segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poemas para um corpo mascarado II


             (parte do texto publicado no livro Faces rituais de poesia)
 
            Ao hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo.  Obra prima, universalmente admirada, com três cores predominantes: branco, vermelho e cinza, que acompanham os últimos dias de condenados à forca, A balada da Prisão de Reading foi iniciado no chalé de Bourgeat em Berneval, França, em 1897, após sua saída da prisão. De todos os poemas por ele confeccionados, mostra-se o mais comovente, o mais carregado de experiência e de sentimento humanos.

         O compasso das palavras faz com que acompanhemos o prisioneiro-narrador e  Wilde no banho de sol, nas refeições, no árduo trabalho, na solidão de mil e uma noites sem contos, sem letras, tomadas, por vezes, de fantásticas e sobrenaturais experiências.  Os dois corpos agora são um. Diante do espelho, os rostos podem parecer diferentes, mas a dor os iguala; dobra-se sobre si mesmo e o embalo que conseguiu imprimir, angustia. O cumprimento da sentença poria fim às inúmeras ‘mortes’ enfrentadas a cada dia. Os versos de um condenado cuja perturbação está no fato de que: “(...)igual a um ano é cada dia, ano de dias infindáveis.” (WILDE, 2003,p. 982). A rima, produz neste ambiente um forte eco, “que no mais fundo do vale das Musas cria sua própria voz e a ela responde; a rima, que em mãos de um verdadeiro artista é não somente um elemento material de beleza métrica, mas um elemento espiritual de pensamento e de paixão, porque desperta novos estados da alma, dá lugar a um ressurgimento de idéias e abre, com sua doçura e com a sugestão de sonoridade, portas de ouro que a própria imaginação não conseguiu abrir(...)” (WILDE, 2003,p.1114). O chamado da Balada não segue o apelo das baladas tradicionais de rua; nela, a voz de Wilde é angustiada e determinante para que o poema fosse recebido com elogios.

