O DESAFIO DO CAMINHO : no jogo da
leitura a tecitura da trama
Máscara
ainda a ser explorada: a de Wilde leitor. A partir da leitura dos clássicos,
banqueteando-se de sua poesia, percebeu, ouviu com arte (hear with art) – usou do coração (HEART) nas letras, estas partes
desmembradas do seu e de outros corpos a serem decifrados .
Procuramos nos inserir na biblioteca wildiana – para nós um espaço imaginário.
Desde criança exposto a tradição irlandesa dos contadores de histórias, jovem
participando das reuniões intelectuais promovidas por sua mãe – poetisa
reconhecida e extremamente respeitada -, até a recusa das brincadeiras com
outras crianças, na escola, para se
deliciar com as páginas de um livro, ousamos desenhar a força que a escolha já
operava em sua vida. Criando e recriando sentidos e direções, Wilde
destacava-se dos outros da mesma idade, o que fez com que a mãe por várias
vezes ao comentar sobre os filhos dissesse que Will era ótimo, mas Oscar estava
definitivamente destinado ao sucesso.
A máscara de leitor da qual haveria de se
servir prescindiria até do livro em si. Por meio dela, por trás dela,
‘brincaria’ de um jogo que aos poucos se tornaria perigoso – o de se ver nas
páginas, ou como páginas.
Como nas reproduções
dos antigos, Wilde foi flagrado inúmeras vezes com um livro em mãos. Fixou a
idéia de que cada livro continha também a história do leitor e buscou
vorazmente interpretar o mundo à sua volta. Cada livro que leu o pressupôs;
cada página virada remetia-o circularmente à primeira página lembrando- o de
que nunca deveria parar de fazer perguntas, já que não poderia haver a última
palavra em leitura. A textura do papel, seu odor, tudo eram vozes que o faziam
recordar-se “com memória alheia”, como diz Ricardo Piglia em seu Borges: a arte de narrar (SCHWARTZ,2001,
p.33). Duplica
o mistério, entrega-se à trilha da leitura. . Reconheceu o caráter provisório da leitura, sempre a
completar-se, sempre a refazer-se. Cada ‘ponto final’ era para ele uma vírgula
– pausa breve, rápido movimento de expiração para que retornasse à inspiração.
Parece-nos ver o cuidado com que passava as folhas de cada livro, meditando,
ruminando sobre o lido, como que adivinhando tramas e desenlaces e,
possivelmente, sintetizando uns, estendendo outros. Fácil imaginar o vôo de seu
pensamento ao ser apresentado a cada personagem, a cada nova idéia, a cada
proposta para um modo de vida; demorando-se na página, acariciando e sendo
acariciado.
A palavra plot, em inglês enredo, é também terra destinada à sepultura.
Ora, o enredo para uma história não se poderia deixar sepultar em um final,
pois deveria ser continuação para outras tantas. Ainda assim, é sempre morte, assim como evidente vida, para o
leitor. Algumas histórias são morte para uma vida acomodada e perspectiva de
existência renovada. Ficam as cinzas, como sementes para um corpo novo. Wilde,
no entanto, parecia já ir ainda mais além: o enredo perfeito que buscava
sepultaria sua presença como veiculador da mensagem artística, para uma vida
que era obra e só obra.
Plácido, como um inglês,
impulsivo e imaginativo, como um irlandês, sublinhou em cada passagem, plena de
força poética, o drama musicado da existência, externando o incontrolável poder
das palavras, sempre em vigília, em zelo. Como os olhos
no movimento da leitura – da esquerda para a direita, da direita para a
esquerda, de baixo para cima – sujeito nômade, na intimidade com as entranhas
de outros costumes anexou o passado e o futuro ao presente, sempre em movimento. Acreditando no ato de caminhar como condição
essencial para o desenvolvimento do pensamento, Wilde andou por diversos
lugares, esculpindo, arquitetando um discurso que, atrelado ao passo, seria
trunfo para um triunfo estético. Do apaixonado trabalho com os textos, tomando das obras o que ofereciam, produziu o
efeito concreto e visível da acuidade singular de uma prosa artesanal.
Esculturas ainda invisíveis aos olhos se produziam em sua mente e a cada toque
imaginário a forma se tornava mais ‘real’.
E assim, distingue-se na cabeça curvada
ou no corpo arqueado sobre a folha, o impulso do corredor. Havia muito a apreender,
a ruminar para o fim que era a apropriação deste corpo que era escrita também e
só.A
silhueta se modificava e o efeito de camuflagem começava a invadir o meio em
que circulava.
