segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Poemas para um corpo mascarado I

                                                          A Esfinge

           (adaptação do texto publicado no livro Faces rituais da poesia- Confraria do Vento,2010)



      
A Esfinge  e A balada da  Prisão de Reading – poemas para um corpo mascarado



                                                                       Stella Maria Ferreira



“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve

  Morrer também mais de uma morte.” .



         Projetando-se como mergulhador délio, em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou os instantes de pouco mais de quarenta anos, Oscar Wilde fez da vida uma experiência literária para que a eternidade estivesse ao alcance do corpo. Operou um auto-enfeitiçamento e confundiu àqueles a quem a percepção sensorial inibira qualquer manifestação criativa. Nesta circunvolução, como autor e herói, exercitou venturas e desventuras e, purificado do conformismo, encontrou-se com a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão.Em sua obra poética conciliou a improvisação, a oportunidade, a superioridade do inconsciente em um domínio absoluto da técnica, sem abdicar, contudo, da surpresa, reservada para o roteiro. O vigor de sua inteligência deu a seus textos a pureza almejada pelos decadentistas.Percebeu que cada ato de vida escolhido importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas, não sofreu pelo que não viveu. Esta adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra: “(...) uma plena memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” (WILDE, 2003, p.1413).

            O inconsciente ditava rapidamente e a trilha se tornava cada vez mais iluminada e já não havia nada a temer. A cada volta, Wilde sabia que subiam, ele e o leitor, um degrau de cada vez. Ele fez de todos, cúmplices de uma trama desconhecida para ambos. Agarrou-lhes a mão para puxá-los – e também a si – em direção ao centro dos sonhos mais secretos, aos desejos inconfessáveis. Revelação dura demais; veredicto unânime: condenado por apontar o papel estético desempenhado por todos. Na prisão, as vozes não silenciam, a mão parece cansada, mas a narrativa não pára. Dois anos depois, na saída, pinga as reticências de um fim que quer ser começo com uma balada. Sai de cena. Os leitores, no entanto, não deixam que as cortinas sejam cerradas. Saíra mesmo de cena? Não, multiplicara-se pelos pontos deixados na página.

O poema A esfinge foi por ele iniciado na época de Oxford e terminado em Paris em 1883  (tendo a publicação apenas em 1894). O poema traz o embrionário sentimento do efeito avassalador que teria mais tarde Á Rebours de Huysmans. Oscar Wilde tinha um forte sentimento por esfinges e, como a vida imita a arte, Wilde conheceria mais tarde, Mrs Ernest Leverson, “a young woman who hid intelligence and a tender heart under a frivolous manner(...), a link with the world of Proust: her sister and brother-in-law(...)were great friends of Proust(...)her wit conditioned her ideally to respond to Wilde’s light-heartedness, his particular form of gaiety iluminated by genius” (JULLIAN,1971,p.169). De Ada – e para ela -, diz Wilde: “ You are one of those who, in art, are always, by intuition, behind the scenes, so you see how natural art is(...)” (JULLIAN,1971,p.169) . E ela diz dele: “I had been told that he was rather like a giant with the wings of a Brazilian butterfly and was not disappointed. But I thought him far more like a Roman Emperor who should have lived at the Pavillion at Brighton with George IV.”  (JULLIAN,1971,p.170)

         A trama se insinua no ritmo do nictêmero (unidade indicativa de 24h), com a ‘presença’ de dois personagens. Meio humana, meio animal – dotada da faculdade de pensar (JULIAN, 1971, p.165) “Intangível e quieta não se ergue nem faz o menor movimento” (WILDE, 2003,p.958), mas vem , porém, aninhar-se junto a um estudante. Envolto no profundo e convulsivo silêncio da noite, o jovem é enfeitiçado pelo olhar – de fantásticos luares -, o sorriso enigmático e a fisionomia irradiando tranqüilidade. Inebriado,  ele faz o convite: “Aproxima-te, encantadora e lânguida Esfinge minha, vem colocar tua cabeça sobre meu peito e deixa-me passar uma mão acariciadora por teu peito e examinar teu corpo mosqueado como o de um lince.” (WILDE, 2003,p. 958). Com a implícita promessa de um ideal – penetrar o desconhecido -, ávido por decifrar segredos, experimentar mais do que ‘conhecer’, o jovem é devorado por dentro pela criatura: “(...)vem estirar-te a meus pés, Esfinge fantástica, e conta-me tuas recordações(...)” (WILDE, 2003,p.959), e é levado a lugares distantes em tempos remotos: “mil séculos lentos te pertencem quando eu, em troca, vi apenas vinte estios despojarem-se de sua verde libré para vestir a libré multicolorida do outono...” (WILDE, 2003,p.958).