O esteta, prisioneiro C3.3, constata, inversamente ao bardo Shakespeare,  que os homens matam a quem amam (Bassanio pergunta a Shylock: ‘Os homens matam aquilo que não amam?’)e matou-se, ao cair nas teias de uma justiça que desprezava, para renascer da lama e do lodo. Um dos prisioneiros do poema matou a mulher amada e morreria – não que esse fosse o destino de todos os criminosos no mundo, mas certamente o seu ( “já não usava a túnica vermelha/ Pois sangue e vinho são vermelhos;/ E sangue e vinho havia em suas mãos/ Quando co’a morta o encontraram,/ A pobre mulher morta a quem amava/ E assassinara no seu leito(...)./Uns matam seu amor, quando são jovens, Outros quando velhos estão(...)Uns matam a chorar, com muitas lágrimas, Outros sem mesmo suspirar../.Mas nem todos hão de morrer(...)”- WILDE, 2003,p. 969/970) .
No mesmo ano de 1898, após sua liberação, escreve ao diretor do Daily Chronicle “na qualidade de homem que conhece a vida em uma prisão inglesa por experiência pessoal(...)” (WILDE,2003,p.1446) sobre as condições e possíveis reformas no sistema presidiário, pois, uma das coisas mais trágicas da vida na prisão é petrificar o coração human. Os sentimentos e o afeto natural, como todos os demais, necessitam nutrir-se de algo, porque morrem facilmente de inanição...” (WILDE, 2003,p.1449). Assim, o condenado  narrador  da Balada, sucumbe ao irresistível desejo de morrer diante da aterradora solidão, pois “(...) nunca se aproxima voz humana/ Para dizer meiga palavra;/ Os olhos que da porta nos vigiam/ São duros e sem compaixão(...)” (WILDE, 2003,p.983). Esperava ansioso o derradeiro véu. Haveria, assim, paz? Não sabia. O desespero interior que o corroera por dentro só deixara brecha para esperança na morte: “A água salobra que bebemos lenta/ Com lodo, escorre, repugnante;/ E o amargo pão que pesam em balanças/ Está cheio de cal e gesso/ E de olhar desvairado insone vaga/ O Sono o Tempo a implorar.” (WILDE, 2003,p.983). Indiferente a tudo a seu redor – assim aprendera com os anos de confinamento : “E assim enferrujamos a corrente/ Da Vida, sós e degradados;/ Alguns praguejam, outros homens choram,/ E outros nem um gemido dão(...)” (WILDE, 2003,p.983) – aguarda contrito “as mãos sagradas que levaram/ O Bom Ladrão ao Paraíso(...)” (WILDE, 2003,p.984). O narrador está entregue a profunda desilusão, de onde se pergunta insistentemente se  poderá renascer em outra vida. Ele e seus companheiros, porém, “Esquecidos de que grande ou pequeno/ Fora o mal por nós praticado, olhávamos com triste olhar de espanto/ O homem à forca condenado/ E era estranho que o véssemos passar/ Alegre e leve a caminhar /E era estranho que o véssemos olhando/ Tão ansioso a luz do dia,/ E era estranho pensar que ele tivesse /Tamanha dívida a pagar.” (WILDE, 2003,p.972).  O condenado, diferentemente dos outros – até do narrador- abraçara o destino com estranha alegria; superara o sofrimento do erro e sentia ser a morte a libertação dele que matara a quem amara. O impacto deste comportamento do companheiro foi tão grande que tem, certa noite – que podia ser qualquer uma ou todas - uma visão estarrecedora : a dança de criaturas imaginadas que, moviam-se loucamente e pareciam mais vivas e reais que ele – de corpo e alma agrilhoados e, aqui,  o efeito hipnótico da dança – marcadamente assustadora e macabra – “(...)E rápidos passavam, deslizavam,/ Como na névoa os viajantes; /Imitavam a lua numa dança/ De giro e curvas delicados,/ E com passo solene e graça vil /Ao sabá chegavam as almas. /Passar vimos com careta e momos,/ Quais frágeis sombras de mãos dadas,/ Em tropel fantasmal rodopiando/ Dançaram a sarabanda:/ Os danados grotescos como o vento/ Na areia traçam arabescos!/ Com piruetas de marionetes/ Em pontas de pé saltitavam;/ Mas as plantas do Medo retiniam/ Naquela horrenda mascarada/ E cantavam bem alto e longamente(...)” (WILDE, 2003,p.976). O texto, portanto, guarda o elemento de sedução da morte tão peculiar nos decadentistas. A idéia, no entanto, fica ainda mais significativa quando, adiante, descrevendo o dia de trabalho, tece uma comparação: “A girar pelo pátio, lentamente,/ Éramos loucos em parada!(...)E a cabeça rapada e pés de chumbo/ Formam alegre mascarada./ Cordas alcatroadas esfiávamos/ Com unhas roídas a sangrar;/ Esfregávamos porta, co chão limpávamos, /Púnhamos grades a luzir; /Aos grupos, o soalho ensaboávamos,/ Chocando baldes com barulho(...)” (WILDE, 2003,p.974). Wilde convida mais uma vez para essa manifestação artística, recurso para que sentimentos sejam expostos. Desta vez, não marcada pela sedução que pode levar à morte, como em Salomé, mas pela morbidez, como se o personagem experimentasse o pesadelo anterior à fatídica visita da morte.

         Enfim, este serão lúgubre chega ao fim, o galo canta, as formas tortuosas se recolhem nos recantos das celas, deslizarão como fantasmas. Marionetes conduzirão o hediondo mascarado e cantarão para despertar o condenado. Enfim a sombra das barras se perfila sobre o muro caiado; o silêncio reina; o hálito gelado da Morte enche a prisão. Não há ofício nesse dia. Os detentos permanecem fechados até o meio-dia. Aí então, os guardas com suas chaves abririam cada cela, os prisioneiros desceriam pesadamente a escada de ferro. O passeio os faria notar a cal no sapato dos guardas: o trabalho estava feito, a horrível tarefa cumprida. Na prisão de Reading ficou o cadáver de um miserável devorado pela cal. Este túmulo de infâmia não tem nome.

