fez de todos, cúmplices de uma trama desconhecida para ambos. Agarrou-lhes a mão para puxá-los – e também a si – em direção ao centro dos sonhos mais secretos, aos desejos inconfessáveis. Revelação dura demais; veredicto unânime: condenado por apontar o papel estético desempenhado por todos. Na prisão, as vozes não silenciam, a mão parece cansada, mas a narrativa não pára. Dois anos depois, na saída, pinga as reticências de um fim que quer ser começo com uma balada. Sai de cena. Os leitores, no entanto, não deixam que as cortinas sejam cerradas. Saíra mesmo de cena? Não, multiplicara-se pelos pontos deixados na página.

O poema A esfinge foi por ele iniciado na época de Oxford e terminado em Paris em 1883  (tendo a publicação apenas em 1894). O poema traz o embrionário sentimento do efeito avassalador que teria mais tarde Á Rebours de Huysmans. Oscar Wilde tinha um forte sentimento por esfinges e, como a vida imita a arte, Wilde conheceria mais tarde, Mrs Ernest Leverson, “a young woman who hid intelligence and a tender heart under a frivolous manner(...), a link with the world of Proust: her sister and brother-in-law(...)were great friends of Proust(...)her wit conditioned her ideally to respond to Wilde’s light-heartedness, his particular form of gaiety iluminated by genius” (JULLIAN,1971,p.169). De Ada – e para ela -, diz Wilde: “ You are one of those who, in art, are always, by intuition, behind the scenes, so you see how natural art is(...)” (JULLIAN,1971,p.169) . E ela diz dele: “I had been told that he was rather like a giant with the wings of a Brazilian butterfly and was not disappointed. But I thought him far more like a Roman Emperor who should have lived at the Pavillion at Brighton with George IV.”  (JULLIAN,1971,p.170)

         A trama se insinua no ritmo do nictêmero (unidade indicativa de 24h), com a ‘presença’ de dois personagens. Meio humana, meio animal – dotada da faculdade de pensar (JULIAN, 1971, p.165) “Intangível e quieta não se ergue nem faz o menor movimento” (WILDE, 2003,p.958), mas vem , porém, aninhar-se junto a um estudante. Envolto no profundo e convulsivo silêncio da noite, o jovem é enfeitiçado pelo olhar – de fantásticos luares -, o sorriso enigmático e a fisionomia irradiando tranqüilidade. Inebriado,  ele faz o convite: “Aproxima-te, encantadora e lânguida Esfinge minha, vem colocar tua cabeça sobre meu peito e deixa-me passar uma mão acariciadora por teu peito e examinar teu corpo mosqueado como o de um lince.” (WILDE, 2003,p. 958). Com a implícita promessa de um ideal – penetrar o desconhecido -, ávido por decifrar segredos, experimentar mais do que ‘conhecer’, o jovem é devorado por dentro pela criatura: “(...)vem estirar-te a meus pés, Esfinge fantástica, e conta-me tuas recordações(...)” (WILDE, 2003,p.959), e é levado a lugares distantes em tempos remotos: “mil séculos lentos te pertencem quando eu, em troca, vi apenas vinte estios despojarem-se de sua verde libré para vestir a libré multicolorida do outono...” (WILDE, 2003,p.958).

         A cabeça feminina num corpo felino com garras que prendem e ferem cruelmente levam o protagonista a uma ‘viagem’ interior – sem movimento externo (bem a gosto de Des Esseintes) – doce martírio. Só o medo e o terror poderiam, com ela, produzir o prazer que o jovem estava por experimentar. Horror e deleite. O paradoxo se instala. A excepcional ação dos órgãos dos sentidos permitiu que ele interagisse com outros mundos e um excepcional aperfeiçoamento virá ainda. O jovem é outros. E se assim é, o leitor de A Esfinge é também ‘arrastado’ para essa vida ‘mais verdadeira’ que Wilde com tal facilidade verbal propõe.

         O jovem ansiava por tornar-se decifrador da linguagem secreta do universo. Que tivesse ele as respostas agora! O pacto é silencioso, mas ele sabe que ao chamar a figura alada, estaria a ela entregando algo de si. Aceita, sem delongas.  A peregrinação virtual o leva a lugares e tempos remotos: “(...)Fala-me do labirinto que servia de estábulo ao touro de dupla forma(...)” (WILDE, 2003,p.959). O sutil sorriso da figura instiga a curiosidade do jovem quanto a seus amores. Teria a figura amado ou só existira para provocar fortes e devastadoras paixões? Teria esperado que todos os véus deixassem de ser para ela mistério para que dominasse os segredos dos homens? O silêncio aterrador leva o protagonista a um clímax: “(...)Vai-te daqui; estou cansado de teus gestos de languidez, cansado de teu olhar sempre fixo de tua sonolenta magnificência...” (WILDE, 2003,p.964). Julgando fazer o percurso dela, na verdade, enreda-se nas teias de sua mente.

