(adaptação do texto publicado no livro Faces rituais da poesia- Confraria do Vento,2010)
A Esfinge e A
balada da Prisão de Reading – poemas
para um corpo mascarado
Stella
Maria Ferreira
“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve
Morrer também mais de uma
morte.” .
Projetando-se
como mergulhador délio, em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou
os instantes de pouco mais de quarenta anos, Oscar Wilde fez da vida uma
experiência literária para que a eternidade estivesse ao alcance do corpo.
Operou um auto-enfeitiçamento e confundiu àqueles a quem a percepção sensorial
inibira qualquer manifestação criativa. Nesta circunvolução, como autor e
herói, exercitou venturas e desventuras e, purificado do conformismo,
encontrou-se com a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão.Em sua
obra poética conciliou a improvisação, a oportunidade, a superioridade do
inconsciente em um domínio absoluto da técnica, sem abdicar, contudo, da
surpresa, reservada para o roteiro. O vigor de sua inteligência deu a seus
textos a pureza almejada pelos decadentistas.Percebeu que cada ato de vida
escolhido importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu
inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas, não sofreu pelo que não viveu. Esta
adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem
moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra: “(...) uma plena
memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem
arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” (WILDE,
2003, p.1413).
O inconsciente ditava rapidamente e a trilha se tornava cada vez mais
iluminada e já não havia nada a temer. A cada volta, Wilde sabia que subiam,
ele e o leitor, um degrau de cada vez. Ele fez de todos, cúmplices de uma trama
desconhecida para ambos. Agarrou-lhes a mão para puxá-los – e também a si – em
direção ao centro dos sonhos mais secretos, aos desejos inconfessáveis.
Revelação dura demais; veredicto unânime: condenado por apontar o papel
estético desempenhado por todos. Na prisão, as vozes não silenciam, a mão
parece cansada, mas a narrativa não pára. Dois anos depois, na saída, pinga as
reticências de um fim que quer ser começo com uma balada. Sai de cena. Os
leitores, no entanto, não deixam que as cortinas sejam cerradas. Saíra mesmo de
cena? Não, multiplicara-se pelos pontos deixados na página.
O poema A esfinge foi por ele iniciado na época de Oxford e terminado em
Paris em 1883 (tendo a publicação apenas
em 1894). O poema traz o embrionário sentimento do efeito avassalador que teria
mais tarde Á Rebours de Huysmans. Oscar Wilde tinha
um forte sentimento por esfinges e, como a vida imita a arte, Wilde conheceria
mais tarde, Mrs Ernest Leverson, “a young woman who hid intelligence and a
tender heart under a frivolous manner(...), a link with the world of Proust:
her sister and brother-in-law(...)were great friends of Proust(...)her wit
conditioned her ideally to respond to Wilde’s light-heartedness, his particular
form of gaiety iluminated by genius” (JULLIAN,1971,p.169). De Ada – e para ela
-, diz Wilde: “ You are one of those who, in art, are always, by intuition,
behind the scenes, so you see how natural art is(...)” (JULLIAN,1971,p.169)
. E ela diz dele: “I had been told that he was rather like a giant with the
wings of a Brazilian butterfly and was not disappointed. But I thought him far
more like a Roman Emperor who should have lived at the Pavillion at Brighton
with George IV.” (JULLIAN,1971,p.170)
A trama se insinua no ritmo do nictêmero
(unidade indicativa de 24h), com a ‘presença’ de dois personagens. Meio humana,
meio animal – dotada da faculdade de pensar (JULIAN, 1971, p.165) “Intangível e
quieta não se ergue nem faz o menor movimento” (WILDE, 2003,p.958), mas vem ,
porém, aninhar-se junto a um estudante. Envolto no profundo e convulsivo
silêncio da noite, o jovem é enfeitiçado pelo olhar – de fantásticos luares -,
o sorriso enigmático e a fisionomia irradiando tranqüilidade. Inebriado, ele faz o convite: “Aproxima-te, encantadora
e lânguida Esfinge minha, vem colocar tua cabeça sobre meu peito e deixa-me
passar uma mão acariciadora por teu peito e examinar teu corpo mosqueado como o
de um lince.” (WILDE, 2003,p. 958). Com a implícita promessa de um ideal –
penetrar o desconhecido -, ávido por decifrar segredos, experimentar mais do
que ‘conhecer’, o jovem é devorado por dentro pela criatura: “(...)vem
estirar-te a meus pés, Esfinge fantástica, e conta-me tuas recordações(...)” (WILDE,
2003,p.959), e é levado a lugares distantes em tempos remotos: “mil séculos
lentos te pertencem quando eu, em troca, vi apenas vinte estios despojarem-se
de sua verde libré para vestir a libré multicolorida do outono...” (WILDE,
2003,p.958).