A perfeição da forma do poema se junta às emoções sugeridas pela vida na prisão - o pavor, a piedade, o desespero, a indignação – ali desenvolvidas com uma simplicidade trágica.

 Wilde, condenado como o outro a morte do banimento, das profundezas de sua dor, desejou ainda alguns passos, algumas doces palavras ainda. Os duplos se encontram na memória do esteta. Dois condenados, o mesmo temor, a mesma humilhação, a mesma escuridão -  diferentes? Um dia se cruzam: “(...)não na noite santa/ Mas foi no dia, que vergonha(...)” (WILDE, 2003,p.973); havia morrido o companheiro e “(...)Um novo muro da prisão nos circundava/ A nós dois míseros proscritos; O mundo nos havia repelido(...)” (WILDE, 2003,p.973); o outro, porém, encontrara a paz da morte.

         Ao prisioneiro da Balada “de vermelho o homem que lê a Lei /Deu-lhe, de vida, três semanas,/ Só três semanas para lhe curar/ A alma da luta de sua alma,/ E limpar de qualquer mancha de sangue/ A mão que a faca segurava.” (WILDE, 2003,p.984). A Wilde foram dados cerca de três anos e, num colóquio nomeado Reunião em Paris, ciclicamente conclui: “Por  muito que nos esforcemos, nunca chegaremos a alcançar, por trás das aparências das coisas, a sua realidade. E a razão terrível de tudo isto talvez seja a seguinte: que não existe realidade alguma nas coisas, se são separadas de sua aparência.” (WILDE, 2003,p.1453). Se assim não fosse, como entender um condenado tão surpreendentemente feliz com seu destino, contemplando “(...) com tão embevecido olhar, Aquela pequenina tenda azul/ Que os presos chamam de firmamento...” (WILDE, 2003,p.969)(...)” “ E cada nuvem errante, que arrastava/ No ar seus desmanchados velos. /As mãos não retorcia como fazem /Aqueles néscios que pretendem,/ Na caverna do negro Desespero/ Erguer a Esperança enganosa,/ O sol ficava a contemplar, apenas,/ Sorvendo a brisa da manhã.” (WILDE, 2003,p.971). A tristeza da reclusão transforma-se na alegria do fim. Richard Aldington em The Portable Oscar Wilde cita as seguintes palavras ditas por Wilde a André Gide acerca da leitura de livros na prisão:

“I thought, at first, that what would please me most would be Greek

literature, so I asked for Sophocles, but I could not get a relish for it. Then I thought of the Fathers of the Church, but I found them equally uninteresting. And suddenly I thought of Dante. Oh! Dante. I read Dante every day, in Italian, and all through, but neither the Purgatorio nor the Paradiso seemed written for me. It was his Inferno above all that I read; how could I help liking it? Cannot you guess? Hell, we were in it – Hell, that was prison.” 7.

 

Wilde foi libertado em maio de 1897 e diria que se tivesse sido libertado um pouco antes teria deixado o lugar sentindo por ele e seus funcionários um ódio amargo que teria envenenado sua vida. Agora relembra as grandes bondades que quase todos tiveram por ele, no último ano (o diretor havia sido trocado e fora permitido ao esteta a leitura de jornais e uma alimentação mais diferenciada).  O prisioneiro C3.3 foi a máscara de ferro que mudou sua fisionomia, fez a cabeça tombar, mas redobrou o amor à vida. Desse conflito chegou à harmonia da luz e da treva; ao se colocar meditativamente acima das consideráveis conseqüências da dor, gerou mais uma vez a obra de arte.

Em 13 de fevereiro, é publicada a primeira edição composta de 30 exemplares ao preço de um guinéu em papel Japão e de 800 exemplares sobre papel Holanda vendidos por meia-coroa. A dedicatória , aqui reproduzida, foi suprimida a pedido do editor Leonard Smithers:

 

 

“Quand je sortis de prison, certains vinret à ma rencontre avec des

vêtements et avec des épices, Et d’autres avec de sages conseils,

Vous ,’avez apporté votre amour.”