         As indagações do jovem vão, assim, da fascinação (“Como é sutil teu sorriso! Será que não amaste a ninguém?”-WILDE, 2003, p.961) até o súbito terror (porque se chegasse a decifrar os segredos da esfinge um fim trágico poderia encontrá-lo). Declara-se farto do hálito “pesado e horrível”, dos olhos que são “como luas fantásticas que tremem em um lago de águas paradas”, da língua que “ é como uma serpente escarlate que baila ao som de árias fantasmais(...)”,  sente o pulso deste ser que “ bate em melodias envenenadas” e vê na negra boca “ o buraco que deixa uma tocha ou umas brasas sobre uns tapetes sarracenos(...)Vai-te daqui, repugnante mistério(...)” (WILDE, 2003,p. 964/965). A presença feminina, a rigor, exaspera. De início encantadora, capaz de enlouquecer com um olhar: “(...)Sua face era como o mosto que enche uma cuba de vinho novo. Os mares nada poderiam acrescentar à perfeição de seus olhos de safira(...)” (WILDE, 2003,p.961); mostra-se fatal,  cujo prazer não se encontra na morte dos amantes, mas no domínio sobre suas vidas: “Bem sei que teus amantes não morreram. Voltaram a levantar-se. Ouvirão tua voz. Agitarão ruidosamente seus címbalos. Regozijar-se-ão(...)” (WILDE, 2003,p.963). O súbito temor de se ver para sempre coberto por suas asas e inebriado por seu perfume o desespera.

         O poema traz a adormecida Salomé decadentista. O jovem parece enfastiado do real, quer sentir mais do que conhecer e à dama do crepúsculo interessa sobremaneira este verde coração. A força feminina, que mergulha sem temor neste mundo dominado pela razão masculina, impulsiona o jovem. A Esfinge apresenta a lição ensinada ao filho de Dédalo: o desafio por si só, a tentativa de desprender-se de um corpo limitado no espaço e no tempo é a força motriz do indivíduo. A idéia lançada no ar é mais uma vez feminina. O estudante não sabe se trazida pela fugidia “Fúria de cabeleira de serpentes, recém saída do Inferno” (WILDE, 2003,p.964), ou por um fantasma criminoso;e ainda mais adiante: “Tornas aquilo em que creio uma estúpida fraude, despertas obscenos sonhos de vida sensual(...)” (WILDE, 2003,p.965). Impacto revelador da escuta de um não canto, de uma não voz desta serpente para quem ele se dirige assim,  “despertas em mim bestiais sensações, fazes de mim aquilo que eu não quereria ser.” (WILDE, 2003,p.965). Semelhança com o jovem Dorian Gray encantado pela voz de Lorde Henry e rendido a sua voz interior. Contagem de anos não cronológica que faria dele, daí em diante, um indivíduo diferente. O ‘encontro’ com seus desejos ocultos fez com que envelhecesse, tal qual o retrato – só que não por fora, mas por dentro.

A experiência enriquecedora faz com o que o jovem respire o ar robusto de que nos fala Nietzsche em Why I am so wise:



“He who knows how to breathe the air of my writings knows that it is an air of the heights, a robust air. One has to be made for it, otherwise there is no small danger one will catch a cold. The ice is near, the solitude is terrible – but how peacefully all things lie in the light! How freely one breathes! How much one feels beneath one!”.                 



O calor evocado pela figura do deserto contrasta com o gelo aterrador da vivência solitária dos muitos mundos. A visão que se tem a partir do poema é a da confusão do infinito labirinto sem muros: o deserto, de onde nunca sairá, tão logo o olfato absorva o odor dessa desconfortável liberdade. A princípio parece-lhe retirada a paz, perceberá, certamente, mais tarde, que a inquietude será de agora em diante sua fiel companheira e a única que fará com que sua personalidade se desenvolva.

