quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Wilde,leitor


O DESAFIO DO CAMINHO : no jogo da leitura a tecitura     da trama


                           (parte adaptada da tese)



         Máscara ainda a ser explorada: a de Wilde leitor. A partir da leitura dos clássicos, banqueteando-se de sua poesia, percebeu, ouviu com arte (hear with art) – usou do coração (HEART) nas letras, estas partes desmembradas do seu e de outros corpos a serem decifrados .
          Procuramos nos inserir na biblioteca wildiana – para nós um espaço imaginário. Desde criança exposto a tradição irlandesa dos contadores de histórias, jovem participando das reuniões intelectuais promovidas por sua mãe – poetisa reconhecida e extremamente respeitada -, até a recusa das brincadeiras com outras crianças, na escola,  para se deliciar com as páginas de um livro, ousamos desenhar a força que a escolha já operava em sua vida. Criando e recriando sentidos e direções, Wilde destacava-se dos outros da mesma idade, o que fez com que a mãe por várias vezes ao comentar sobre os filhos dissesse que Will era ótimo, mas Oscar estava definitivamente destinado ao sucesso.

 A máscara de leitor da qual haveria de se servir prescindiria até do livro em si. Por meio dela, por trás dela, ‘brincaria’ de um jogo que aos poucos se tornaria perigoso – o de se ver nas páginas, ou como páginas.

Como nas reproduções dos antigos, Wilde foi flagrado inúmeras vezes com um livro em mãos. Fixou a idéia de que cada livro continha também a história do leitor e buscou vorazmente interpretar o mundo à sua volta. Cada livro que leu o pressupôs; cada página virada remetia-o circularmente à primeira página lembrando- o de que nunca deveria parar de fazer perguntas, já que não poderia haver a última palavra em leitura. A textura do papel, seu odor, tudo eram vozes que o faziam recordar-se “com memória alheia”, como diz Ricardo Piglia em seu Borges: a arte de narrar (SCHWARTZ,2001, p.33). Duplica o mistério, entrega-se à trilha da leitura. . Reconheceu o caráter provisório da leitura, sempre a completar-se, sempre a refazer-se. Cada ‘ponto final’ era para ele uma vírgula – pausa breve, rápido movimento de expiração para que retornasse à inspiração. Parece-nos ver o cuidado com que passava as folhas de cada livro, meditando, ruminando sobre o lido, como que adivinhando tramas e desenlaces e, possivelmente, sintetizando uns, estendendo outros. Fácil imaginar o vôo de seu pensamento ao ser apresentado a cada personagem, a cada nova idéia, a cada proposta para um modo de vida; demorando-se na página, acariciando e sendo acariciado.

         A palavra plot, em inglês enredo, é também terra destinada à sepultura. Ora, o enredo para uma história não se poderia deixar sepultar em um final, pois deveria ser continuação para outras tantas. Ainda assim, é sempre morte, assim como evidente vida, para o leitor. Algumas histórias são morte para uma vida acomodada e perspectiva de existência renovada. Ficam as cinzas, como sementes para um corpo novo. Wilde, no entanto, parecia já ir ainda mais além: o enredo perfeito que buscava sepultaria sua presença como veiculador da mensagem artística, para uma vida que era obra e só obra.

Plácido, como um inglês, impulsivo e imaginativo, como um irlandês, sublinhou em cada passagem, plena de força poética, o drama musicado da existência, externando o incontrolável poder das palavras, sempre em vigília, em zelo. Como os olhos no movimento da leitura – da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de baixo para cima – sujeito nômade, na intimidade com as entranhas de outros costumes anexou o passado e o futuro ao presente, sempre em movimento. Acreditando no ato de caminhar como condição essencial para o desenvolvimento do pensamento, Wilde andou por diversos lugares, esculpindo, arquitetando um discurso que, atrelado ao passo, seria trunfo para um triunfo estético. Do apaixonado trabalho com os textos,  tomando das obras o que ofereciam, produziu o efeito concreto e visível da acuidade singular de uma prosa artesanal. Esculturas ainda invisíveis aos olhos se produziam em sua mente e a cada toque imaginário a forma se tornava mais ‘real’.


E assim, distingue-se na cabeça curvada ou no corpo arqueado sobre a folha, o impulso do corredor. Havia muito a apreender, a ruminar para o fim que era a apropriação deste corpo que era escrita também e só.A silhueta se modificava e o efeito de camuflagem começava a invadir o meio em que circulava.

