O RETRATO DE DORIAN GRAY
(capítulo adaptado da tese)
Sinal de um final de
século estertorante, o romance se enuncia como resposta à conceituação de belo que inibia a criação
artística, limitando-a a um modelo de papel estético que priorizava coisas em
detrimento de outras. O ponto focado pelo olhar realista desconsiderara as
zonas de repouso, todo o em redor. Wilde, num trabalho arqueológico, pinça o esquecido,
o posto de lado e elabora uma obra única, multi-dimensional. Após Dorian Gray, Wilde se tornaria sinônimo de
tudo o que fosse doentio. O autor se percebe ainda mais provocativo e perigoso
aos olhos da opinião pública.
O prisma desta
escrita definitiva foi, portanto, contra a anestesia, o tédio; ocupação do
anônimo. Do Des Esseintes de Huysmans , que encapsulado na biblioteca
desenvolve ritos de colecionador, há uma gradação até Wilde, encapsulado no
espaço físico de um livro, fazendo lenda nele e com ele a partir de uma mente
aglutinável à outras para um mesmo ideal de beleza. À Rebours , com seus caprichos estéticos, o desprezo pelas
convenções, o furor das experiências extravagantes seduziu sobremaneira. O desabrochamento das
qualidades literárias de Wilde faz Dorian ascender. Afastando-se da crença do
pensamento bom (bom senso), do pensamento que é um (senso comum), que dissipa o erro reunindo proposições
verdadeiras, ei-lo ‘libertado’ para parecer o que é: mau, paradoxal. A carta que Mallarmé envia a Wilde após a leitura do livro exprime
o encantamento das mentes-pares:
“I have finished
the book, one of the few which can move one.
Its deep fantasy and very strange atmosphere took me
by storm.
To make it so poignant
and human with such astonishing intellectual
refinement, and at the
same time to keep the perverse beauty is a
miracle that you have worked
through all the
arts of the writer(...)
This disturbing , full-length portrait of a Dorian Gray will haunt
me as writing, having become the book itself.” .
O texto é, assim, assustador porque
impregnado de corpo; roteiro enigmático de uma fantasia que comportava uma
parte definida deste corpo, com cores, luz e sons próprios – o rosto; quadro
vivo suspenso numa imagem; harmonia do todo. Diz Philippe Julian em Oscar Wilde:
“(...)It seems as if Oscar had had
a premonition of his own
ruin, inevitable although delayed
by success, in the way
he shows Dorian’s beauty suddenly crumbling
into decay.
the clash between the life he led, his material pleasures,
and the life dreamed of, could only lead to
catastrophe.”.
Comentando sobre O
nascimento da tragédia, seu livro ‘problemático’, Nietzsche diz:
“edificado a
partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam
todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte(...)um livro
talvez(...)cheio de inovações psicológicas e de segredos dos artistas(...) uma
obra das primícias, inclusive do mau sentido da palavra, não obstante o seu problema senil, acometida de todos os
defeitos da mocidade
(...) que retorna múltiplas vezes à sugestiva proposição de que
a existência do mundo
só se justifica como fenômeno estético.”;
e parecemos estar diante em O retrato de Dorian Gray de proposta
semelhante por parte de Wilde: uma obra definitiva para uma grande vida que não
temeu o fim.
No capítulo III, conversam o Sr. Erskine e
Lorde Henry (WILDE, 2003,p. 87):
“ – O senhor fala como um livro – disse
-. Por que não escreve algum?
- Gosto por demais de ler os dos outros para cuidar de escrever um, Sr.
Erskine. Gostaria realmente de escrever um romance que fosse tão adorável e tão
irreal como um tapete persa.”
Borges em Magias parciais do Quixote comenta a
leitura sobreposta na obra de Cervantes, assim como a peça teatral encomendada
pelo protagonista em Hamlet e o fantástico Livro
das Mil e Uma noites - sobre este último diz:
“Essa compilação
de histórias fantásticas duplica e reduplica
até a vertigem a ramificação
de um conto central em contos adventícios, mas não procura graduar suas realidades,
e o efeito (que
devia ser profundo) é superficial, como um tapete persa(...)”.