         Mais uma vez o sombrio apresenta-se como esperança de revelação. A nebulosidade, a incerteza trazidas pela figura da Esfinge é traduzida como descoberta e o estudante libera seus ‘outros’, permitindo-se uma vivência mais completa, mesmo no espaço reduzido de seu quarto . A treva que é luz seria importante mote decadentista, assim como os temas exóticos. A estranha gata achava-se estendida sobre um tapete chinês e leva o estudante, como pelo ar, a visitas pelas terras orientais, observando faraós, deuses assírios,  sacerdotes em templos ricamente decorados, mercadores em navios multicoloridos, beduínos, caravanas errante de negros de ar solene. Mundos são desvelados para ele e nele.

         Fica-nos a dúvida sobre o real efeito propiciador das divagações do estudante: haveria mesmo esta figura ali com ele, estátua, imóvel, ou já isto também seria resultado das leituras noturnas que fazia? Se considerássemos esta última opção, Wilde estaria mais uma vez atestando o valor da leitura para a imaginação e a figura alada seria mera projeção do desejo de liberdade do jovem. Teria mesmo tal figura participado do episódio ou seria semente da musa decadentista, provocadora de loucos amores, sedutora que enfeitiça duros ouvidos e reconstrói companheiros despedaçados, despertando paixões até em pedras insensíveis (cf.WILDE, 2003, p.963) . A movimentação interna é tal que se sobrepõe à imobilidade externa. Mais uma vez, lembramos À Rebours com Des Esseintes ‘viajando’ para Londres, sentado em um café à espera do trem. Tamanha experimentação anulou sua efetiva ida a capital inglesa; seu desejo estava satisfeito, por isso, pode retornar à casa. Esta virtualidade já atestaria a opção pela imobilidade ao invés da ação. O movimento do corpo estava associado por demais a produção, ao lucro e isso só se mostrava prejudicial ao exercício do pensamento, que precisava do ócio. A esfinge, assim, deitada, preguiçosa, poderia ser símbolo propulsor de que necessitava o estudante para ser o que queria.

         O resultado da intensa noite para o estudante não foi de tranqüilidade. Havia agora a iminência de tomada de atitude. Não poderia ignorar a descoberta das insatisfações de sua vida. Seu inconsciente balançara as correntes da consciência reguladora. Teria que fazer agora sua escolha, a aurora já despontava “em torno dos campanários cinzentos que ostentam um quadrante dourado, e a chuva corre sobre cada vitral talhado como um diamante, e suas lágrimas empanam o dia já descolorido.” (WILDE, 2003,p.964). A ação é sempre a opção mais fácil por ser a mais contínua dizia Wilde em O crítico como artista; é refúgio das pessoas submetidas; é cegueira que está em desacordo com a finalidade primeira da vida; por fim, é a base da falta de imaginação. As muitas vozes silenciam de súbito, era hora da oferta final – uma existência modificada, pronta para a ação desmedida dos sentidos.

         No final, a ação da consciência parece retrai-lo. Acreditamos, no entanto, que a experiência sensorial foi de tamanha intensidade que deixara marcas doloridas em seu corpo, até então intocado pela força artística. A ‘viagem’por estes mundos de um passado que parecia ser seu presente, da vida de outros que não era mais do que a sua vida não vivida, emboscada no inconsciente exigiam uma resposta. Como a esfinge, ele viveria eternamente. A questão era : viveria repetido sentimento de remorso ou repetido gozo pela realização de toda uma existência de sonho. O temor deste novo era  normal. A serenidade da acomodação ainda exercia fascínio. No entanto, o poder do texto já invadira definitivamente sua alma. A imaginação exigia uma entrega e ele sabia que não poderia voltar atrás. Não porque lhe seria proibido, mas porque lhe seria impossível, após experimentar tal liberdade . Descolara-se das asas da esfinge, caíra no abismo para alçar o próprio vôo. Disse Wilde em Uma mulher sem importância que em uma mulher que revela sua idade, nunca se deveria confiar porque seria capaz de contar-lhe qualquer coisa. Pois bem, ao perambular com o estudante por todas as suas idades, revela a ele o contra-senso, a rebeldia. O ‘bom-senso’ era ‘privilégio’ do mundo masculino. A escolha do jovem já fora feita. Tornara-se cego, surdo e mudo para este real insatisfatório e estrangeiro, cabeça perdida, digere a vida como a um livro.

         Ao hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo. 

 E este é o nosso próximo capítulo...


Qual sua personagem favorita? II

O Rouxinol... O Rouxinol e a Rosa é um adorável conto infantil do querido Oscar Wilde. O pássaro tão cantado pelos poetas personifica um ve...