            Considerado o melhor helenista de sua geração, tinha todos os atributos que poderiam gerar atenção: cultura, entusiasmo e um vocabulário invejável. Do lente de Brasenose College, Walter Pater,  Wilde recebeu lancinante influência. As palavras acenando para uma vida vivida no espírito da arte tocaram fundo o jovem, que deixou-se envolver nesse encantado contato com o antigo professor de Oxford.

         Pater foi leitor dos filósofos românticos alemães e grande admirador de Goethe, acreditando que o artista deveria trabalhar para tornar-se uma personalidade completa e rica para daí fazer de sua obra uma inevitável expressão de si; trabalharia, assim, de dentro para fora trazendo à luz sua individualidade . Sua apreciação incomum da beleza sensual na arte e na natureza resultara em uma notável habilidade de transmitir estas impressões na própria escrita. Conseguiu, então, uma ‘elasticidade’ para princípios inflexíveis que o estimulariam a distinções cada vez mais peculiares em busca do sonho maior: “one should construct for oneself an imaginative world – the ‘type’, or purified, ‘rectified’ essence of the real world, a ‘vision’ of the ideal – and live in it.”6. Para o estudioso, este sonho era consolador, mas não o suficiente para mobilizá-lo; não comungava do lado social e humanitário do movimento estético, diferentemente do contemporâneo John Ruskin – emblematicamente falecido também em 1900 -, que proferiu conferências em Oxford entre 1861 e 1878, e ulteriormente, em 1883 e 1884, e de quem Wilde tornou-se fiel discípulo. Ruskin admitia a vida a serviço da beleza como vida a serviço da humanidade. Diz Philippe Julian em Oscar Wilde:



“Many aspects of Victorian England owed their origins to the influence

of Ruskin. For example, at Oxford, buildings such as the Union and the

                                           Museum bear traces of his form of mysticism(...)” .



O eminente professor, em análise sobre sistemas arquitetônicos, apontava o ornamental revolucionário como aquele que não admitiria inferioridade em sua constituição. A arquitetura mostraria-se exortação desta forma. A recorrência da arquitetura para exemplificação – ou materialização - do movimento da literatura será marcante. Daí a menção constante de Nietzsche acerca da construção do pensamento, das curvas e modulações, das nuances e combinações. O esforço, porém, para uma grande edificação intelectual não era grande para Ruskin. Diz ele que uma grande coisa só pode ser feita por um grande homem e este o faz sem esforço algum . Sem contestar o mestre, parece-nos que Wilde não concordaria com a idéia por completo. Um indivíduo que se reconhece como artista da vida – e só assim vendo nele um destino – exigiria de si enorme esforço para que a contradição estivesse sempre a frente para que não sucumbisse a comodidade dos que esqueceram o valor da criação. Wilde sabia que qualquer tremulação faria com que um borrão de tinta manchasse as linhas cuidadosamente preparadas. Mesmo a passos largos, estes deveriam ser firmes o bastante para evitar tropeços. Olhos fixos embaixo, no papel, e pensamento fortemente postos no alto. O cuidado, no entanto, não deveria fazê-lo evitar o confronto com adversários. Estes fortificariam ainda mais seus ideais e fariam com cada vez mais articulasse réplicas imaginárias, acendendo dia-a-dia suas vozes interiores. Em Oxford já travava um combate.

         Da brilhante combinação dos dois mestres, Wilde mostrou-se particularmente interessado em uma re-organização da sociedade que permitisse a ação libertadora da arte; introduzir dúvidas numa era de certezas. Sua visão poética permitiu-lhe a reunião em um mesmo ensaio, já por si uma obra de arte, suas impressões sobre as diversas manifestações artísticas; falaria da arte concretamente ao fazer reviver o pensamento grego somado a agitação da vida moderna. Se, ao agir, o homem moderno se parece com uma marionete, ao falar, ao escrever, seria um poeta. A visão do que se senta e assiste é ilimitada e absoluta e, aqui, nota-se claramente influência de Chuang Tzu*. Se é ilimitada, seus segredos últimos nunca poderão ser revelados point for an ideal . Inegável e talvez desnecessário reafirmar a forte influência de Speranza. A firmeza das posições político-sociais da mãe fizeram de Wilde também um leitor à frente de seu tempo.  A viagem interior estava em progresso e o mundo o chamava; obediente, vai ao encontro dos antigos.