Ousaríamos
identificar uma alusão a sentença de Lorde Henry ( de que só admitiria escrever
um romance irreal como um tapete persa). Talvez. Quanto a Wilde, pode-se dizer
que sua erudição, que acalentava o pensamento de que a vida, como um livro, é
formada por histórias sobrepostas, o fragmento é intencionalmente sagaz. O
esteta permitiu-se a construção de um romance circular, que conteria nenhuma e,
por isso, todas as histórias. A juventude de Dorian engloba o tapete persa das
fábulas de Sahrazad, que funde tempos distantes, passando por Homero
e a tapeçaria de Penélope( feita de dia e desfeita à noite) a espera de seu
Ulisses -, abraçando a marcante presença das heroínas shakesperianas
(representadas pela atriz Sybil Vane), mergulhando nos círculos dantescos em
busca desenfreada pelo prazer a partir do livro amarelo recebido de Lorde Henry. Um
tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica. No Oriente,
lembra Michel Foucault, para os persas, os tapetes eram, no início, reproduções
de jardim. Este, considerado espantosa criação atualmente milenar com
significação profunda.O tapete, assim, é uma espécie de jardim; jardim
claro, de flores delicadas e soturno, de perfumes embriagadores.
Retrato-metáfora do escritor que deve dar lugar ao texto.
O romance se inicia
plenamente apolíneo – equilíbrio perfeito de cores com uma leve predominância
da cor síntese: o branco, fixando uma cena de despertar e afirmação da
juventude, perfeita para o protagonista, que : “(...)encarnava a graça e a branca pureza da adolescência e a beleza tal
como no-la conservaram os antigos mármores gregos(...)” (WILDE, 2003,p. 82). O ‘tempo’ se desloca como a areia do deserto
ao vento e à medida que os fios da teia se combinam para o enlace final, a
atmosfera muda de cor. A luminosidade dá lugar às saturnais do espírito e
fortes pinceladas são adicionadas emoldurando o clima de mistério, quando
‘escuta’ pela primeira vez palavras acerca de sua incomparável beleza, antes
mesmo de ver o retrato pronto: “as poucas palavras que o amigo de Basílio lhe
havia dito – pronunciadas indubitavelmente a esmo e repletas de paradoxos –
haviam ferido alguma corda secreta, antes nunca vibrada, mas agora vibrante e
palpitante de estranhas emoções...As palavras! As simples palavras(...)Não se
podia fugir delas...Pareciam comunicar uma forma plástica às coisas informes(...)”
(WILDE, 2003,p.71). Para que o inconsciente de Dorian se manifestasse, foi-lhe
preciso ‘abrir os ouvidos’ a Lorde Henry, então pôde produzir seus efeitos. Diz
J.-D. Nasio em Cinco lições sobre a
Teoria de Jacques Lacan:
“Imaginem que o real não é um planeta deserto, mas, ao contrário, cheio demais, infinitamente
cheio, tão cheio de coisas e seres que é homogêneo a um vazio. O real não é o
vazio no sentido do abismo oco, mas no sentido do infinitamente cheio, do lugar
onde Tudo é possível. Quando, nesse lugar onde tudo é possível, revela-se uma
–e uma única – impossibilidade, um único obstáculo, um único menos, então
existe aí o nascimento de um ser positivo.O ser positivo, isto é, nosso sujeito
do inconsciente, surge apenas como o correlato de um furo cavado no
infinitamente cheio(...)” .
A ‘realidade’ de
Dorian é afetada por uma falta; ergue-se a sua frente um obstáculo que se
mostrava impossível de ser ultrapassado.