Considerado
o melhor helenista de sua geração, tinha todos os atributos que poderiam gerar
atenção: cultura, entusiasmo e um vocabulário invejável. Do lente de Brasenose
College, Walter Pater, Wilde recebeu
lancinante influência. As palavras acenando para uma vida vivida no espírito da
arte
tocaram fundo o jovem, que deixou-se envolver nesse encantado contato com o
antigo professor de Oxford.
Pater
foi leitor dos filósofos românticos alemães e grande admirador de Goethe,
acreditando que o artista deveria trabalhar para tornar-se uma personalidade
completa e rica para daí fazer de sua obra uma inevitável expressão de si; trabalharia,
assim, de dentro para fora trazendo à luz sua individualidade . Sua
apreciação incomum da beleza sensual na arte e na natureza resultara em uma
notável habilidade de transmitir estas impressões na própria escrita.
Conseguiu, então, uma ‘elasticidade’ para princípios inflexíveis que o
estimulariam a distinções cada vez mais peculiares em busca do sonho maior:
“one should construct for oneself an imaginative world – the ‘type’, or
purified, ‘rectified’ essence of the real world, a ‘vision’ of the ideal – and
live in it.”6. Para o estudioso, este sonho era consolador, mas não
o suficiente para mobilizá-lo; não comungava do lado social e humanitário do
movimento estético, diferentemente do contemporâneo John Ruskin –
emblematicamente falecido também em 1900 -, que proferiu conferências em Oxford
entre 1861 e 1878, e ulteriormente, em 1883 e 1884, e de quem Wilde tornou-se
fiel discípulo. Ruskin admitia a vida a serviço da beleza como vida a serviço
da humanidade. Diz Philippe Julian em Oscar
Wilde:
“Many aspects of
Victorian England owed their origins to the influence
of Ruskin. For
example, at Oxford, buildings such as the Union and the
Museum bear traces of his form of
mysticism(...)” .
O eminente professor, em análise sobre
sistemas arquitetônicos, apontava o ornamental revolucionário como aquele que
não admitiria inferioridade em sua constituição. A arquitetura mostraria-se
exortação desta forma. A recorrência da arquitetura para exemplificação –
ou materialização - do movimento da literatura será marcante. Daí a menção
constante de Nietzsche acerca da construção do pensamento, das curvas e
modulações, das nuances e combinações. O esforço, porém, para uma grande
edificação intelectual não era grande para Ruskin. Diz ele que uma grande coisa
só pode ser feita por um grande homem e este o faz sem esforço algum
. Sem contestar o mestre, parece-nos que Wilde não concordaria com a idéia por
completo. Um indivíduo que se reconhece como artista da vida – e só assim vendo
nele um destino – exigiria de si enorme esforço para que a contradição estivesse
sempre a frente para que não sucumbisse a comodidade dos que esqueceram o valor
da criação. Wilde sabia que qualquer tremulação faria com que um borrão de
tinta manchasse as linhas cuidadosamente preparadas. Mesmo a passos largos,
estes deveriam ser firmes o bastante para evitar tropeços. Olhos fixos embaixo,
no papel, e pensamento fortemente postos no alto. O cuidado, no entanto, não
deveria fazê-lo evitar o confronto com adversários. Estes fortificariam ainda
mais seus ideais e fariam com cada vez mais articulasse réplicas imaginárias,
acendendo dia-a-dia suas vozes interiores. Em Oxford já travava um combate.
Da
brilhante combinação dos dois mestres, Wilde mostrou-se particularmente
interessado em uma re-organização da sociedade que permitisse a ação
libertadora da arte; introduzir dúvidas numa era de
certezas. Sua visão poética permitiu-lhe a reunião em um mesmo ensaio, já por
si uma obra de arte, suas impressões sobre as diversas manifestações
artísticas; falaria da arte concretamente ao fazer reviver o pensamento grego
somado a agitação da vida moderna. Se, ao agir, o homem moderno se parece com
uma marionete, ao falar, ao escrever, seria um poeta. A visão do que se senta e
assiste é ilimitada e absoluta e, aqui, nota-se claramente influência de Chuang
Tzu*. Se é ilimitada, seus
segredos últimos nunca poderão ser revelados point for an ideal . Inegável e talvez desnecessário reafirmar a forte
influência de Speranza. A firmeza das posições político-sociais da mãe fizeram
de Wilde também um leitor à frente de seu tempo. A viagem interior estava em progresso e o
mundo o chamava; obediente, vai ao encontro dos antigos.
