terça-feira, 31 de julho de 2012

Food for thought VIII

    
   "A poesia, pela ruptura que produz, pela tensão insustentável que cria, só pode desejar a ruína da linguagem,mas esta ruina é a única chance que ela tem de se realizar, de se tornar completa, às claras, sob os dois aspectos, sentido e forma, sem os quais é apenas longínquo esforço em direção a si mesma." (Maurice Blanchot em A parte do fogo).


          O paradoxo que a poesia traz -  a ruptura que  constrói; a ruína que busca erigir; o impacto que acalma.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

as ruas do Porto III

                         O esplendor das luxuosas montras da Rua de Santa Catarina reflete-se no chão de pedras onde o trânsito de turistas se intensifica a cada hora. O azul do céu,o frescor da manhã e a curiosidade natural de visitante são os ingredientes perfeitos para as passadas lentas.
                         Muitos são também os trabalhadores que expõem os produtos no chão ou em pequenas tendas na rua. O ruído é impressionante, acrescido do frenético ir e vir nos cafés.
                        Lembro-me aqui das Mariposas de luxo de João do Rio - as moças empregadas em fábricas que, no final do expediente diário, por alguns minutos, admiravam, desacelerando o passo, as ricas montras do centro do Rio de Janeiro do século XIX. O êxtase advindo da visão de tanta beleza só se extinguia diante da insistente lembrança da necessidade do controle no horário do transporte de volta à casa.
                       A nostalgia toma conta de mim. O mundo mudou e é o mesmo. Nosso interior, não. Este se renova a cada experiência. As ruas visitadas escrevem e reescrevem os textos da minha vida. Elas também falam de mim.

as ruas do Porto II

                  Acordo do sonho literário e já estou na Praça da Batalha, subindo a rua Cimo Vila, que acolhe uma das estações rodoviárias da cidade com simpatia. As pedras do chão estão mais gastas e  a opacidade toma o lugar do que já fora, por certo, só brilho nos anos idos. A atração, porém, persiste. Muitos passos ali deixaram marcas. Passos nativos e,muito mais, estrangeiros. Estranhos,mas ao mesmo tempo, moldando-se com perfeição ao asfalto receptivo. O movimento é frenético, acelerado e, ao intenso burburinho, mistura-se o ruído das rodinhas das malas tocando ritimadamente as pedras. Rua para estar na memória, disposta a aproveitar cada momento, evitando aflições e tensões.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Food for thought special

           "(...)que é o próprio homem senão um cego inseto inane a zumbir contra a janela fechada; instintivamente sente para além do vidro uma grande luz e calor. Mas, é cego e não pode vê-la, nem pode ver se algo se interpõe entre ele e a luz(...)Contudo, acredito que o homem de gênio, o poeta, de algum modo consegue atravessar o vidro para a luz do outro lado; sente calor e alegria(...). Fernando Pessoa, Livro do desassossego.

                Este homem de que primeiro fala Pessoa é aquele que se priva da beleza da existência e não aprecia e vibra com a força da palavra. Os eleitos aproveitam-se do calor de quem se sabe único.

as ruas do Porto

                    Desço a rua da Fábrica, admirando cada detalhe e inspirando o ar trabalhador, vigoroso, que ela exala. Não se anda vagarosamente por sua estreiteza. O passo se acelera como que num passe de mágica. É rua séria, resignada à velocidade da era moderna, acostumada à indiferença de alguns transeuntes. Traz, contudo, para mim, o encanto das pedras e asfalto que acolhem e entregam com presteza os visitantes à Avenida dos Aliados. Nesta, que brilha com tal intensidade, a passada diminui automaticamente. É ampla, clara, de uma alegria singular, sofisticada - e ao mesmo tempo simples - e contagiante. Suas calçadas convidam ao descanso, à pausa que restaura.
                   Fecho os olhos e imagino Fernando Pessoa ou mesmo João do Rio - grande amante das terras portuguesas - absorto em pensamentos de textos ainda retidos na imaginação. O passo é suave. A noite vai caindo, as luzes se acendendo e as pedras se tornam ainda mais cintilantes. Paro e escrevo também linhas na imaginação e estas linhas são ainda meu esboço.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

nas ruas da cidade do Porto

                      Colo mais uma vez minhas pegadas nos passos errantes de Fernando Pessoa. Desassogegada, saio de casa para ler em cada esquina páginas da aventura que tracei para mim. Viver poeticamente cada instante, imprimir um selo de alegria num mundo repleto de incerteza. Nestas ruas carregadas de história e tradição, sou plural, como o mestre português.

                     João do Rio disse muito bem que as ruas teem alma. A cada dia, espero presentear os leitores com a beleza de uma rua desta encantadora cidade portuguesa.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Food for thought VII: O instante, de Jorge Luis Borges



                                   " Onde as eras, o sonho derradeiro
                                     De espadas com que os tártaros sonharam
                                     Onde as fortes paredes que arrombaram,
                                     E a Árvore de Adão e o outro Madeiro?
                                     O presente está só. Só a memória
                                     Erige o tempo. Sucessão e engano
                                     São a rotina do relógio. O ano
                                     Menos vão não é do que a vã história
                                     (...)
                                     O hoje fugaz é tênue e é eterno
                                     (...)".


                  Borges tem razão. Este é o tempo da arte. O agora é o instante que temos para fazer-nos valer como autênticas obras artísticas.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Wilde por ele mesmo II

   

  "O artista tudo pode exprimir. Pensamento e linguagem são para o artista instrumento de uma arte." (prefácio de O retrato de Dorian Gray).

  "O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão são unicamente simples condições acidentais do pensamento. A imaginação pode ultrapassá-las(...)." (De Profundis).

ainda Guardador de existências


                               Tal qual mergulhador délio,
                      O novato
                      Projetando-se,
                      adentra um mundo sem sair de si.
                      Em movimento espiral se move
                      Narrativas ornamentadas surgem no papel
                      Histórias são recriadas indefinidamente

                      Lembra-se de Sherazade

                      O sulco da letra exige a conformidade do corpo.
                      O chão falseia.
                      O novato sente-se invadido pelo simulacro
                      Capturado por certo segredo flutuante
                      O canto das sereias que agora ouve
                      Leva-o para longe.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O silêncio que grita

                           
                 O silêncio celebrado no filme O artista, de Michel Hazanavicius, reaqueceu a lembrança de um livro adóravel de Alberto Manguel - Uma história da leitura . Aí, destaco uma frase citada do teólogo Isidoro de Sevilha na metade do século VII: "as letras teem o poder de nos transmitir silenciosamente os ditos daqueles que estão ausentes.". A leitura silenciosa de um texto evoca memórias imaginárias - trazemos à mente o olhar, os gestos, o tom de voz das personagens. Hazanavicius fez o mesmo no filme. A película emociona porque podemos acrescentar às expressões de George Valentim nossas palavras, nossos textos. O silêncio grita em nós.

um pouco de Wilde por ele mesmo

 
  "Se alguém diz a verdade, pode ficar certo de que  mais cedo ou  mais tarde, será descoberto.".

   (em Frases e filosofias para uso dos jovens).



   "Toda arte é, ate certo ponto, uma espécie de jogo, uma tentativa para realizar  sua própria personalidade de acordo com um plano imaginário, fora do alcance e dos acidentes entravantes e dos limites da vida real.".