No cap. II, vê o retrato que Basílio terminara: “(...)Ao
vê-lo, recuou e, por um momento, as suas faces se enrubesceram de prazer. Uma
centelha de alegria brilhou nos seus olhos, como se se tivesse reconhecido pela
primeira vez. Permaneceu imóvel por algum tempo, maravilhado, percebendo
confusamente que Hallward lhe falava, mas sem, compreender o significado das
suas palavras. A sensação da sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma
revelação(...)” (WILDE, 2003,p. 74). “(...)Dorian Gray não se movia. Procurava
reunir os fios escarlates de sua vida e tecer com eles um roteiro(...)” (WILDE,
2003,p. 127). Aqui, e não no capítulo
final, Dorian morre. Essa ‘morte’ para o mundo ‘real’, em Dorian, é
ressurreição para uma diferença que tornaria o vazio do lado noturno, lugar de
permanência; vida definida com a morte. Se a consciência de que “a vida que
devia formar a sua alma, deformar-lhe-ia o corpo’ e “tornar-se-ia horrível,
disforme e grotesco” (WILDE, 2003,p.74), cabia fazer agora do murmúrio da
inconsciência movimento a ser explorado, a partir do sinistro pacto. Aos que
acenaram para o caráter sombrio do tema, diz Wilde em seu engenhoso prefácio, “o artista jamais é
mórbido” (WILDE, 2003,p.55). Para ele, chamar um artista de mórbido porque trata da
morbidade como tema principal é tão ‘estúpido’ quanto chamar Shakespeare de
louco porque escreveu o Rei Lear. A morte e a vulgaridade só são
dois fatos que se pode explicar, completa. Assim, a frenética descida deixa o
rastro de um colorido embaçado, turvo pela entrega às paixões, enquanto o rosto
do protagonista permanece guardado de qualquer efeito. O retrato – espelho –
revela a imagem interna, o aspecto oculto da realidade. O centauro wildiano
experimenta a vontade de escuridão.
Conta Alberto Manguel
no Dicionário de lugares imaginários
que no país do Espelho de Lewis Carroll (in Through
the looking-glass, 1871), o desperdício desnecessário do movimento no espaço
e da passagem do tempo fora abolido. Ora, para Dorian o tempo pessoal havia
parado ali sem que as outras pessoas fossem por isso afetadas. O romance, então, que se
pretendia narrativa ordenada, na verdade, é pura decomposição. O retrato
composto por Basílio e apresentado a Dorian passa a ser por este decomposto. O
que estaria ‘congelado’ na história (a pintura) à medida que seu modelo
envelhecesse, tem a constituição revertida a partir do desejo de imortalidade
verbalizado pelo jovem. O que é texto preso na moldura da página se liberta
para a indeterminação de um mito que penetra na mente dos leitores e faz de O retrato de Dorian Gray relato de um
longo suicídio e romance sempre presente.
Ao entregar-se ao
pacto, adentra o mundo do retrato; mundo similar ao de Carroll – circular - ,
onde só se poderia subir “após evitar cautelosamente os vasos de flores secas,
protegidos por redomas vitorianas.” (WILDE, 2003,p.149). O anseio de Dorian
passa a ser o de escapar às correias de regras e normas que davam às palavras
e, conseqüentemente, às coisas, o sentido que ordenassem; “seu lugar é esse
intransponível vazio – espaço flutuante, ausência de solo, ‘mar incrédulo’ –
onde, entre o ser oculto e a aparência desarmada, a morte surge, mas onde,
aliás, dizer tem o poder maravilhoso de dar a ver.” (FOUCAULT, 2006,p. 11). A
questão é seria Dorian ou o retrato a imagem refletida?
O texto wildiano busca conformar e confrontar
forma e informe; é diário do que passou e do que se passa, projetando as
expectativas de jogos com a máscara. Com Dorian Gray, Wilde foi “(...)do brilho
do diamante ao seu núcleo carbônico...” (FOUCAULT, 2006, p. 190). Dessa
arqueologia, revelou em seu protagonista o inverso visível da morte. A partir
desse momento, tempo e espaço são deslocados; a linearidade é suspensa e a linguagem
ultrapassa as bordas da página.
Diz Bakhtin em Estética da criação verbal:
“ um elemento
espacial e sumamente importante na visão plástico- pictural do homem é o vivenciamento das
fronteiras externas que o abarcam...o outro é todo dado no mundo exterior a mim
como elemento deste, inteiramente limitado e termos espaciais(...) abranjo-o por inteiro com o olhar e posso
abarcá-lo todo com o tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça sobre o fundo
do mundo exterior, e todas as linhas
do seu corpo que o limitam no mundo(...)”.