Em 1875, já agraciado com a bolsa de estudos
no Magdalen College, viaja nas férias
para a Itália com o Prof Mahaffy
– antigo mentor, um artista nas palavras vívidas e no silêncio eloqüente e
sobre a inesquecível experiência diz em carta à mãe, datada de 24 de junho de
1875:
“(...)Believe me Venice in beauty
of architecture and colour is beyond
description. It is the meeting
place of the Byzantine and Italian Art –
a city belonging to the East as
much as to the West(...)Arrived in Milan
in a shower of rain.(about the
Cathedral): These moderns don’t see
that
the use of a window in a church is to show a beautiful massing
together
and blending of colour – a
good old window has the rich
pattern
of a Turkey carpet(...)Milan is a second
Paris( ...)” .
(Daí o comentário de João do Rio - no prefácio para a edição de Intenções de Wilde – de que só na
cidade-máscara poderia fielmente escrever sobre o esteta irlandês). Parecia
reconhecer de imediato as observações de Ruskin sobre a cidade-máscara: sua
redundância, sua indomesticabilidade; é grotesca e suave, obstinada e generosa,
evocando perturbadora imaginação, perpétua mobilidade, trânsito contínuo.
Parecia arrebatado e rendido a essa silenciosa melodia. Tornara-se escritor. Como
resultado da excursão, presenteia o público com uma série de poemas de
exaltação às imagens – já tão conhecidas pelos lábios incendiários do mestre
Ruskin -, que vieram a ser publicados em 1881 sob o título Poemas. O jovem aprendiz despertava um ardor pelos ternos acordes
que fariam vibrar as fibras de sua carne. Chama-nos um fragmento de O
túmulo de Keats, escrito em Roma em 1877:
“Libertado da injustiça do mundo e de sua dor,
repousa por fim sob o céu azul de Deus:
arrebatado da vida,
quando a vida e o amor eram novos,
aqui jaz o mais juvenil dos mártires(...)
Oh! poeta-pintor de nossa terra
inglesa!
Teu nome foi escrito na
água(...)e perdurará(...)”
Em 1876, a ida à
Grécia, berço de uma Antigüidade que privilegiara o culto à beleza, completa o
circuito para uma leitura prática do pensamento clássico fazendo uma ‘leitura prática’ para uma trajetória
intelectual que ansiava ser singular.A alegria da visita ficou registrada em
seu Impression de Voyage:
“O mar tinha a cor de safira e o céu ardia como uma opala acesa;
içamos a vela. O vento soprava
com a força do lado dos países
azuis que se
estendem para o Oriente.
Da proa escarpada
contemplei, com a mais viva atenção, Zakynthos,
E cada enseada, as
costas de Ítaca, o pico nevado de Licaon e todas as
colinas da
Arcádia com suas galas floridas.
O palpitar da vela
contra o mastro, as ondulações que se formavam aos
lados na água e as do riso
das moças na proa; nenhum outro ruído.
Quando o Ocidente se
incendiou e um sol vermelho balançou-se sobre
Os mares,
achei-me, por fim, sobre o solo da Grécia!” .
De Platão a
Aristóteles, passando por Kant, Hegel, Locke, Hume, Berkeley, Mill e Spencer
suas escolhas ilustram a combinação que desejava: antigo e moderno enlaçando as
verdades eternas do pensamento clássico e as novas especulações progressistas. Um êxito vem coroar o ano de 1878: seu poema Ravenna recebe o prêmio Newdigate. Sucesso merecido.
Um corpo destinado à pluralidade, mas reprimido na homogeneidade. Corpo
fiel seguidor do provocante Baudelaire. Diz de suas Flores do mal em O crítico
como artista:
“Leia o livro inteiro, deixe que
revele à alma um só de seus segredos
e sua alma sentirá
ânsias de saber mais e se alimentará
de mel
envenenado e quererá arrepender-se de estranhos crimes que não
cometeu e expiar terríveis prazeres que nunca conheceu. E depois,
quando estiver
você fatigado dessas flores do mal, volva-se para as
flores que crescem no Jardim de Perdita e refresque sua fronte
encarolado
em seus cálices úmidos de rocio e que sua graça adorável
cure
e reanime sua alma(...)”
A grande obra artística a ser
considerada seria a de uma vida devotada às idas e vindas deste corpo viajante
sempre às voltas com o infinitoOlha tudo e a ele se revelam diferentes mundos, os que podia ver
e os que uma memória encantada desnudava. Se aos olhos até então só era
permitido ver o que estavam treinados a ver, admitiu plena atuação das forças
imaginativas. Os espaços visitados perderam suas fronteiras geográficas para,
unidos, formarem o palco ideal para um super artista, um artista de superação
de limites. Uma dança de véus se inicia e Wilde sabia que para nunca terminar,
pois recolheria frutos velejando em mares fecundos.