 (em O retrato de Mr. W.H. )

domingo, 15 de julho de 2012

Encontros imaginários I: Heathcliff e eu

                             Sentada num café parisiense, circulando pelas ruas do centro do Rio de Janeiro ou ainda num pub londrino, imagino-me na comapnhia de um dos mais extraordinários personagens a quem tive a dádiva de ser apresentada. Heathcliff,anti-herói de O morro dos ventos uivantes, é sombrio, vingativo e romântico. A testa franzida, os olhos de profunda escuridão, a altivez de um cavalheiro,o tom de voz de uma rispidez dissimulada.
                                "Ouvi certa vez Cathy dizendo a Nelly: "Eu sou Heathcliff". ". Ousei interrompê-lo: "Mas, você não ouviu esta parte da conversa. Lembro-me bem. Cathy abria o coração para Nelly após a proposta de casamento recebida de Linton. Ela dizia que aceitaria o pedido, já que a união com alguém como Heathcliff seria rejeitada. Perdoe-me relembrá-lo de algo tão doloroso. Você ouviu somente até aqui e saiu atordoado e furioso. Ela, no entanto,completaria dizendo ser o amor que tinha tão grande que ela se confundia com você. Mesclando-se a você, ela se via completa. Você não escutou esta parte e a trama se desenrolou a partir daí com um elaborado plano de vingança.". "Tem razão, cara amiga. Após as repetidas leituras deste texto - sei ser um de seus favoritos - ouvi no sussurro de seu pensamento a verdade do coração de Cathy. Tive que tecer a teia como antes,mas agora sou outro.". Aqueles olhos negros me fitaram com brandura. "A realidade e a ficção podem se encontrar no fértil campo do pensamento imaginativo. Lá,na sua mente de leitora,eu também sou o que quero ser.".

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Food for thought VI: J.D. Salinger

                                    Pensava  comigo hoje como um autor ( ou mesmo alguns autores) pode marcar nossa vida. Um instante de leitura, uma página,um parágrafo, uma frase e logo o seu mundo é irremediavelmente modificado.
                                     Foi assim com O apanhador no campo de centeio. Texto fluido, linguagem  coloquial e um personagem jovem para quem a existência é descortinada no ritmo das páginas. O impacto deste Salinger sobre mim na primeira vez que o li foi incrível. Relendo a mesma historia alguns anos mais tarde,não revivi aquela emoção. O campo de centeio já era outro e eu também. Como apanhador, não pude repetir o mergulho nas águas frescas de antes. Agora, porém, tenho uma frase a mais na minha existência e agradeço a ele por isso.

A força do ponto

                                      Alberto Manguel em À mesa com o chapeleiro maluco diz:"diminuto como uma  partícula de pó, essa bicada mínima a pena, essa migalha no teclado - o ponto - é subestimado legislador de nossos sistemas de escrita. Sem ele,os sofrimentos do jovem Werther não terminariam  e as viagens de Hobbit jamais teriam fim. Sua ausência permitiu que James Joyce tecesse Finnegan's Wake num círculo perfeito(...)O ponto coroa a realização do pensamento, dá a ilusão de um término(...)Sempre ansiosos por começar, não pedimos nada para indicar nossos inícios,mas precisamos saber quando parar(...)".

                                     Atrevo-me, assim, a indagar sobre o que virá após o ponto e estremeço. Um tudo ou um nada. Para os amantes da letra, um tudo sem barreiras, fronteiras, o início do questionamento crítico, o fim do freio à imaginação. O ponto inicial.

domingo, 8 de julho de 2012

Wilde e seu único romance


                                                   O RETRATO DE DORIAN GRAY

(capítulo adaptado da tese)   

Sinal de um final de século estertorante, o romance se enuncia como resposta à    conceituação de belo que inibia a criação artística, limitando-a a um modelo de papel estético que priorizava coisas em detrimento de outras. O ponto focado pelo olhar realista desconsiderara as zonas de repouso, todo o em redor. Wilde, num trabalho arqueológico, pinça o esquecido, o posto de lado e elabora uma obra única, multi-dimensional. Após Dorian Gray, Wilde se tornaria sinônimo de tudo o que fosse doentio. O autor se percebe ainda mais provocativo e perigoso aos olhos da opinião pública.

O prisma desta escrita definitiva foi, portanto, contra a anestesia, o tédio; ocupação do anônimo. Do Des Esseintes de Huysmans , que encapsulado na biblioteca desenvolve ritos de colecionador, há uma gradação até Wilde, encapsulado no espaço físico de um livro, fazendo lenda nele e com ele a partir de uma mente aglutinável à outras para um mesmo ideal de beleza. À Rebours , com seus caprichos estéticos, o desprezo pelas convenções, o furor das experiências extravagantes seduziu  sobremaneira. O desabrochamento das qualidades literárias de Wilde faz Dorian ascender. Afastando-se da crença do pensamento bom (bom senso), do pensamento que é um (senso comum), que dissipa o erro reunindo proposições verdadeiras, ei-lo ‘libertado’ para parecer o que é: mau, paradoxal. A carta que Mallarmé envia a Wilde após a leitura do livro exprime o encantamento das mentes-pares:



                  “I  have  finished  the book, one  of the  few  which can  move  one.

                     Its  deep  fantasy  and  very strange atmosphere  took  me  by storm.

                        To make it so poignant and human with  such  astonishing  intellectual

                      refinement, and  at  the same  time to  keep  the  perverse  beauty is  a

                       miracle  that  you  have  worked  through  all  the arts of the writer(...)

                      This  disturbing ,  full-length  portrait of  a  Dorian   Gray  will  haunt

                                                 me as writing, having become the book itself.” .



            O texto é, assim, assustador porque impregnado de corpo; roteiro enigmático de uma fantasia que comportava uma parte definida deste corpo, com cores, luz e sons próprios – o rosto; quadro vivo suspenso numa imagem; harmonia do todo. Diz Philippe Julian em Oscar Wilde:



“(...)It seems as if Oscar had had a premonition of his own

ruin, inevitable although delayed by success, in the way

 he shows Dorian’s beauty suddenly crumbling into decay.

                                                  the clash between the  life he  led, his  material  pleasures,

 and the life dreamed of, could only lead to catastrophe.”.



Comentando sobre  O nascimento da tragédia, seu livro ‘problemático’, Nietzsche diz:

“edificado a partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte(...)um livro talvez(...)cheio de inovações psicológicas e de segredos dos artistas(...) uma obra das primícias, inclusive do mau sentido da palavra,  não obstante  o seu  problema senil, acometida de  todos  os  defeitos  da mocidade  (...)  que  retorna  múltiplas  vezes à sugestiva proposição  de  que a  existência  do  mundo  só se justifica como fenômeno estético.”;



e parecemos estar diante em O retrato de Dorian Gray de proposta semelhante por parte de Wilde: uma obra definitiva para uma grande vida que não temeu o fim.
                                          



 No capítulo III, conversam o Sr. Erskine e Lorde Henry (WILDE, 2003,p. 87):

“ – O senhor fala como um livro – disse -. Por que não escreve algum?

   - Gosto por demais de ler os dos outros para cuidar de escrever um, Sr. Erskine. Gostaria realmente de escrever um romance que fosse tão adorável e tão irreal como um tapete persa.”

Borges em Magias parciais do Quixote comenta a leitura sobreposta na obra de Cervantes, assim como a peça teatral encomendada pelo protagonista em Hamlet e o fantástico Livro das Mil e Uma noites - sobre este último diz:   


“Essa compilação de histórias fantásticas duplica e reduplica

até a vertigem a ramificação de um conto central em contos adventícios, mas não procura graduar suas realidades, e o efeito  (que devia ser profundo) é superficial, como um tapete persa(...)”.