         A cabeça feminina num corpo felino com garras que prendem e ferem cruelmente levam o protagonista a uma ‘viagem’ interior – sem movimento externo (bem a gosto de Des Esseintes) – doce martírio. Só o medo e o terror poderiam, com ela, produzir o prazer que o jovem estava por experimentar. Horror e deleite. O paradoxo se instala. A excepcional ação dos órgãos dos sentidos permitiu que ele interagisse com outros mundos e um excepcional aperfeiçoamento virá ainda. O jovem é outros. E se assim é, o leitor de A Esfinge é também ‘arrastado’ para essa vida ‘mais verdadeira’ que Wilde com tal facilidade verbal propõe.

         O jovem ansiava por tornar-se decifrador da linguagem secreta do universo. Que tivesse ele as respostas agora! O pacto é silencioso, mas ele sabe que ao chamar a figura alada, estaria a ela entregando algo de si. Aceita, sem delongas.  A peregrinação virtual o leva a lugares e tempos remotos: “(...)Fala-me do labirinto que servia de estábulo ao touro de dupla forma(...)” (WILDE, 2003,p.959). O sutil sorriso da figura instiga a curiosidade do jovem quanto a seus amores. Teria a figura amado ou só existira para provocar fortes e devastadoras paixões? Teria esperado que todos os véus deixassem de ser para ela mistério para que dominasse os segredos dos homens? O silêncio aterrador leva o protagonista a um clímax: “(...)Vai-te daqui; estou cansado de teus gestos de languidez, cansado de teu olhar sempre fixo de tua sonolenta magnificência...” (WILDE, 2003,p.964). Julgando fazer o percurso dela, na verdade, enreda-se nas teias de sua mente.

         As indagações do jovem vão, assim, da fascinação (“Como é sutil teu sorriso! Será que não amaste a ninguém?”-WILDE, 2003, p.961) até o súbito terror (porque se chegasse a decifrar os segredos da esfinge um fim trágico poderia encontrá-lo). Declara-se farto do hálito “pesado e horrível”, dos olhos que são “como luas fantásticas que tremem em um lago de águas paradas”, da língua que “ é como uma serpente escarlate que baila ao som de árias fantasmais(...)”,  sente o pulso deste ser que “ bate em melodias envenenadas” e vê na negra boca “ o buraco que deixa uma tocha ou umas brasas sobre uns tapetes sarracenos(...)Vai-te daqui, repugnante mistério(...)” (WILDE, 2003,p. 964/965). A presença feminina, a rigor, exaspera. De início encantadora, capaz de enlouquecer com um olhar: “(...)Sua face era como o mosto que enche uma cuba de vinho novo. Os mares nada poderiam acrescentar à perfeição de seus olhos de safira(...)” (WILDE, 2003,p.961); mostra-se fatal,  cujo prazer não se encontra na morte dos amantes, mas no domínio sobre suas vidas: “Bem sei que teus amantes não morreram. Voltaram a levantar-se. Ouvirão tua voz. Agitarão ruidosamente seus címbalos. Regozijar-se-ão(...)” (WILDE, 2003,p.963). O súbito temor de se ver para sempre coberto por suas asas e inebriado por seu perfume o desespera.

         O poema traz a adormecida Salomé decadentista. O jovem parece enfastiado do real, quer sentir mais do que conhecer e à dama do crepúsculo interessa sobremaneira este verde coração. A força feminina, que mergulha sem temor neste mundo dominado pela razão masculina, impulsiona o jovem. A Esfinge apresenta a lição ensinada ao filho de Dédalo: o desafio por si só, a tentativa de desprender-se de um corpo limitado no espaço e no tempo é a força motriz do indivíduo. A idéia lançada no ar é mais uma vez feminina. O estudante não sabe se trazida pela fugidia “Fúria de cabeleira de serpentes, recém saída do Inferno” (WILDE, 2003,p.964), ou por um fantasma criminoso;e ainda mais adiante: “Tornas aquilo em que creio uma estúpida fraude, despertas obscenos sonhos de vida sensual(...)” (WILDE, 2003,p.965). Impacto revelador da escuta de um não canto, de uma não voz desta serpente para quem ele se dirige assim,  “despertas em mim bestiais sensações, fazes de mim aquilo que eu não quereria ser.” (WILDE, 2003,p.965). Semelhança com o jovem Dorian Gray encantado pela voz de Lorde Henry e rendido a sua voz interior. Contagem de anos não cronológica que faria dele, daí em diante, um indivíduo diferente. O ‘encontro’ com seus desejos ocultos fez com que envelhecesse, tal qual o retrato – só que não por fora, mas por dentro.

A experiência enriquecedora faz com o que o jovem respire o ar robusto de que nos fala Nietzsche em Why I am so wise:



“He who knows how to breathe the air of my writings knows that it is an air of the heights, a robust air. One has to be made for it, otherwise there is no small danger one will catch a cold. The ice is near, the solitude is terrible – but how peacefully all things lie in the light! How freely one breathes! How much one feels beneath one!”.                 