Escolheu no presente
sem fim o tema da sombra, do esquecido, do silêncio, do proibido, do futuro que
é passado. Flanêur literário, acentuando a memória como arte, utilizou-se de
nomes de lugares na Inglaterra visitados para identificar alguns de seus
personagens. Temos, então, com Goring, seu Lorde Goring de Um marido ideal ; e com Worthing, seu John Worthing de
A importância de ser prudente
. Das margens do Lago Windermere, na Escócia, deu-nos a protagonista de O leque da Sra. Windermere . Leitor apaixonado, escritor louco, promoveu um texto
inédito. Wilde
repousa suas personagens sobre os efeitos – para alguns – repugnantes do então
movimento das cidades. Para seus dândis e suas fortes figuras femininas de
comédia, a rua é deleite, invasão de Eros para completar o ciclo de sedução. O
texto wildiano permanece atual porque dotado de estupefaciante originalidade de
um corpus a ser cumprido.
A
quietude do texto falaria nas atitudes do esteta irlandês, articuladoras de um
caminho outro. Sabia que o maior perigo estava no que já não era mais percebido
: que o corpo achava-se controlado, ‘despoetizado’. Seu questionamento visava
esta serventia. À força de definições, conceitualizações e representações, os
indivíduos haviam se enfraquecido. Fez-se conhecer em seus escritos não porque
achasse que fosse preciso, mas porque não poderia deixar de fazê-lo. Havia uma
‘urgência’ que o impulsionava a este jogo circular. Mesclando sentimentos,
ele-autor ‘confunde’ ele-leitor, cruzando realidade e imaginação – almejando
ser caçado. Era preciso uma experiência real com a linguagem: banquetear-se de
poesia. Para ele e para o outro. A tradução das novas idéias viria também pelo
gesto. Este sustentaria o dito. Para ele e para o outro. O leitor-escritor,
como ator, deslocando as medidas, ateando fogo às palavras em uma predileção
pelo frasear acentuadamente sedutor, frente a um horizonte em constante deslocamento.
Ao
ler-se como obra artística, realizou-se, foi participante ativo de um mundo
cuja dinamicidade encontrava-se equivocadamente unida ao lucro. Assumindo cada
minuto como único e não apenas mais um, movimenta-se em espiral ascendente ao,
paradoxalmente, mergulhar nas paixões dos sentidos. Protegido pelas mãos trágicas
de um destino que não se destacaria pelo acaso, mas pela muda previsão dos
oráculos, Renega o corpo como valor de mercado, morre para fora e assume um
ritmo interior eletrizante que o faria galgar as alturas da des-preocupação
grega e romper com os grilhões da prosa.
Ao concluir, fechar,
seu único romance, Wilde se abre mais plenamente como texto; torna-se discípulo
de si mesmo. Nas nervuras das linhas, na plástica de uma rede original é
desafiado a uma insólita aventura. As palavras em relevo, num exercício
perspicaz, formam uma teia que levaria o esteta, num movimento singular, a
assumir-se como leitura. Leitura provocadora, angustiante, inquieta. Texto
morto como informação, mas prenhe de uma nova linguagem. Feita a troca de sua
existência com ou pela letra, nomeando-se obra de arte, Wilde morre e renasce
numa linguagem de simultaneidade. Wilde trouxe ao ar um
aroma estonteante, de confusão. Fusão de harmonia e caos. O que Borges, menino,
temia acontecer durante a noite quando fechava um livro- que as letras se
embaralhassem -, Wilde fez com tranqüilidade e destreza. Embaralhou-se.
Preferiu o risco, a incerteza das várias leituras para uma obra do que a vida
corrente de cidadão comum. Trocista, inocente, sarcástico, bondoso, malévolo,
abriu-se a todas as máscaras permitidas pela escritura.
“
Belíssimo o seu texto descrevendo a trajetória de Oscar Wilde, que sob grandes influências literárias teceu seu estilo próprio, revolucionário e encantador.
ResponderExcluirSeus textos são uma verdadeira aula de história e literatura!
Bjs , boa noite
Elisabeth A. Pinto
Que bom que gostou, Elisabeth.Acredite, não é difícil escrever quando o que inspira é um texto de Oscar Wilde. Bjs.
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