  

Ousaríamos identificar uma alusão a sentença de Lorde Henry ( de que só admitiria escrever um romance irreal como um tapete persa). Talvez. Quanto a Wilde, pode-se dizer que sua erudição, que acalentava o pensamento de que a vida, como um livro, é formada por histórias sobrepostas, o fragmento é intencionalmente sagaz. O esteta permitiu-se a construção de um romance circular, que conteria nenhuma e, por isso, todas as histórias. A juventude de Dorian engloba o tapete persa das fábulas de Sahrazad, que funde tempos distantes, passando por Homero e a tapeçaria de Penélope( feita de dia e desfeita à noite) a espera de seu Ulisses -, abraçando a marcante presença das heroínas shakesperianas (representadas pela atriz Sybil Vane), mergulhando nos círculos dantescos em busca desenfreada pelo prazer a partir do livro amarelo  recebido de Lorde Henry.  Um tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica. No Oriente, lembra Michel Foucault, para os persas, os tapetes eram, no início, reproduções de jardim. Este, considerado espantosa criação atualmente milenar com significação profunda.O tapete, assim, é uma espécie de jardim; jardim claro, de flores delicadas e soturno, de perfumes embriagadores. Retrato-metáfora do escritor que deve dar lugar ao texto.

O romance se inicia plenamente apolíneo – equilíbrio perfeito de cores com uma leve predominância da cor síntese: o branco, fixando uma cena de despertar e afirmação da juventude, perfeita para o protagonista, que : “(...)encarnava a graça e a  branca pureza da adolescência e a beleza tal como no-la conservaram os antigos mármores gregos(...)” (WILDE, 2003,p. 82).  O ‘tempo’ se desloca como a areia do deserto ao vento e à medida que os fios da teia se combinam para o enlace final, a atmosfera muda de cor. A luminosidade dá lugar às saturnais do espírito e fortes pinceladas são adicionadas emoldurando o clima de mistério, quando ‘escuta’ pela primeira vez palavras acerca de sua incomparável beleza, antes mesmo de ver o retrato pronto: “as poucas palavras que o amigo de Basílio lhe havia dito – pronunciadas indubitavelmente a esmo e repletas de paradoxos – haviam ferido alguma corda secreta, antes nunca vibrada, mas agora vibrante e palpitante de estranhas emoções...As palavras! As simples palavras(...)Não se podia fugir delas...Pareciam comunicar uma forma plástica às coisas informes(...)” (WILDE, 2003,p.71). Para que o inconsciente de Dorian se manifestasse, foi-lhe preciso ‘abrir os ouvidos’ a Lorde Henry, então pôde produzir seus efeitos. Diz J.-D. Nasio em Cinco lições sobre a Teoria de Jacques Lacan:

“Imaginem que o real não é um planeta deserto, mas, ao    contrário, cheio demais, infinitamente cheio, tão cheio de coisas e seres que é homogêneo a um vazio. O real não é o vazio no sentido do abismo oco, mas no sentido do infinitamente cheio, do lugar onde Tudo é possível. Quando, nesse lugar onde tudo é possível, revela-se uma –e uma única – impossibilidade, um único obstáculo, um único menos, então existe aí o nascimento de um ser positivo.O ser positivo, isto é, nosso sujeito do inconsciente, surge apenas como o correlato de um furo cavado no infinitamente cheio(...)” .



A ‘realidade’ de Dorian é afetada por uma falta; ergue-se a sua frente um obstáculo que se mostrava impossível de ser ultrapassado.

          No cap. II,  vê o retrato que Basílio terminara: “(...)Ao vê-lo, recuou e, por um momento, as suas faces se enrubesceram de prazer. Uma centelha de alegria brilhou nos seus olhos, como se se tivesse reconhecido pela primeira vez. Permaneceu imóvel por algum tempo, maravilhado, percebendo confusamente que Hallward lhe falava, mas sem, compreender o significado das suas palavras. A sensação da sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma revelação(...)” (WILDE, 2003,p. 74). “(...)Dorian Gray não se movia. Procurava reunir os fios escarlates de sua vida e tecer com eles um roteiro(...)” (WILDE, 2003,p. 127). Aqui, e não no capítulo  final, Dorian morre. Essa ‘morte’ para o mundo ‘real’, em Dorian, é ressurreição para uma diferença que tornaria o vazio do lado noturno, lugar de permanência; vida definida com a morte. Se a consciência de que “a vida que devia formar a sua alma, deformar-lhe-ia o corpo’ e “tornar-se-ia horrível, disforme e grotesco” (WILDE, 2003,p.74), cabia fazer agora do murmúrio da inconsciência movimento a ser explorado, a partir do sinistro pacto. Aos que acenaram para o caráter sombrio do tema, diz Wilde em  seu engenhoso prefácio, “o artista jamais é mórbido” (WILDE, 2003,p.55). Para ele,  chamar um artista de mórbido porque trata da morbidade como tema principal é tão ‘estúpido’ quanto chamar Shakespeare de louco porque escreveu o Rei Lear. A morte e a vulgaridade só são dois fatos que se pode explicar, completa. Assim, a frenética descida deixa o rastro de um colorido embaçado, turvo pela entrega às paixões, enquanto o rosto do protagonista permanece guardado de qualquer efeito. O retrato – espelho – revela a imagem interna, o aspecto oculto da realidade. O centauro wildiano experimenta a vontade de escuridão.

Conta Alberto Manguel no Dicionário de lugares imaginários que no país do Espelho de Lewis Carroll (in Through the looking-glass, 1871), o desperdício desnecessário do movimento no espaço e da passagem do tempo fora abolido. Ora, para Dorian o tempo pessoal havia parado ali sem que as outras pessoas fossem por isso afetadas. O romance, então, que se pretendia narrativa ordenada, na verdade, é pura decomposição. O retrato composto por Basílio e apresentado a Dorian passa a ser por este decomposto. O que estaria ‘congelado’ na história (a pintura) à medida que seu modelo envelhecesse, tem a constituição revertida a partir do desejo de imortalidade verbalizado pelo jovem. O que é texto preso na moldura da página se liberta para a indeterminação de um mito que penetra na mente dos leitores e faz de O retrato de Dorian Gray relato de um longo suicídio e romance sempre presente.

Ao entregar-se ao pacto, adentra o mundo do retrato; mundo similar ao de Carroll – circular - , onde só se poderia subir “após evitar cautelosamente os vasos de flores secas, protegidos por redomas vitorianas.” (WILDE, 2003,p.149). O anseio de Dorian passa a ser o de escapar às correias de regras e normas que davam às palavras e, conseqüentemente, às coisas, o sentido que ordenassem; “seu lugar é esse intransponível vazio – espaço flutuante, ausência de solo, ‘mar incrédulo’ – onde, entre o ser oculto e a aparência desarmada, a morte surge, mas onde, aliás, dizer tem o poder maravilhoso de dar a ver.” (FOUCAULT, 2006,p. 11). A questão é seria Dorian ou o retrato a imagem refletida?

         O texto wildiano busca conformar e confrontar forma e informe; é diário do que passou e do que se passa, projetando as expectativas de jogos com a máscara. Com Dorian Gray, Wilde foi “(...)do brilho do diamante ao seu núcleo carbônico...” (FOUCAULT, 2006, p. 190). Dessa arqueologia, revelou em seu protagonista o inverso visível da morte. A partir desse momento, tempo e espaço são deslocados; a linearidade é suspensa e a linguagem ultrapassa as bordas da página.

Diz Bakhtin em Estética da criação verbal:



“ um elemento espacial e sumamente importante na visão plástico-  pictural do homem é o vivenciamento das fronteiras externas que o abarcam...o outro é todo dado no mundo exterior a mim como elemento deste, inteiramente limitado e termos espaciais(...)   abranjo-o por inteiro com o olhar e posso abarcá-lo todo com o tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça sobre o fundo do      mundo exterior, e todas as linhas do seu corpo que o limitam  no mundo(...)”.