          Em 1875, já agraciado com a bolsa de estudos no Magdalen College, viaja nas férias  para a Itália  com o Prof Mahaffy – antigo mentor, um artista nas palavras vívidas e no silêncio eloqüente e sobre a inesquecível experiência diz em carta à mãe, datada de 24 de junho de 1875:



“(...)Believe me Venice in beauty of architecture and colour is beyond

description. It is the meeting place of the Byzantine and Italian Art –

a city belonging to the East as much as to the West(...)Arrived in Milan

                             in a shower of rain.(about the Cathedral): These moderns  don’t  see

                             that the use of a window  in  a church is to show  a  beautiful massing

                             together  and  blending  of  colour   a good  old window has the rich

                             pattern of  a Turkey carpet(...)Milan is a second Paris( ...)” .

                                          

           

(Daí o comentário de João do Rio - no prefácio para a edição de Intenções de Wilde – de que só na cidade-máscara poderia fielmente escrever sobre o esteta irlandês). Parecia reconhecer de imediato as observações de Ruskin sobre a cidade-máscara: sua redundância, sua indomesticabilidade; é grotesca e suave, obstinada e generosa, evocando perturbadora imaginação, perpétua mobilidade, trânsito contínuo. Parecia arrebatado e rendido a essa silenciosa melodia. Tornara-se escritor. Como resultado da excursão, presenteia o público com uma série de poemas de exaltação às imagens – já tão conhecidas pelos lábios incendiários do mestre Ruskin -, que vieram a ser publicados em 1881 sob o título Poemas. O jovem aprendiz despertava um ardor pelos ternos acordes que fariam vibrar as fibras de sua carne. Chama-nos um fragmento de O túmulo de Keats, escrito em Roma em 1877:



“Libertado da injustiça do mundo e de sua dor,
                                                   repousa por fim sob o céu azul de Deus:
             arrebatado da vida, quando a vida e o amor eram novos,
                                                         aqui jaz o mais juvenil dos mártires(...)
                                                          Oh! poeta-pintor de nossa terra inglesa!
      Teu nome foi escrito na água(...)e perdurará(...)” 



Em 1876, a ida à Grécia, berço de uma Antigüidade que privilegiara o culto à beleza, completa o circuito para uma leitura prática do pensamento clássico fazendo uma ‘leitura prática’ para uma trajetória intelectual que ansiava ser singular.A alegria da visita ficou registrada em seu Impression de Voyage:

“O mar tinha a cor de safira e o céu ardia como uma opala acesa;

                                  içamos a vela. O vento soprava com a força do lado dos países

                                  azuis que se estendem para o Oriente.

       Da proa escarpada contemplei, com a mais viva atenção, Zakynthos,

         E cada enseada, as costas de Ítaca, o pico nevado de Licaon e todas as

                                  colinas da Arcádia com suas galas floridas.

          O palpitar da vela contra o mastro, as ondulações que se formavam aos

    lados na água e as do riso das moças na proa; nenhum outro ruído.

       Quando o Ocidente se incendiou e um sol vermelho balançou-se sobre

                                 Os mares, achei-me, por fim, sobre o solo da Grécia!” .

De Platão a Aristóteles, passando por Kant, Hegel, Locke, Hume, Berkeley, Mill e Spencer suas escolhas ilustram a combinação que desejava: antigo e moderno enlaçando as verdades eternas do pensamento clássico e as novas especulações progressistas.  Um êxito vem coroar o ano de 1878: seu poema Ravenna recebe o prêmio Newdigate. Sucesso merecido. Um corpo destinado à pluralidade, mas reprimido na homogeneidade. Corpo fiel seguidor do provocante Baudelaire. Diz de suas Flores do mal em O crítico como artista:



                     “Leia o livro inteiro, deixe que revele à alma um só de seus segredos

                        e sua alma  sentirá   ânsias  de  saber  mais e  se  alimentará  de  mel

                          envenenado e  quererá   arrepender-se   de  estranhos  crimes que  não

                           cometeu  e expiar  terríveis prazeres  que  nunca  conheceu.  E depois,

                         quando   estiver você  fatigado dessas  flores do mal, volva-se  para  as

                         flores  que  crescem  no   Jardim  de   Perdita  e  refresque   sua  fronte

                                         encarolado em  seus cálices  úmidos  de rocio e que sua graça adorável

                                         cure e reanime sua alma(...)”



         A grande obra artística a ser considerada seria a de uma vida devotada às idas e vindas deste corpo viajante sempre às voltas com o infinitoOlha tudo e a ele se revelam diferentes mundos, os que podia ver e os que uma memória encantada desnudava. Se aos olhos até então só era permitido ver o que estavam treinados a ver, admitiu plena atuação das forças imaginativas. Os espaços visitados perderam suas fronteiras geográficas para, unidos, formarem o palco ideal para um super artista, um artista de superação de limites. Uma dança de véus se inicia e Wilde sabia que para nunca terminar, pois recolheria frutos velejando em mares fecundos.