A cabeça feminina num corpo felino com
garras que prendem e ferem cruelmente levam o protagonista a uma ‘viagem’ interior
– sem movimento externo (bem a gosto de Des Esseintes) – doce martírio. Só o
medo e o terror poderiam, com ela, produzir o prazer que o jovem estava por
experimentar. Horror e deleite. O paradoxo se instala. A excepcional ação dos
órgãos dos sentidos permitiu que ele interagisse com outros mundos e um
excepcional aperfeiçoamento virá ainda. O jovem é outros. E se assim é, o
leitor de A Esfinge é também ‘arrastado’ para essa vida ‘mais verdadeira’ que
Wilde com tal facilidade verbal propõe.
O jovem ansiava por tornar-se decifrador
da linguagem secreta do universo. Que tivesse ele as
respostas agora! O pacto é silencioso, mas ele sabe que ao chamar a figura
alada, estaria a ela entregando algo de si. Aceita, sem delongas. A peregrinação virtual o leva a lugares e
tempos remotos: “(...)Fala-me do labirinto que servia de estábulo ao touro de
dupla forma(...)” (WILDE, 2003,p.959). O sutil sorriso da figura instiga a
curiosidade do jovem quanto a seus amores. Teria a figura amado ou só existira
para provocar fortes e devastadoras paixões? Teria esperado que todos os véus
deixassem de ser para ela mistério para que dominasse os segredos dos homens? O
silêncio aterrador leva o protagonista a um clímax: “(...)Vai-te daqui; estou
cansado de teus gestos de languidez, cansado de teu olhar sempre fixo de tua
sonolenta magnificência...” (WILDE, 2003,p.964). Julgando fazer o percurso
dela, na verdade, enreda-se nas teias de sua mente.
As
indagações do jovem vão, assim, da fascinação (“Como é sutil teu sorriso! Será
que não amaste a ninguém?”-WILDE, 2003, p.961) até o súbito terror (porque se
chegasse a decifrar os segredos da esfinge um fim trágico poderia encontrá-lo).
Declara-se farto do hálito “pesado e horrível”, dos olhos que são “como luas
fantásticas que tremem em um lago de águas paradas”, da língua que “ é como uma
serpente escarlate que baila ao som de árias fantasmais(...)”, sente o pulso deste ser que “ bate em
melodias envenenadas” e vê na negra boca “ o buraco que deixa uma tocha ou umas
brasas sobre uns tapetes sarracenos(...)Vai-te daqui, repugnante mistério(...)”
(WILDE, 2003,p. 964/965). A presença feminina, a rigor, exaspera. De início
encantadora, capaz de enlouquecer com um olhar: “(...)Sua face era como o mosto
que enche uma cuba de vinho novo. Os mares nada poderiam acrescentar à
perfeição de seus olhos de safira(...)” (WILDE, 2003,p.961); mostra-se
fatal, cujo prazer não se encontra na
morte dos amantes, mas no domínio sobre suas vidas: “Bem sei que teus amantes
não morreram. Voltaram a levantar-se. Ouvirão tua voz. Agitarão ruidosamente
seus címbalos. Regozijar-se-ão(...)” (WILDE, 2003,p.963). O súbito temor de se
ver para sempre coberto por suas asas e inebriado por seu perfume o desespera.
O poema traz a adormecida Salomé
decadentista. O jovem parece enfastiado do real, quer sentir mais do que
conhecer e à dama do crepúsculo interessa sobremaneira este verde coração. A
força feminina, que mergulha sem temor neste mundo dominado pela razão
masculina, impulsiona o jovem. A Esfinge
apresenta a lição ensinada ao filho de Dédalo: o desafio por si só, a tentativa
de desprender-se de um corpo limitado no espaço e no tempo é a força motriz do
indivíduo. A idéia lançada no ar é mais uma vez feminina. O estudante não sabe
se trazida pela fugidia “Fúria de cabeleira de serpentes, recém saída do
Inferno” (WILDE, 2003,p.964), ou por um fantasma criminoso;e ainda mais adiante:
“Tornas aquilo em que creio uma estúpida fraude, despertas obscenos sonhos de
vida sensual(...)” (WILDE, 2003,p.965). Impacto revelador da escuta de um não
canto, de uma não voz desta serpente para quem ele se dirige assim, “despertas em mim bestiais sensações, fazes
de mim aquilo que eu não quereria ser.” (WILDE, 2003,p.965). Semelhança com o
jovem Dorian Gray encantado pela voz de Lorde Henry e rendido a sua voz
interior. Contagem de anos não cronológica
que faria dele, daí em diante, um indivíduo diferente. O ‘encontro’ com seus
desejos ocultos fez com que envelhecesse, tal qual o retrato – só que não por
fora, mas por dentro.
A experiência
enriquecedora faz com o que o jovem respire o ar robusto de que nos fala
Nietzsche em Why I am so wise:
“He who knows how to breathe the air of my writings knows
that it is an air of the heights, a robust air. One has to be made for it,
otherwise there is no small danger one will catch a cold. The ice is near, the
solitude is terrible – but how peacefully all things lie in the light! How
freely one breathes! How much one feels beneath one!”.