Assim, só pelo outro do retrato, Dorian experimenta a finitude humana. Os contornos definidos da pintura, desconcertantes, definiriam ou concluiriam o jovem  para si mesmo. Os anos e as luxúrias passariam sobre seu corpo tal como um sopro, sem deixar traços. Estas linhas fronteiriças para a pintura são inadequadas para Dorian. Esta forte certeza viria a destruir toda a capacidade de persuasão que a realidade do retrato poderia trazer. Por este outro, Dorian vivenciou a beleza do corpo humano, mas também, a degenerescência a que se destinava. E é com o retrato, seu reverso, que faz o pacto. Simula um jogo  como se fosse outro e não com  ele mesmo. Instiga-o a manifestar-se ao deixar o pensamento livre das fronteiras da ‘vida consciente’. Ele é, ao mesmo tempo, Dorian e o anjo decaído do Fausto. 

Com linguagem sempre em excesso e em falta, Wilde constrói para Dorian um espaço vizinho da morte; faixa tênue afastando-o do precipício. Encarnando todos os desejos realizados – e realizáveis -, o jovem regride ao infinito, torna-se capaz de fundir elementos aparentemente inconciliáveis do comportamento.

O Dorian retratado se aproxima do jovem pelo olhar e, ao mesmo tempo, o mantém longe e o separa dele. As diferenças se misturam. O retrato se oferece dividido, espaço que avança para que o jovem possa recuar, nervura do que não ‘existe’ tal como é. O jovem, então, experimenta a realidade vivida do avesso. As radiações de caráter variado fazem do imaginário, vida real; acomoda-se ao efêmero. Aventura-se no invisível, rechaçando o físico, o limitado. Essa suspensão temporal torna possível a aparição e existência de coisas fora da condição natural, como em sonhos crepusculares – afinal, a vida quer ilusão, ela vive de ilusão . Wilde faz Dorian habitar o extraordinário; atinge uma co-presença entre sentido e não senso. O esteta faz seu personagem ‘esquecer’ a fadiga do movimento linear, eliminando a memória. Retirado esse componente essencialmente humano, os modos de comportamento se tornam eclipsados. Dorian sai de si para conhecer-se. As recordações são ‘sopradas’ para o retrato. A estrada para a completa realização envolveria uma rejeição a padrões de idade e liberdade para todos os credos e sistemas. Há a patologia de uma nova idéia.  A vida seria produto de uma simulação e sua beleza não estaria ‘ameaçada’ pela moral: “de acordo com os psicólogos, há momentos em que o desejo do pecado, ou do que os homens chamam de pecado, domina de tal modo a nossa natureza, que cada fibra do corpo e cada célula do cérebro parecem movidos por impulsos terríveis. Em tal momento, os homens e as mulheres perdem sua liberdade e seu arbítrio. Dirigem-se como autômatos para seu fatal objetivo. O direito de escolher lhes é recusado e sua consciência está morta(...)” (WILDE, 2003,p. 198). Este corpo apaixonado deixa-se invadir. Ao escrever O retrato, Wilde abraça elementos do aterrorizante Melmoth, the Wanderer, do tio distante, guardando, no entanto, um quê de originalidade. Diz John Sloan em Oscar Wilde- authors in context:



  “(...)Maturin’s tale(...)begins with the young student Melmoth’s discovery in an unused room of a portrait of an evil Melmoth ancestor. Like Wilde’s Dorian, the figure in the painting has made a bargain with the devil whereby he can live without showing signs of ageing. In a melancholy ending, Melmoth returns to his native Ireland to die after more than a century of restless wanderings,having failed to find a kindred soul to share his fate(...)” .



Wilde adota o nome Melmoth ao sair da prisão, sabendo que viveria exilado – nunca voltaria à Irlanda ou à Inglaterra novamente. Com isso traça, juntamente com seu personagem, uma viagem para a imortalidade, “mais penosa e mais contrariada do que qualquer outra(...)e, no entanto(...)pode estar seguro de nela alcançar o seu próprio fim – porque só ele sabe permanecer nas asas abertas de todas as épocas(...)” (NIETZSCHE,2002, p.53).

 Sobre a história, apesar da aparente similaridade – a imediata interpretação é a de um pacto com o mal -, Wilde foi um tanto além: seu protagonista faz um pacto com ele mesmo para libertar seus desejos inconscientes. Não há como em Melmoth ou mesmo como no Fausto a menção de um acordo com a personificação do Mal. Tudo em torno de Dorian é de um silêncio enervante.  Há um suposto mediador, Lorde Henry, que passamos a considerar a seguir.

 A aclamada influência que Lorde Henry diz ter sobre Dorian – interpretação consentida por muitos críticos do texto, também -: “Havia algo de terrivelmente sedutor na ação daquela influência. Nenhuma outra atividade podia comparar-se a ela...transportar para outro o seu temperamento como um fluido sutil ou um estranho perfume(...)(WILDE, 2003,p.82)(...)Tentaria dominá-lo – na realidade, já o havia quase conseguido  - , tornaria seu aquele espírito maravilhoso. Havia algo de fascinante naquele filho do Amor e da Morte(...)” (WILDE, 2003,p.83), aproxima-se muito da de Mefistófeles em relação a Fausto. As palavras venenosas, pronunciadas sob um tom de oráculo, parecem insinuar para a ação quando, na verdade, apenas traduzem o que já se passava no coração. Lorde Henry, cético amável, refinado e corrompido deu a conhecer a Dorian  uma chama adormecida que ansiava por ser acesa: “(...)Aconteceram-lhe na infância coisas que não havia compreendido. Agora as compreendia. A vida pareceu-lhe, de repente, violentamente colorida. Pensou que até então andara entre o fogo. Por que não o soube nunca?” (WILDE, 2003,p.70).  O próprio Dorian conclui: “Seria realmente verdade que uma pessoa nunca pode mudar? Sentiu dentro de si um anelo ardente pela pureza imaculada da inocência(...)Tinha consciência de que ele mesmo a havia maculado e de que tinha também corrompido totalmente seu espírito(...)” (WILDE, 2003,p.221). Percebemos em Wotton, a voz do inconsciente na boca de um ‘anjo mau’ garantindo a opção já feita, por livre vontade, pelo protagonista. A ‘indução’ é, então, relativa. Como diz Nietzsche no aforismo 19 de A gaia ciência, “lançou uma frase no ar ao acaso, para se divertir, essa frase, apesar de tudo, fez cair uma mulher”(p.24). Esta ‘mulher’ que poderíamos interpretar no contexto de O retrato é a arte aliciando a vida, impulsionando-a a mudanças, faz com que o ‘papel’ de Lorde Henry seja apenas o de evitar que Dorian sucumba ao ‘enquadramento consciente’: “Atualmente você é o tipo perfeito. Não vá quebrar essa perfeição. No momento você é irrepreensível. Não, não negue(...)O mundo sempre nos censurou, mas a você sempre adorou. E sempre o adorará. Você é o tipo que nossa época procurava e que, todavia, receia ter encontrado. Alegro-me de que você nunca tenha feito nada: nem uma estátua, nem um quadro, enfim que não tenha produzido coisa alguma à exceção de você mesmo.” (WILDE, 2003,p.219). Lorde Henry dá a provar a alegria do poder; a volúpia da dominação que torna o indivíduo indiferente às conseqüências de seus atos. Dorian tornara-se o que era18 : para sempre ‘identificado’ por fora e eternamente estrangeiro, encoberto, declínio e ascensão, por dentro. Esta aparente decadência é poderoso estimulante em sua vida.  