                                              

Escolheu no presente sem fim o tema da sombra, do esquecido, do silêncio, do proibido, do futuro que é passado. Flanêur literário, acentuando a memória como arte, utilizou-se de nomes de lugares na Inglaterra visitados para identificar alguns de seus personagens. Temos, então, com Goring, seu Lorde Goring de Um marido ideal ; e com Worthing, seu John Worthing de A importância de ser prudente . Das margens do Lago Windermere, na Escócia, deu-nos a protagonista de O leque da Sra. Windermere . Leitor apaixonado, escritor louco, promoveu um texto inédito. Wilde repousa suas personagens sobre os efeitos – para alguns – repugnantes do então movimento das cidades. Para seus dândis e suas fortes figuras femininas de comédia, a rua é deleite, invasão de Eros para completar o ciclo de sedução. O texto wildiano permanece atual porque dotado de estupefaciante originalidade de um corpus a ser cumprido.

         A quietude do texto falaria nas atitudes do esteta irlandês, articuladoras de um caminho outro. Sabia que o maior perigo estava no que já não era mais percebido : que o corpo achava-se controlado, ‘despoetizado’. Seu questionamento visava esta serventia. À força de definições, conceitualizações e representações, os indivíduos haviam se enfraquecido. Fez-se conhecer em seus escritos não porque achasse que fosse preciso, mas porque não poderia deixar de fazê-lo. Havia uma ‘urgência’ que o impulsionava a este jogo circular. Mesclando sentimentos, ele-autor ‘confunde’ ele-leitor, cruzando realidade e imaginação – almejando ser caçado. Era preciso uma experiência real com a linguagem: banquetear-se de poesia. Para ele e para o outro. A tradução das novas idéias viria também pelo gesto. Este sustentaria o dito. Para ele e para o outro. O leitor-escritor, como ator, deslocando as medidas, ateando fogo às palavras em uma predileção pelo frasear acentuadamente sedutor, frente a um horizonte em constante deslocamento.



 Ao ler-se como obra artística, realizou-se, foi participante ativo de um mundo cuja dinamicidade encontrava-se equivocadamente unida ao lucro. Assumindo cada minuto como único e não apenas mais um, movimenta-se em espiral ascendente ao, paradoxalmente, mergulhar nas paixões dos sentidos. Protegido pelas mãos trágicas de um destino que não se destacaria pelo acaso, mas pela muda previsão dos oráculos, Renega o corpo como valor de mercado, morre para fora e assume um ritmo interior eletrizante que o faria galgar as alturas da des-preocupação grega e romper com os grilhões da prosa.

 

Ao concluir, fechar, seu único romance, Wilde se abre mais plenamente como texto; torna-se discípulo de si mesmo. Nas nervuras das linhas, na plástica de uma rede original é desafiado a uma insólita aventura. As palavras em relevo, num exercício perspicaz, formam uma teia que levaria o esteta, num movimento singular, a assumir-se como leitura. Leitura provocadora, angustiante, inquieta. Texto morto como informação, mas prenhe de uma nova linguagem. Feita a troca de sua existência com ou pela letra, nomeando-se obra de arte, Wilde morre e renasce numa linguagem de simultaneidade.  Wilde trouxe ao ar um aroma estonteante, de confusão. Fusão de harmonia e caos. O que Borges, menino, temia acontecer durante a noite quando fechava um livro- que as letras se embaralhassem -, Wilde fez com tranqüilidade e destreza. Embaralhou-se. Preferiu o risco, a incerteza das várias leituras para uma obra do que a vida corrente de cidadão comum. Trocista, inocente, sarcástico, bondoso, malévolo, abriu-se a todas as máscaras permitidas pela escritura.




 

   

  

* Citado no artigo Um sábio chinês, de 1890.

2 comentários:

  1. Belíssimo o seu texto descrevendo a trajetória de Oscar Wilde, que sob grandes influências literárias teceu seu estilo próprio, revolucionário e encantador.
    Seus textos são uma verdadeira aula de história e literatura!
    Bjs , boa noite
    Elisabeth A. Pinto

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  2. Que bom que gostou, Elisabeth.Acredite, não é difícil escrever quando o que inspira é um texto de Oscar Wilde. Bjs.

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