O calor evocado pela figura do deserto contrasta com o gelo aterrador da vivência solitária dos muitos mundos. A visão que se tem a partir do poema é a da confusão do infinito labirinto sem muros: o deserto, de onde nunca sairá, tão logo o olfato absorva o odor dessa desconfortável liberdade. A princípio parece-lhe retirada a paz, perceberá, certamente, mais tarde, que a inquietude será de agora em diante sua fiel companheira e a única que fará com que sua personalidade se desenvolva.

         Mais uma vez o sombrio apresenta-se como esperança de revelação. A nebulosidade, a incerteza trazidas pela figura da Esfinge é traduzida como descoberta e o estudante libera seus ‘outros’, permitindo-se uma vivência mais completa, mesmo no espaço reduzido de seu quarto . A treva que é luz seria importante mote decadentista, assim como os temas exóticos. A estranha gata achava-se estendida sobre um tapete chinês e leva o estudante, como pelo ar, a visitas pelas terras orientais, observando faraós, deuses assírios,  sacerdotes em templos ricamente decorados, mercadores em navios multicoloridos, beduínos, caravanas errante de negros de ar solene. Mundos são desvelados para ele e nele.

         Fica-nos a dúvida sobre o real efeito propiciador das divagações do estudante: haveria mesmo esta figura ali com ele, estátua, imóvel, ou já isto também seria resultado das leituras noturnas que fazia? Se considerássemos esta última opção, Wilde estaria mais uma vez atestando o valor da leitura para a imaginação e a figura alada seria mera projeção do desejo de liberdade do jovem. Teria mesmo tal figura participado do episódio ou seria semente da musa decadentista, provocadora de loucos amores, sedutora que enfeitiça duros ouvidos e reconstrói companheiros despedaçados, despertando paixões até em pedras insensíveis (cf.WILDE, 2003, p.963) . A movimentação interna é tal que se sobrepõe à imobilidade externa. Mais uma vez, lembramos À Rebours com Des Esseintes ‘viajando’ para Londres, sentado em um café à espera do trem. Tamanha experimentação anulou sua efetiva ida a capital inglesa; seu desejo estava satisfeito, por isso, pode retornar à casa. Esta virtualidade já atestaria a opção pela imobilidade ao invés da ação. O movimento do corpo estava associado por demais a produção, ao lucro e isso só se mostrava prejudicial ao exercício do pensamento, que precisava do ócio. A esfinge, assim, deitada, preguiçosa, poderia ser símbolo propulsor de que necessitava o estudante para ser o que queria.

         O resultado da intensa noite para o estudante não foi de tranqüilidade. Havia agora a iminência de tomada de atitude. Não poderia ignorar a descoberta das insatisfações de sua vida. Seu inconsciente balançara as correntes da consciência reguladora. Teria que fazer agora sua escolha, a aurora já despontava “em torno dos campanários cinzentos que ostentam um quadrante dourado, e a chuva corre sobre cada vitral talhado como um diamante, e suas lágrimas empanam o dia já descolorido.” (WILDE, 2003,p.964). A ação é sempre a opção mais fácil por ser a mais contínua dizia Wilde em O crítico como artista; é refúgio das pessoas submetidas; é cegueira que está em desacordo com a finalidade primeira da vida; por fim, é a base da falta de imaginação. As muitas vozes silenciam de súbito, era hora da oferta final – uma existência modificada, pronta para a ação desmedida dos sentidos.

         No final, a ação da consciência parece retrai-lo. Acreditamos, no entanto, que a experiência sensorial foi de tamanha intensidade que deixara marcas doloridas em seu corpo, até então intocado pela força artística. A ‘viagem’por estes mundos de um passado que parecia ser seu presente, da vida de outros que não era mais do que a sua vida não vivida, emboscada no inconsciente exigiam uma resposta. Como a esfinge, ele viveria eternamente. A questão era : viveria repetido sentimento de remorso ou repetido gozo pela realização de toda uma existência de sonho. O temor deste novo era  normal. A serenidade da acomodação ainda exercia fascínio. No entanto, o poder do texto já invadira definitivamente sua alma. A imaginação exigia uma entrega e ele sabia que não poderia voltar atrás. Não porque lhe seria proibido, mas porque lhe seria impossível, após experimentar tal liberdade . Descolara-se das asas da esfinge, caíra no abismo para alçar o próprio vôo. Disse Wilde em Uma mulher sem importância que em uma mulher que revela sua idade, nunca se deveria confiar porque seria capaz de contar-lhe qualquer coisa. Pois bem, ao perambular com o estudante por todas as suas idades, revela a ele o contra-senso, a rebeldia. O ‘bom-senso’ era ‘privilégio’ do mundo masculino. A escolha do jovem já fora feita. Tornara-se cego, surdo e mudo para este real insatisfatório e estrangeiro, cabeça perdida, digere a vida como a um livro.

         Ao hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo. 

 E este é o nosso próximo capítulo...


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