Deliciando Wotton - que  observa o desenrolar da trama – recebe dele em dado momento,  um livro mais tarde identificado pelos críticos como sendo À Rebours de Huysmans: “seus olhos caíram sobre o livro amarelo(...)Que seria?(...)era o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os pecados do mundo, vestidos de maneira singular, desfilavam diante em mudo cortejo, ao som delicado de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado confusamente se tornavam repentinamente reais para ele(...).era uma novela sem enredo, com um só personagem, na realidade, um simples estudo psicológico de um jovem parisiense, que passava a vida tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e maneiras de pensar de todos os outros séculos(...)amando, pela própria irrealidade, aquelas renúncias que os homens chamam tolamente de virtude, bem como aquelas rebeliões naturais que os homens ainda chamam de pecado(...)era um livro cheio de veneno.” (WILDE,2003,p.149). Stephen Calloway, em seu Wilde and the dandysm of the senses comenta ter sido a primeira edição de Studies in the History of the Renaissance, de Walter Pater (especialmente a conclusão), o livro amarelo de Wilde.

(Atentamos aqui para um interessante detalhe – não comentado no texto: Dorian parece nunca dormir. O que nos faz crer que neste mundo de sonho em que se encaixou, não havia lugar para repouso, apenas para vivência de ardentes emoções. Vivência esta que não o caracterizava pela agitação da vida moderna. O intenso movimento interior somado ao ócio fazia-o ir a procura de prazeres).

A partir daí, a unidade da história cede lugar à independência de algumas páginas que, como caixas chinesas, umas dentro das outras, dão a noção de que a história contém e está contida em várias outras. Wilde desfila um catálogo de formas de elegância e perversidade, revelando-se um autêntico conhecedor de flores e jóias. Uma longa descrição que tem início no cap. XI, p. 155: “começou a estudar os perfumes e os segredos de sua fabricação(...)compreendeu que não havia nenhum estado de espírito que não tivesse correspondente na vida sensorial(...)” confirma a fascinação de Dorian pelo livro. A narrativa dentro da narrativa acentua o crescente apuro e sofisticação dos gostos do jovem, insinuando a passagem do tempo. Torna-se um colecionador cujo refinamento é medido pela raridade dos objetos que possui e pelos sentimentos artísticos que produzem.: “todas aquelas preciosidades que colecionava em sua bela habitação tão cheia de atrativos nada mais eram que recursos de que lançava mão para esquecer, para fugir(...)” (WILDE,2003,p.160). A casa passa a ser como uma espécie de cápsula. E cada objeto cuidadosamente guardado  é lembrança revivida, garantia do eterno retorno de todas as coisas.Seus gostos visam à sensação pura: ele ama o odor das flores, os objetos que pode apalpar – marfim, bronze, pedras preciosas, bordados, tapeçarias, sedas, veludos -, o que lhe dá a ilusão de conhecimento.  Lembramos aqui as palavras de Walter Benjamin em Charles Baudelaire- um lírico no auge do capitalismo:



“(...)concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando,assim, os seus vestígios,como a natureza preserva no granito uma fauna extinta(...)”.



A alma do jovem encena uma maneira de funcionar por si mesma, permitindo-se faculdades criadoras, matizes desconcertantes, já que a Dorian só restou o ‘esquecimento’ de todo e qualquer ato. Ele se distancia das próprias atrocidades como se fosse mero espectador. Seu mundo é ardente, feito de violência e fragilidade, ao mesmo tempo: “Poucos são aqueles dentre nós que muitas vezes não acordaram antes da aurora(...) dessas noites de horror ou de alegria monstruosa, quando, através dos escaninhos de nossa mente, deslizam fantasmas mais terríveis que a própria realidade, impulsionados por essa vida intensa que se esconde em tudo que é grotesco e que confere à arte gótica sua vitalidade profunda, uma vez que esta é, como se pode perceber, uma arte de indivíduos cuja mente foi perturbada pela enfermidade da  rêverie(...) A criação desses mundos é que parecia a Dorian Gray o verdadeiro, o único objetivo da vida(...)” (WILDE,2003,ps. 153/154) e oprimia-o a instância da realização.

Assim, a cada nova interpretação, uma de suas máscaras cai, mas surpreendentemente outras a substituem. Quanto mais o jovem parece se mostrar de si mesmo, mais ele se torna um eficiente enigma que, paradoxalmente ansiava por ser decifrado e deleitava-se com a impossibilidade de sê-lo. O elo com o retrato que possibilitara tudo isso, por vezes, parecia incomodá-lo: “Por um momento, pensou em rezar para que desaparecesse a terrível afinidade que existia entre ele e o retrato. Um pedido a produziu; quem sabe se novo pedido não a tornaria imutável(...)dependeria aquilo de sua vontade? Teria sido, realmente, o seu pedido que provocara aquela situação? Não haveria algum curioso processo científico que explicasse tudo aquilo? Se o pensamento podia exercer sua influência sobre um organismo vivo, não poderia exercê-la sobre as coisas mortas ou inorgânicas? Por sua vez, não poderiam as coisas exteriores a nós, destituídas de pensamento ou desejo consciente, vibrar em uníssono com nossos humores e paixões, já que o átomo atrai o átomo por um amor misterioso de estranha afinidade?” (WILDE, 2003,ps. 135/136). A ‘preocupação’, no entanto, não durava tanto.   



         Wilde não deixa claro qual ou quais seriam os ‘pecados’ de Dorian Gray.                            

            (Atrevemo-nos a considerar se Wilde saberia os pecados de Dorian Gray).

É-nos apresentado apenas o estado de amargura em que ficam todos os que dele se aproximavam ou que com ele conviveram. Diz o esteta que “cada qual vê seu próprio pecado em Dorian Gray. Ninguém sabe quais são  os pecados de Dorian Gray, Se alguém os descobrir, é que os trazia em si mesmo.” (WILDE, 2003, p. 1327).O vago e o indeterminado intensificam a incômoda atmosfera de curiosidade e aversão provocada no leitor. As suposições são feitas a partir de evidências ambíguas que provocam o leitor, mesmo que a ousadia da nomeação ou definição do ‘pecado’ não venha à mente. As possibilidades são diversas e isto pode ser sedutor e inevitavelmente assustador.

        

         Diz Borges em Os espelhos velados:



“(...)seu infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos, sua pantomima cósmica eram tão sobrenaturais desde que anoitecia...algumas vezes temi que começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo(...)” .





         Fazendo Dorian debruçar-se sobre seu outro, Wilde antecipa, não só as linhas que viriam para ele, como para todos os que se dispusessem – ou se abrissem – a uma reflexão sobre seu papel. A capacidade de comunicação proporcionada pela obra se acentua nas críticas negativas assim como nos elogios mais fervorosos.


O retrato de Dorian Gray, lido por nós em diferentes momentos da vida, guardará assustadoramente nossas marcas de expressão de alegria, ira, medo, morte e vida. Cada frase pode surpreender com a revelação de um segredo que quiséramos escondido ou alegremente desvendado. O romance é único porque é presente para cada leitor. Oferta para um tempo presente.