 

Em 1913, uma importante edição em língua francesa foi precedida de um relato histórico acerca das circunstâncias que permearam a composição e publicação do poema em língua francesa na Coleção Autores estrangeiros de “Mercure de France”. O texto em inglês foi colocado ao lado da tradução no volume a venda. A principal razão seria oferecer um número de páginas razoável que justificasse o alto preço, o que preocupou Smithers, pela concorrência A grande novidade foi ser ilustrada – o artista deveria interpretar a expressão tragicamente simbólica do destino humano, este canto de dor vindo das profundezas da pior miséria - e Gabriel Daragnés foi o escolhido. Wilde havia conhecido as alegrias e o orgulho do sucesso, o futuro lhe ofertara a miragem da celebridade, das honras e da glória, mas chegou à imortalidade por uma estrada imprevista. Amante do desenho, Wilde imaginara a composição, o formato, a encadernação e fazia disso um jogo no qual os recursos de seu gosto delicado e de sua faustosa imaginação eram infinitos. O esteta sabia que seu poema não era uma obra de circunstância, mas inspirado por um suplício físico e moral de dois anos; por isso, estava destinado a co-mover tantos quantos o lessem. Conta D-Dravray, o tradutor francês, da relutância de Wilde em transpor o poema para esta língua. Ele sentia algum embaraço para justificar sua recusa, tentando dissimular com um sorriso contido, uma faísca no olhar; parecia não entender que D-Davray pensava numa versão em prosa. Entendida a intenção, disse que o mérito do poema residia em grande parte na sua forma e sem a música do verso não restaria nada. Começou por desafiá-lo a traduzir com perfeição e esmero passagens de Keats, Racine, Shakespeare, Coleridge, Shelley e William Morris, torturando a memória  do tradutor. Continua D-Davray que Wilde parecia escutá-lo com um ar ao mesmo tempo divertido e surpreso. O último argumento para convencer Wilde foi fazê-lo observar que os próprios poetas ao traduzirem poetas, haviam recorrido à prosa, por exemplo, Mallarmé com sua versão do Corvo de Allan Poe. Sentiram a necessidade de escapar aos entraves e às restrições da métrica. E termina dizendo que o próprio Wilde teve a experiência, já que sua Salomé é um poema em prosa. Gargalhando, o esteta se dá por vencido e ambos passam a trabalhar na primeira versão, pronta em poucos dias, com cada palavra pensada, cada frase lida em voz alta, relida, silabada, com todas as entonações possíveis. Os detalhes sobre a prisão desconhecidos pelo tradutor eram explicados com toda boa vontade por Wilde, que reconhecia o esforço de D-Davray, mas repetia que faltava a ele ter estado em uma prisão, e inglesa! Até lá, não possuiria uma versão completa e a tradução estaria imperfeita. E sobre isto, certo dia declara num tom solene estar tudo resolvido para que D-Davray passasse uma temporada em uma cela na prisão de Reading, por Wilde alugada. O tradutor estremece e diverte o esteta. A partir da jocosa sugestão passa a se mostrar indulgente e bem-humorado. D-Davray termina o relato desculpando-se por entrar em cena, mas a intenção foi evocar a luminosa e inesquecível figura do poeta. Com a Balada, deixa de ser o Sirius  – estrela mais brilhante do céu, da constelação do Grande Cão – da comédia irônica, atitude ensaiada em De Profundis (ainda escrita no cárcere). Acolhe a tragédia com mais veemência. A Balada é fruto do martírio; visa a eternidade. Diz Michel Foucault que “o encantamento não está ligado a um segredo depositado nas dobras da linguagem por uma mão exterior; ele nasce das formas próprias a essa linguagem quando ele se desdobra a partir dela mesma segundo o jogo de suas possíveis nervuras.

         A escrita poética feita vida por Wilde abriu nosso olhar não só para o que fora criado, como para tudo o que ainda poderá vir a acontecer quando a força artística é reconhecida parte integrante e essencial da existência.



 

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