Assim, só pelo outro
do retrato, Dorian experimenta a finitude humana. Os contornos definidos da pintura,
desconcertantes, definiriam ou concluiriam o jovem para si mesmo. Os anos e as luxúrias passariam
sobre seu corpo tal como um sopro, sem deixar traços. Estas linhas fronteiriças
para a pintura são inadequadas para Dorian. Esta forte certeza viria a destruir
toda a capacidade de persuasão que a realidade do retrato poderia trazer. Por
este outro, Dorian vivenciou a beleza do corpo humano, mas também, a
degenerescência a que se destinava. E é com o retrato, seu reverso, que faz o
pacto. Simula um jogo como se fosse
outro e não com ele mesmo. Instiga-o a
manifestar-se ao deixar o pensamento livre das fronteiras da ‘vida consciente’.
Ele é, ao mesmo tempo, Dorian e o anjo decaído do Fausto.
Com linguagem sempre
em excesso e em falta, Wilde constrói para Dorian um espaço vizinho da morte;
faixa tênue afastando-o do precipício. Encarnando todos os desejos realizados –
e realizáveis -, o jovem regride ao infinito, torna-se capaz de fundir
elementos aparentemente inconciliáveis do comportamento.
O Dorian retratado se
aproxima do jovem pelo olhar e, ao mesmo tempo, o mantém longe e o separa dele.
As diferenças se misturam. O retrato se oferece dividido, espaço que avança para que o jovem possa
recuar, nervura do que não ‘existe’ tal como é. O jovem, então, experimenta a
realidade vivida do avesso. As radiações de caráter variado fazem do
imaginário, vida real; acomoda-se ao efêmero. Aventura-se no invisível,
rechaçando o físico, o limitado. Essa suspensão temporal torna possível a
aparição e existência de coisas fora da condição natural, como em sonhos
crepusculares – afinal, a vida quer ilusão, ela vive de ilusão . Wilde
faz Dorian habitar o extraordinário; atinge uma co-presença entre sentido e não
senso. O esteta faz seu personagem ‘esquecer’ a fadiga do movimento linear,
eliminando a memória. Retirado esse componente essencialmente humano, os modos
de comportamento se tornam eclipsados. Dorian sai de si para conhecer-se. As
recordações são ‘sopradas’ para o retrato. A estrada para a completa realização
envolveria uma rejeição a padrões de idade e liberdade para todos os credos e
sistemas. Há a patologia de uma nova idéia.
A vida seria produto de uma simulação e sua beleza não estaria
‘ameaçada’ pela moral: “de acordo com os psicólogos, há momentos em que o
desejo do pecado, ou do que os homens chamam de pecado, domina de tal modo a
nossa natureza, que cada fibra do corpo e cada célula do cérebro parecem
movidos por impulsos terríveis. Em tal momento, os homens e as mulheres perdem
sua liberdade e seu arbítrio. Dirigem-se como autômatos para seu fatal
objetivo. O direito de escolher lhes é recusado e sua consciência está morta(...)”
(WILDE, 2003,p. 198). Este corpo apaixonado deixa-se invadir. Ao escrever O retrato, Wilde abraça elementos do
aterrorizante Melmoth, the Wanderer,
do tio distante, guardando, no entanto, um quê de originalidade. Diz John Sloan
em Oscar Wilde- authors in context:
“(...)Maturin’s
tale(...)begins with the young student Melmoth’s discovery in an unused room of
a portrait of an evil Melmoth ancestor. Like Wilde’s Dorian, the figure in the
painting has made a bargain with the devil whereby he can live without showing
signs of ageing. In a melancholy ending, Melmoth returns to his native Ireland
to die after more than a century of restless wanderings,having failed to find a
kindred soul to share his fate(...)” .
Wilde adota o nome Melmoth ao sair da
prisão, sabendo que viveria exilado – nunca voltaria à Irlanda ou à Inglaterra
novamente. Com isso traça, juntamente com seu personagem, uma viagem para a
imortalidade, “mais penosa e mais contrariada do que qualquer outra(...)e, no
entanto(...)pode estar seguro de nela alcançar o seu próprio fim – porque só
ele sabe permanecer nas asas abertas de todas as épocas(...)” (NIETZSCHE,2002,
p.53).