Belamente concebido, já que primeira manifestação de Wilde em condensar um estilo de vida que primasse pela aceitação do tudo em cada um, O retrato foi resumo do mundo. Do mundo novo que se insinuava em finais de século. Seu lado sombrio estava impregnado de luz. O retrato do fenômeno estético estava desenhado. Entretanto, só os eleitos poderiam percebê-lo e sentir o calor das páginas nutriria os corações preparados para a mudança. Dorian esboça um conflito, mas não põe termo à guerra. A idéia é terrível, doce e amarga. A grande virada estaria por vir, dependendo da reação dos leitores. Ontem. E ainda hoje, desestabiliza e convida o pensamento ‘consciente’ ao mesmo mergulho. O que move o protagonista e Wilde esperava que movesse os que leriam seu romance não é a perversidade – apesar dela estar necessariamente presente. O impulso é o do jogo que desperta. Aquele que aceita, afoga-se irremediavelmente na luz de uma alegria que faz descansar o corpo fatigado da luta contra si. O convite foi e continua sendo o deixar-se levar pela força e alegria inebriantes da vida. 
                     

O sussurro aos ouvidos ainda incomoda e instiga á ação. O vigor do texto se insinua na pele do leitor, embriagando uma vez mais os sentidos. Dorian Gray é mais do que atual: é real.




sexta-feira, 6 de julho de 2012

Chá literário III : Jorge Luis Borges, Oscar Wilde e eu


                                          No Aleph com Borges                                                   

(capítulo adaptado de minha tese) 


As vozes mutantes  de Borges e Wilde  propõem um jogo de luz com os temas do sonho – da imaginação -, da aparência – do duplo -, da biblioteca -, do jardim.

Como o irlandês, Borges fez do compromisso imaginativo, estratégia de percepção do mundo – o que deixa marcada a silhueta do pensador alemão - , palavras que devem ser ouvidas e não apenas lidas; seu silêncio estético grita na escrita.

Tendo nascido em 1899, apagar do século dezenove, o escritor argentino, tradutor do conto wildiano O Príncipe Feliz  aos nove anos de idade, configura no texto um mundo onde celebração, realidade, imaginário, tempo e espaço se confundem, ativando um dispositivo de espelhos conjugados em  .

Sobre este inventor de labirintos verbais, diz Ricardo Piglia em A arte de narrar:



Os contos de Borges têm a estrutura de um oráculo: há alguém que está ali para receber um relato, mas até o final não compreende que essa história é a sua(...)” .



Wilde conta narrando, Borges narra contando. Diria Nietzsche  acerca do encanto da imperfeição em A gaia ciência:



“Vejo aqui um escritor que, como tantas pessoas, seduz mais pelas suas imperfeições do que por tudo que sai elaborado e perfeito de suas mãos; pode mesmo dizer-se que a sua glória e a sua superioridade derivam da sua impotência em finalizar, mais do que do seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime a fundo aquilo que gostaria de dizer exatamente, aquilo que desejaria ter visto perfeitamente: parece ter havido nele um antegostode uma visão e nunca essa própria visão(...) mas dela lhe ficou, no fundo da alma, prodigioso desejo, e é nela que vai mergulhar a sua prodigiosa eloqüência: do desejo e da fome. É graças a ela que eleva aqueles que o ouvem acima da sua obra e de todas as ‘obras’, e lhes dá asas para subir mais alto do que normalmente os ouvidos alcançariam(...)”.



Nietzsche fala de si e sonha Borges que fala de Wilde.(...)” . O exercício de linguagem aproxima os três. O paradoxo como brinquedo de palavras – inegável herança wildiana – cria um segundo mundo que nomeia, sonha e olha o leitor, convidando-o a uma dança com uma nova e revolucionária ordem
         Borges, cego “acordou, olhou (já sem assombro) para as coisas indistintas que o cercavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe acontecera e que ele o enfrentara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Wilde, oitenta e poucos anos antes, cego para uma realidade que restringia, descendeu ao mundo hieroglífico – o livro – para desenhar no tempo – ou no não-tempo – sua figura: inconcebível, improvável; figura que formula incansavelmente perguntas cujas respostas vemos ou ouvimos em enigmas por entre espelhos. Wilde ‘lembra-se’ do fazedor de Borges. O argentino não precisa citar explicitamente o irlandês e, por isso, o convite é ao garimpo de nuances que o incansável escrutínio pelos livros do pai fez do jovem Jorge um herdeiro da memória que prova e aprova existências. Os livros agrupados emitem relações eternas com o belo neste refúgio. Borges tem a máscara de leitor que passou a prescindir do livro em si.

 A referência à cegueira de Homero, citada em O crítico como artista de Wilde poderia ser aplicada a este poeta:



“Tenho pensado por vezes que a história da cegueira de Homero tenha podido muito bem ser na realidade um mito artístico, criado em tempos de crítica, para recordar-nos, não só que um grande poeta é sempre um vidente, cujos olhos corporais vêem menos que

os da alma, mas que também é um cantor autêntico, construindo seu poema com música, repetindo para si indefinidamente cada verso até ter captado o segredo de sua nelodia, proferindo na escuridão palavras aladas de luz.”                           



Cada passo deste artista parece ser queda numa noite permanente. Na dualidade múltiplo x fragmentado e pluralidade x anulação, o leitor é levado a considerar o que poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que é apresentado estão cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação, desvios, enfim, tudo o que pode ‘facilitar’ outras opções de percepção.

         Assim é com o primeiro conto: BORGES E EU, contido em O Fazedor, de 1960. O autor se duplica num pacto silencioso de movimento circular que entendemos incorporar Dorian Gray. Tal mistura de sensações faz o autor questionar-se sobre quem seria : “não sei qual dos dois escreve esta página.”7 . O mergulho foi no Aleph, no depositário de todas as existências – as ‘reais’ e as ‘imaginárias’ , juntamente com a multiplicidade que cada uma engendra.



5.1.1.1. A literatura sobre a literatura: BORGES E EU



         Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas essas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.

         Não sei qual dos dois escreve esta página.



Borges tece sua narrativa porque o outro assim o permite. Esse retrato tem vida própria: caminha por Buenos Aires – a Londres latina -, gosta de relógios de areia – com o tempo infinitamente re-contado -, de mapas – território contido, compacto que abarca um todo -, da prosa do criador de O médico e o Monstro, das etimologias – de como a origem de uma palavra pode se perder ou levar alguém a perder-se -, do gosto do café – que remete ao prazer de uma conversa de amigo. Borges desempenha as preferências, faz delas características que o distinguem, enquanto que o outro se deixa levar por elas e, por isso, está destinado à perdição. Borges é o ator da vida do outro. As ações desempenhadas por vezes são as mesmas, o enredo, o mesmo, mas porque Borges é vaidoso, prima pela aparência e, por isso, encanta,existência. Borges queria sorver a vida a largos goles, entregava-se ao prazer . O outro, seguia, de longe, talvez invejoso, talvez admirador; haveria a mesma alegria em sua existência? Existiria ele, afinal? Percorreria ele a mesma trilha de Borges com o mesmo gozo? Exalaria a mesma tranquilidade?

Até aqui, até esta constatação, os dois parecem dois. “Eu permanecerei em Borges, não em mim...mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros.” . Entretanto, fala o narrador-personagem ou o Borges-ator? A prisão dos ‘eus’ de que fala Nietzsche, atinge este homem “de cima para baixo. Ao tentar se livrar de Borges, este se apropria de seus jogos com o tempo e com o infinito e o leva à prisão.

 A memória tem aqui papel de destaque. Nela as figuras são construídas para serem depois destruídas; é ‘lugar’ de transformações constantes, onde os eventos se desencadeiam de fora para dentro e vice-versa; solidão sempre re-inventada.