O calor evocado pela figura do deserto
contrasta com o gelo aterrador da vivência solitária dos muitos mundos.
A visão que se tem a partir do poema é a da confusão do infinito labirinto sem
muros: o deserto, de onde nunca sairá, tão logo o olfato absorva o odor dessa
desconfortável liberdade. A princípio parece-lhe retirada a paz, perceberá,
certamente, mais tarde, que a inquietude será de agora em diante sua fiel
companheira e a única que fará com que sua personalidade se desenvolva.
Mais
uma vez o sombrio apresenta-se como esperança de revelação. A nebulosidade, a
incerteza trazidas pela figura da Esfinge é traduzida como descoberta e o
estudante libera seus ‘outros’, permitindo-se uma vivência mais completa, mesmo
no espaço reduzido de seu quarto . A treva que é luz seria importante mote
decadentista, assim como os temas exóticos. A estranha gata achava-se estendida
sobre um tapete chinês e leva o estudante, como pelo ar, a visitas pelas terras
orientais, observando faraós, deuses assírios,
sacerdotes em templos ricamente decorados, mercadores em navios
multicoloridos, beduínos, caravanas errante de negros de ar solene. Mundos são
desvelados para ele e nele.
Fica-nos
a dúvida sobre o real efeito propiciador das divagações do estudante: haveria
mesmo esta figura ali com ele, estátua, imóvel, ou já isto também seria
resultado das leituras noturnas que fazia? Se considerássemos esta última
opção, Wilde estaria mais uma vez atestando o valor da leitura para a
imaginação e a figura alada seria mera projeção do desejo de liberdade do
jovem. Teria mesmo tal figura participado do episódio ou seria semente da musa
decadentista, provocadora de loucos amores, sedutora que enfeitiça duros
ouvidos e reconstrói companheiros despedaçados, despertando paixões até em
pedras insensíveis (cf.WILDE, 2003, p.963) . A movimentação interna
é tal que se sobrepõe à imobilidade externa. Mais uma vez, lembramos À Rebours com Des Esseintes ‘viajando’
para Londres, sentado em um café à espera do trem. Tamanha experimentação
anulou sua efetiva ida a capital inglesa; seu desejo estava satisfeito, por
isso, pode retornar à casa. Esta virtualidade já atestaria a opção pela
imobilidade ao invés da ação. O movimento do corpo estava associado por demais
a produção, ao lucro e isso só se mostrava prejudicial ao exercício do
pensamento, que precisava do ócio. A esfinge, assim, deitada, preguiçosa,
poderia ser símbolo propulsor de que necessitava o estudante para ser o que
queria.
O
resultado da intensa noite para o estudante não foi de tranqüilidade. Havia
agora a iminência de tomada de atitude. Não poderia ignorar a descoberta das
insatisfações de sua vida. Seu inconsciente balançara as correntes da
consciência reguladora. Teria que fazer agora sua escolha, a aurora já
despontava “em torno dos campanários cinzentos que ostentam um quadrante
dourado, e a chuva corre sobre cada vitral talhado como um diamante, e suas
lágrimas empanam o dia já descolorido.” (WILDE, 2003,p.964). A ação é sempre a
opção mais fácil por ser a mais contínua dizia Wilde em O crítico como artista; é refúgio das pessoas submetidas; é
cegueira que está em desacordo com a finalidade primeira da vida; por fim, é a
base da falta de imaginação. As muitas vozes silenciam de súbito, era hora da
oferta final – uma existência modificada, pronta para a ação desmedida dos
sentidos.
No
final, a ação da consciência parece retrai-lo. Acreditamos, no entanto, que a
experiência sensorial foi de tamanha intensidade que deixara marcas doloridas
em seu corpo, até então intocado pela força artística. A ‘viagem’por estes
mundos de um passado que parecia ser seu presente, da vida de outros que não
era mais do que a sua vida não vivida, emboscada no inconsciente exigiam uma
resposta. Como a esfinge, ele viveria eternamente. A questão era : viveria
repetido sentimento de remorso ou repetido gozo pela realização de toda uma
existência de sonho. O temor deste novo era
normal. A serenidade da acomodação ainda exercia fascínio. No entanto, o
poder do texto já invadira definitivamente sua alma. A imaginação exigia uma
entrega e ele sabia que não poderia voltar atrás. Não porque lhe seria
proibido, mas porque lhe seria impossível, após experimentar tal liberdade .
Descolara-se das asas da esfinge, caíra no abismo para alçar o próprio vôo.
Disse Wilde em Uma mulher sem importância
que em uma mulher que revela sua idade, nunca se deveria confiar porque seria
capaz de contar-lhe qualquer coisa. Pois bem, ao perambular com o estudante por
todas as suas idades, revela a ele o contra-senso, a rebeldia. O ‘bom-senso’
era ‘privilégio’ do mundo masculino. A escolha do jovem já fora feita.
Tornara-se cego, surdo e mudo para este real insatisfatório e estrangeiro,
cabeça perdida, digere a vida como a um livro.
Ao
hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música
incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então
de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo.
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