Sobre a história, apesar da aparente
similaridade – a imediata interpretação é a de um pacto com o mal -, Wilde foi
um tanto além: seu protagonista faz um pacto com ele mesmo para libertar seus
desejos inconscientes. Não há como em Melmoth
ou mesmo como no Fausto a menção de
um acordo com a personificação do Mal. Tudo em torno de Dorian é de um silêncio
enervante. Há um suposto mediador, Lorde
Henry, que passamos a considerar a seguir.
A aclamada influência que Lorde Henry diz ter
sobre Dorian – interpretação consentida por muitos críticos do texto, também -:
“Havia algo de terrivelmente sedutor na ação daquela influência. Nenhuma outra
atividade podia comparar-se a ela...transportar para outro o seu temperamento
como um fluido sutil ou um estranho perfume(...)(WILDE, 2003,p.82)(...)Tentaria
dominá-lo – na realidade, já o havia quase conseguido - , tornaria seu aquele espírito maravilhoso.
Havia algo de fascinante naquele filho do Amor e da Morte(...)” (WILDE, 2003,p.83),
aproxima-se muito da de Mefistófeles em relação a Fausto. As palavras venenosas,
pronunciadas sob um tom de oráculo, parecem insinuar para a ação quando, na
verdade, apenas traduzem o que já se passava no coração. Lorde Henry, cético
amável, refinado e corrompido deu a conhecer a Dorian uma chama adormecida que ansiava por ser acesa:
“(...)Aconteceram-lhe na infância coisas que não havia compreendido. Agora as
compreendia. A vida pareceu-lhe, de repente, violentamente colorida. Pensou que
até então andara entre o fogo. Por que não o soube nunca?” (WILDE, 2003,p.70). O próprio Dorian conclui: “Seria realmente
verdade que uma pessoa nunca pode mudar? Sentiu dentro de si um anelo ardente
pela pureza imaculada da inocência(...)Tinha consciência de que ele mesmo a
havia maculado e de que tinha também corrompido totalmente seu espírito(...)” (WILDE,
2003,p.221). Percebemos em Wotton, a voz do inconsciente na boca de um ‘anjo
mau’ garantindo a opção já feita, por livre vontade, pelo protagonista. A
‘indução’ é, então, relativa. Como diz Nietzsche no aforismo 19 de A gaia ciência, “lançou uma frase no ar
ao acaso, para se divertir, essa frase, apesar de tudo, fez cair uma
mulher”(p.24). Esta ‘mulher’ que poderíamos interpretar no contexto de O retrato é a arte aliciando a vida,
impulsionando-a a mudanças, faz com que o ‘papel’ de Lorde Henry seja apenas o
de evitar que Dorian sucumba ao ‘enquadramento consciente’: “Atualmente você é
o tipo perfeito. Não vá quebrar essa perfeição. No momento você é
irrepreensível. Não, não negue(...)O mundo sempre nos censurou, mas a você
sempre adorou. E sempre o adorará. Você é o tipo que nossa época procurava e
que, todavia, receia ter encontrado. Alegro-me de que você nunca tenha feito
nada: nem uma estátua, nem um quadro, enfim que não tenha produzido coisa alguma
à exceção de você mesmo.” (WILDE, 2003,p.219). Lorde Henry dá a provar a
alegria do poder; a volúpia da dominação que torna o indivíduo indiferente às
conseqüências de seus atos. Dorian tornara-se o que era18 : para
sempre ‘identificado’ por fora e eternamente estrangeiro, encoberto, declínio e
ascensão, por dentro. Esta aparente decadência é poderoso estimulante em sua
vida.