 O protagonista do romance wildiano escondia o retrato e só de quando em vez o descobria,  no conto, o outro deixa que Borges transite com ele, mesmo reconhecendo as inegáveis diferenças entre ambos. Estas não os separam, mas os mantêm unidos numa alquimia de interpretações. A ficcionalidade extrapola os limites da literatura e esta aparente contradição move uma rede que assume o universo como criação escrita, lida e experimentada a todo momento. Dorian encenara uma forma de ‘existir’ sem o retrato. O outro ainda sente Borges, não como sombra, mas como seu duplo caminhando a seu lado. Oscar Wilde, com o passar dos anos, lendo e estudando compulsivamente chegou a seu desejo maior: que o ‘eu ficcional’ e ele fosse um e o mesmo, artista e obra fundidos; obra de arte andarilha. Borges ainda questiona quem escreve as páginas , ele ou o outro. Chegara às portas de um delicioso confinamento do qual tentava fugir, mas que, no fundo, sabia dele necessitar como nutriente para seus ‘eus’. O médico precisa do monstro, Dorian precisa de seu retrato, Wilde precisa de seus personagens, Nietzsche precisa de suas vozes internas, Borges precisa de seu par. Eles precisam de mim, leitor, para que vivam e eu deles, para sobreviver. Eles vencem; eu me perco e me pergunto, mas por que escrever? E Borges me diz que escrevia para se livrar do texto.


A aceitação das diferentes ‘identidades’ assusta. Ser plural é admitir insegurança mas é também constituir força que rejeita o óbvio. Este ‘dilaceramento’ é esperança contra o esquecimento e única maneira de evitar a cicatrização  das feridas.
                A escrita borgiana oculta e revela o que acalenta: um coração despedaçado que tinha aos pés um abismo que não podia ver, mas que o observava incessantemente. A palavra, sua amante,  é meio inesgotável de multiplicar os caminhos e fugir por entre seus labirintos para evitar o regresso à uniformidade, afirmando cada vez mais o indeterminado. Borges confessou constantemente a não-verdade opondo aos valores habituais e sabia que esta estrada não ofereceria saída, nem para ele, nem para seus leitores. A linguagem o oprime e liberta, exige agudez de escuta, tato infalível, olfato delicado, audição sensível e visão colorida, dançante. Tendo, às vezes, a melancolia como insistente companheira, não deixa de questionar a linha e a entrelinha; o que ficou impresso no papel e o que seu outro escondeu. Mente labiríntica, correm os pensamentos e o conto descortina uma inusitada discussão entre a consciência e a inconsciência. As duas falam. Borges diz não saber quem vence na escrita. Arriscamos, apostando no inconsciente de um autor que transpirava arte. O não saber quem escreve é entrega, alívio e libertação. No aconchego da não-saída, seu destino é o labirinto.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

do Guardador de existências



                                                  Cultiva teu jardim oculto
                                          Acalenta teu vulcão ativo
                                          Embriaga-te
                                          Respire seu poema
                                          A arte atua como tônico

                                          Poeta, és homem de exceção

                                          Há um quê de loucura nesse amor
                                          É o novo tempo na Arte
                                          Lança-te superficial por profundidade
                                         

domingo, 1 de julho de 2012

Allegro



                                                        ALLEGRO



                            (um olhar sobre Sinfonia em amarelo de Oscar Wilde)

                        (texto publicado na Revista Garrafa-Faculdade de Letras-UFRJ)



                                                                            Stella Maria Ferreira





“ ‘Estou sedento por encontrar um mestre na arte dos sons’,

dizia um inovador ao seu discípulo, ‘um mestre que pudesse

apreender os meus pensamentos e em seguida os traduzisse

na sua linguagem: desta forma eu atingiria melhor os ouvidos

e os corações dos homens...” (Nietzsche, 2004,p.101)





A arte alicia a vida e o convite chega precedido de uma música encantatória que,

continuamente, remete ao mistério para manter o intangível e o inesgotável murmúrio

das forças imaginativas. O indivíduo que se puser à escuta, que se descola de uma

existência marcada pela obviedade, disponibiliza-se a um jogo estético que destacará

sua personalidade singular. Ao que, ao contrário, não se deixa enlevar, só resta a pura

reprodução de modelos “fora de qualquer magia, de qualquer entusiasmo, como se fosse

natural, como se essa palavra que retorna fosse sempre rigorosamente adequada...”

(BARTHES, 2001, p.85). A obra artística, com a provocação da dança dos sentidos, traz

um colorido prazeroso em cada matiz rejeitando a repetição fossilizada.

Oscar Wilde, figurino sem par cuja corporeidade transbordava imagens de uma

vida dedicada exclusivamente à beleza, louva a ‘ação’ de certas cores como gestação

para este novo olhar, este compromisso com novas perspectivas. Para a névoa oriunda

de um mundo mergulhado na monotonia, o artista propõe frases curtas e densas que se

aplicam à epifania da embriaguez como caminho para uma existência em plenitude.

A proposital escolha do amarelo transgressor e do verde caótico a procura de uma

nova ordem fixam a embrionária opção wildiana pela renovação do conceito de

inexorabilidade do corpo. O ‘tempo’ insatisfatório é atravessado por rasgos de

eternidade. O aparente desequilíbrio, produto do devir, assegura, paradoxalmente, um

renovado equilíbrio que não se esgotaria diante de pré-concepções e cristalizações. A


consequência é uma estranha alegria que emana do sopro repetido destas cores. Alegria

que enlaça o leitor para que a vida individual seja ultrapassada a cada momento. Na

insistente repetição do amarelo e do verde, Wilde convida ao som dos movimentos da

sinfonia que formam, de fato, o circuito de instantes, de ‘agoras’ que é a vida. Esta

multiplicidade dos possíveis aproximaria o corpo percebido do corpo sonhado. O artista,

desejoso de evitar a perplexidade diante do não vivido, instaura a graça do espanto. O

irlandês acreditava ser dever de cada um dar uma forma –ainda que não a concebida de

maneira ortodoxa – ao caos. Diz ele, em carta de 1897 ao amigo Robert Ross:



“Do outro lado do muro da prisão há...árvores...que estão agora

cobrindo-se de brotos de um verde quase gritante. Sei perfeitamente

o que lhes sucede: encontram sua expressão...” (Wilde, 2003, p.1240).





Escrito em 1889, o poema Sinfonia em amarelo reluz pela simplicidade. Em cenas



cotidianas, Wilde insere elementos com a cor da revolta, do anseio por mudanças. Em

versos serpentinos, o poema é concebido para, da tragicidade que emana da monotonia,

chegar à alegria das oportunidades de escolha. Visitemos, enfim, o texto:



Um ônibus atravessa a ponte,

Borboleta amarela a deslizar,

E aqui e ali, algum passante

Parece um mosquito inquieto

Grandes barcaças cheias de amarelo feno

São impelidas para os cais sombrios,

E como um amarelo cachecol de seda

Pende ao longo do molhe de espessa névoa

Começam a secar as folhas amarelas

E dos olmos do Templo caem, girando,

E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido

Jaz como uma barra de enrugado jade.







O estilo impressionista é predominante. A transgressão imposta pelo amarelo

mostra o desejo do artista de sentir seu hálito contaminando todo o lugar ‘exigindo’ um

posicionamento acerca da ordem estabelecida. Dos três movimentos que uma sinfonia

tem, Wilde enfatiza na hora silenciosa o andante,obscuro, trágico, melancólico. Cada




indivíduo experimenta a dor e o que determinará uma vida de ‘tranqüilidade’ é como

passará deste para o próximo movimento.

Allegro neste poema está ainda implícito nas palavras, é a esperança nutrida pelo poeta;




allegro está dentro dele. A força do desejo, no entanto, explode para os 'eleitos'



 – aqueles que se mantêm abertos, à deriva, à espera. O poeta vislumbra a beleza

 dentro do disforme. Foi capaz de, sem cavar, perceber intensa luz e enigmático ar. A procura, 

no entanto, ainda é do outro; a ele cabe o exemplo de quem re-emergiu, para tornar-se novo. Diz

Wilde mais tarde em O crítico como artista




“(ao poeta)...pertence a vida em sua absoluta e plena totalidade;

não somente a beleza que os homens vêem, mas a que ouvem;

não só a graça momentânea de forma ou a fugaz alegria da cor,

mas toda a esfera da sensação, o ciclo completo do pensamento...”(Wilde, 2003,p.1134)





Para tanto, Wilde elenca ícones de recriação: a borboleta, as flores amarelas da

estação e o rio para produzir o ritmo do poema. A borboleta a deslizar lembra o leitor do

esforço interior pelo qual se deve passar para que a beleza desabroche. De lagarta com

cor turva à dama de vestimenta colorida e leve, assim é o processo de desdobramento do

eu; camada após camada deixando que o fluido da vida nutra os membros de forma a

garantir perene liberdade. Logo de início, o ônibus que atravessa a ponte anima o poeta, toma um

impulso na corrente de sentimentos, mesmo em meio às perdas – afinal, este sofrimento já levara o

poeta à sublime abstenção de qualquer queixa. Ele espera pelas estações e deposita

neste momento crédito especial ao outono – tempo de recolhimento, para que nova vida

possa brotar. Após a queda das folhas, a visão se tornará mais límpida, menos




obscurecida pelos estereótipos. A alusão a esta estação satisfatória, já que de mudança,

faz-nos indagar do tempo musical em consonância ou dissonância com o tempo

cronológico. O tempo em Wilde é predominantemente interior, regido pela imaginação.

Esta pode e deve superar todo e qualquer empecilho, permitindo um constante

deslocamento, um exercício para o corpo insubmisso. Nesta desmesura, aposta na

fronteira para garantir o estado de exceção da arte. Daí, ser imprescindível a escolha

pela simultaneidade que, aflorando no tempo e no espaço, permite matizes de sons até

então impensados. A repetição do amarelo e do verde não nasce do tempo, ela é o

tempo(ver Fink, 1983).


 As insistentes cores se aninham nos corações e esperam que, pelo



‘desconforto’, possam atingir resultados.

A resistência do ‘passante’, ‘inquieto mosquito’, contrasta com a ‘borboleta

amarela’, já transfigurada, plena da força da vida que espera e vence. O rio, acostumado

ao movimento contínuo das águas, que mudava sua constituição diariamente, observa

com curiosidade a névoa encantada. Enquanto isso, deseja também ser observado e que

o verde de suas águas seduza outros passantes. Ele leva as barcaças para os sombrios

cais e se deslumbra, com certeza, diante do contraste com a luz dos feixes de feno, que

quer envolver e aquecer os corações frios e sem destino. O Tâmisa, verde, é então,

testemunha e junto ao poeta aguarda o momento de revelação. O rio, em seu fluxo

constante, observa a ambiência caótica e este sentimento é abrilhantado pela cor. É o

mesmo do ensino de Heráclito, o sempre novo, o perseverante, posse que não se reduz

com o uso. É preciso olhá-lo e rir, descobrindo em si um herói e um insano, bailar em

suas águas como trocista, sem vergonha de experimentar a leveza que a vida social

negara.

As folhas que caem desenham também uma trilha a ser seguida pelos que se

dispuserem à aventura e jazem na rua – lugar de alma encantadora. Estas mesmas

folhas, como não imaginar, já transformadas em sua textura e sua cor pela estação, aos

pés do amado e precioso rio, tal qual narcisos, invejariam os homens capazes do

mergulho que resultaria em transmutação. A coragem de banhar-se no verde caótico e

recriar-se rumo a uma ordem – fato que se repetiria , pois “a criação tende a repetir-se”

(WILDE, 2003,p.1123) – está nos versos finais:



(...)

“E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido

Jaz como uma barra de jade.”.

Wilde sabia que enquanto os indivíduos não expressassem seu verdadeiro ‘eu’

selariam um destino infiel ao elevado potencial a respeito da vida. Mantém, porém, um

espírito vago, um tom de indeterminação no texto para forçar seu leitor a entender a

mensagem de que a “virtude e a maldade são simplesmente para ele (artista) o que são

para o pintor as cores em sua palheta...Vê que por meio delas pode produzir-se certo

efeito artístico e produz...”



O amarelo procura envolver e seduzir semelhantes. O trabalho é árduo, avança

lentamente, o sofrimento é voluntário e, por isso, compensador. Ele sabe que não é fácil

ultrapassar a fronteira da consciência, mas se o ônibus atravessa uma ponte diariamente

haverá um instante em que a inconsciência chamará os indivíduos a entregarem-se à

embriaguez favorável a obstrução de todo e qualquer preconceito. A resposta está no

acolhimento estético de todas as coisas: “discernir a beleza de uma coisa é o mais alto

ponto a que podemos alcançar. Até mesmo um senso de cor é mais importante no

desenvolvimento do indivíduo do que um senso de bem e de mal...” (o crítico-p.1163).

A sociedade, dizia ele, primava pela emoção que levasse à ação e a arte queria a emoção

pela emoção. A sociedade existia simplesmente para concentrar energia humana

suficiente para assegurar a perpetuação de todas as coisas a partir de uma sadia

estabilidade. “As belas emoções estéreis que a arte desperta em nós são odiosas a seus

olhos e esse horrível ideal social domina com sua tirania tão por completo as pessoas...”

( WILDE, 2003, p.1143).

A visão desta cena captada por Wilde devia levar ao descanso daquele que escolhe

o sonho; daquele para quem deseja que nenhuma forma de pensamento seja estranha,

nenhuma emoção, obscura. Simpatizar com o pensamento: eis o segredo, pois, “a arte é

uma paixão e em matéria de arte o Pensamento está inevitavelmente colorido pela

emoção...” (WILDE, 2003,p.1152). A entrega ao poema é essencial e o que se espera é

que nada além dele povoe a mente; nada de preconceitos, preferências. Assim, a cor do

texto se mostrará, seu prodígio criará, enfim, um mundo mais real do que a própria



5 WILDE,2003, p.1327.



realidade, um sentimento sem limites se ‘imporá’. E este é o momento oportuno para o

‘grande salto’ em direção ao labirinto, que recusa a obviedade da linha reta. A

Sinfonia continua a ecoar aos ouvidos, “seus pastéis são fascinantes como



paradoxo...se não abriram os olhos aos cegos, deram, ao menos, grandes alentos aos

míopes...” (WILDE, 2003, p.1156). Para um artista como Wilde, o som da liberdade de

expressão só poderia vir por esta cor de energia, de uma luz inebriante, ao mesmo

tempo de Apolo e de Dionísio; cor de duas ‘faces’ que, no jogo estético, garante o allegro,


 

 sequência sonora que desvela para cada indivíduo o que jaz em seu interior:



esta vontade de completitude, de experimentação das várias existências dentro de uma

mesma. A cor assegura a força da mascarada e, na fortaleza que emana da música que

só a ouvidos atentos se permite ‘descobrir’, Oscar Wilde ativa o mecanismo de um texto

que se quer diferença. Aí, neste instante, a Arte vence.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

:



BARTHES, R.

O prazer do texto. Lisboa: Edições70, 2001.



FINK, E.

A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1983.

WILDE, O . Obra Completa. Rio de Janeiro; Nova Aguilar, 2003.

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