Deliciando Wotton -
que observa o desenrolar da trama –
recebe dele em dado momento, um livro
mais tarde identificado pelos críticos como sendo À Rebours de Huysmans: “seus olhos caíram sobre o livro amarelo(...)Que
seria?(...)era o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os
pecados do mundo, vestidos de maneira singular, desfilavam diante em mudo
cortejo, ao som delicado de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado
confusamente se tornavam repentinamente reais para ele(...).era uma novela sem
enredo, com um só personagem, na realidade, um simples estudo psicológico de um
jovem parisiense, que passava a vida tentando concretizar, no século XIX, todas
as paixões e maneiras de pensar de todos os outros séculos(...)amando, pela
própria irrealidade, aquelas renúncias que os homens chamam tolamente de
virtude, bem como aquelas rebeliões naturais que os homens ainda chamam de
pecado(...)era um livro cheio de veneno.” (WILDE,2003,p.149). Stephen
Calloway, em seu Wilde and the dandysm of
the senses comenta
ter sido a primeira edição de Studies in
the History of the Renaissance,
de Walter Pater (especialmente a conclusão), o livro amarelo de Wilde.
(Atentamos aqui para um interessante detalhe – não
comentado no texto: Dorian parece nunca dormir. O que nos faz crer que neste
mundo de sonho em que se encaixou, não havia lugar para repouso, apenas para
vivência de ardentes emoções. Vivência esta que não o caracterizava pela
agitação da vida moderna. O intenso movimento interior somado ao ócio fazia-o
ir a procura de prazeres).
A partir daí, a
unidade da história cede lugar à independência de algumas páginas que, como
caixas chinesas, umas dentro das outras, dão a noção de que a história contém e
está contida em várias outras. Wilde desfila um catálogo de formas de elegância
e perversidade, revelando-se um autêntico conhecedor de flores e jóias. Uma longa descrição que tem início no cap.
XI, p. 155: “começou a estudar os perfumes e os segredos de sua fabricação(...)compreendeu
que não havia nenhum estado de espírito que não tivesse correspondente na vida
sensorial(...)” confirma a fascinação de Dorian pelo livro. A narrativa dentro
da narrativa acentua o crescente apuro e sofisticação dos gostos do jovem,
insinuando a passagem do tempo. Torna-se um colecionador cujo refinamento é
medido pela raridade dos objetos que possui e pelos sentimentos artísticos que
produzem.: “todas aquelas preciosidades que colecionava em sua bela habitação
tão cheia de atrativos nada mais eram que recursos de que lançava mão para
esquecer, para fugir(...)” (WILDE,2003,p.160). A casa passa a ser como uma
espécie de cápsula. E cada objeto cuidadosamente guardado é lembrança revivida, garantia do eterno
retorno de todas as coisas.Seus gostos visam à sensação pura: ele ama o odor
das flores, os objetos que pode apalpar – marfim, bronze, pedras preciosas,
bordados, tapeçarias, sedas, veludos -, o que lhe dá a ilusão de conhecimento. Lembramos aqui as palavras de Walter Benjamin
em Charles Baudelaire- um lírico no auge
do capitalismo:
“(...)concebe-a
como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences,
preservando,assim, os seus vestígios,como a natureza preserva no granito uma fauna
extinta(...)”.
A alma do jovem
encena uma maneira de funcionar por si mesma, permitindo-se faculdades
criadoras, matizes desconcertantes, já que a Dorian só restou o ‘esquecimento’
de todo e qualquer ato. Ele se distancia das próprias atrocidades como se fosse
mero espectador. Seu mundo é ardente, feito de violência e fragilidade, ao
mesmo tempo: “Poucos são aqueles dentre nós que muitas vezes não acordaram
antes da aurora(...) dessas noites de horror ou de alegria monstruosa, quando,
através dos escaninhos de nossa mente, deslizam fantasmas mais terríveis que a
própria realidade, impulsionados por essa vida intensa que se esconde em tudo
que é grotesco e que confere à arte gótica sua vitalidade profunda, uma vez que
esta é, como se pode perceber, uma arte de indivíduos cuja mente foi perturbada
pela enfermidade da rêverie(...) A criação desses mundos é que parecia a Dorian Gray o
verdadeiro, o único objetivo da vida(...)” (WILDE,2003,ps. 153/154) e oprimia-o
a instância da realização.
Assim, a cada nova
interpretação, uma de suas máscaras cai, mas surpreendentemente outras a
substituem. Quanto mais o jovem parece se mostrar de si mesmo, mais ele se
torna um eficiente enigma que, paradoxalmente ansiava por ser decifrado e
deleitava-se com a impossibilidade de sê-lo. O elo com o retrato que
possibilitara tudo isso, por vezes, parecia incomodá-lo: “Por um momento,
pensou em rezar para que desaparecesse a terrível afinidade que existia entre
ele e o retrato. Um pedido a produziu; quem sabe se novo pedido não a tornaria
imutável(...)dependeria aquilo de sua vontade? Teria sido, realmente, o seu
pedido que provocara aquela situação? Não haveria algum curioso processo
científico que explicasse tudo aquilo? Se o pensamento podia exercer sua
influência sobre um organismo vivo, não poderia exercê-la sobre as coisas
mortas ou inorgânicas? Por sua vez, não poderiam as coisas exteriores a nós,
destituídas de pensamento ou desejo consciente, vibrar em uníssono com nossos
humores e paixões, já que o átomo atrai o átomo por um amor misterioso de
estranha afinidade?” (WILDE, 2003,ps. 135/136). A ‘preocupação’, no entanto,
não durava tanto.
Wilde não deixa claro qual ou quais seriam os
‘pecados’ de Dorian Gray.
(Atrevemo-nos a considerar se Wilde saberia os pecados de Dorian Gray).
É-nos apresentado
apenas o estado de amargura em que ficam todos os que dele se aproximavam ou
que com ele conviveram. Diz o esteta que
“cada qual vê seu próprio pecado em Dorian Gray. Ninguém sabe quais são os pecados de Dorian Gray, Se alguém os
descobrir, é que os trazia em si mesmo.” (WILDE, 2003, p. 1327).O vago e o
indeterminado intensificam a incômoda atmosfera de curiosidade e aversão
provocada no leitor. As suposições são feitas a partir de evidências ambíguas
que provocam o leitor, mesmo que a ousadia da nomeação ou definição do ‘pecado’
não venha à mente. As possibilidades são diversas e isto pode ser sedutor e
inevitavelmente assustador.
Diz
Borges em Os espelhos velados:
“(...)seu
infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos, sua pantomima
cósmica eram tão sobrenaturais desde que anoitecia...algumas vezes temi que
começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto desfigurado por
adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente
no mundo(...)” .
Fazendo
Dorian debruçar-se sobre seu outro, Wilde antecipa, não só as linhas que viriam
para ele, como para todos os que se dispusessem – ou se abrissem – a uma
reflexão sobre seu papel. A capacidade de comunicação
proporcionada pela obra se acentua nas críticas negativas assim como nos elogios
mais fervorosos.
O retrato de Dorian Gray, lido por nós em diferentes momentos da vida,
guardará assustadoramente nossas marcas de expressão de alegria, ira, medo, morte
e vida. Cada frase pode surpreender com a revelação de um segredo que
quiséramos escondido ou alegremente desvendado. O
romance é único porque é presente para cada leitor. Oferta para um tempo
presente.
Belamente concebido,
já que primeira manifestação de Wilde em condensar um estilo de vida que
primasse pela aceitação do tudo em cada um, O
retrato foi resumo do mundo. Do mundo novo que se insinuava em finais de
século. Seu lado sombrio estava impregnado de luz. O retrato do fenômeno
estético estava desenhado. Entretanto, só os eleitos poderiam percebê-lo e sentir
o calor das páginas nutriria os corações preparados para a mudança. Dorian esboça um conflito, mas não põe
termo à guerra.
A idéia é terrível, doce e amarga. A grande virada estaria por vir, dependendo
da reação dos leitores. Ontem. E ainda hoje, desestabiliza e convida o
pensamento ‘consciente’ ao mesmo mergulho. O que move o protagonista e Wilde
esperava que movesse os que leriam seu romance não é a perversidade – apesar
dela estar necessariamente presente. O impulso é o do jogo que desperta. Aquele
que aceita, afoga-se irremediavelmente na luz de uma alegria que faz descansar
o corpo fatigado da luta contra si. O convite foi e continua sendo o deixar-se
levar pela força e alegria inebriantes da vida.
O sussurro aos
ouvidos ainda incomoda e instiga á ação. O vigor do texto se insinua na pele do
leitor, embriagando uma vez mais os sentidos. Dorian Gray é mais do que atual: é real.
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