domingo, 8 de julho de 2012

Wilde e seu único romance


                                                   O RETRATO DE DORIAN GRAY

(capítulo adaptado da tese)   

Sinal de um final de século estertorante, o romance se enuncia como resposta à    conceituação de belo que inibia a criação artística, limitando-a a um modelo de papel estético que priorizava coisas em detrimento de outras. O ponto focado pelo olhar realista desconsiderara as zonas de repouso, todo o em redor. Wilde, num trabalho arqueológico, pinça o esquecido, o posto de lado e elabora uma obra única, multi-dimensional. Após Dorian Gray, Wilde se tornaria sinônimo de tudo o que fosse doentio. O autor se percebe ainda mais provocativo e perigoso aos olhos da opinião pública.

O prisma desta escrita definitiva foi, portanto, contra a anestesia, o tédio; ocupação do anônimo. Do Des Esseintes de Huysmans , que encapsulado na biblioteca desenvolve ritos de colecionador, há uma gradação até Wilde, encapsulado no espaço físico de um livro, fazendo lenda nele e com ele a partir de uma mente aglutinável à outras para um mesmo ideal de beleza. À Rebours , com seus caprichos estéticos, o desprezo pelas convenções, o furor das experiências extravagantes seduziu  sobremaneira. O desabrochamento das qualidades literárias de Wilde faz Dorian ascender. Afastando-se da crença do pensamento bom (bom senso), do pensamento que é um (senso comum), que dissipa o erro reunindo proposições verdadeiras, ei-lo ‘libertado’ para parecer o que é: mau, paradoxal. A carta que Mallarmé envia a Wilde após a leitura do livro exprime o encantamento das mentes-pares:



                  “I  have  finished  the book, one  of the  few  which can  move  one.

                     Its  deep  fantasy  and  very strange atmosphere  took  me  by storm.

                        To make it so poignant and human with  such  astonishing  intellectual

                      refinement, and  at  the same  time to  keep  the  perverse  beauty is  a

                       miracle  that  you  have  worked  through  all  the arts of the writer(...)

                      This  disturbing ,  full-length  portrait of  a  Dorian   Gray  will  haunt

                                                 me as writing, having become the book itself.” .



            O texto é, assim, assustador porque impregnado de corpo; roteiro enigmático de uma fantasia que comportava uma parte definida deste corpo, com cores, luz e sons próprios – o rosto; quadro vivo suspenso numa imagem; harmonia do todo. Diz Philippe Julian em Oscar Wilde:



“(...)It seems as if Oscar had had a premonition of his own

ruin, inevitable although delayed by success, in the way

 he shows Dorian’s beauty suddenly crumbling into decay.

                                                  the clash between the  life he  led, his  material  pleasures,

 and the life dreamed of, could only lead to catastrophe.”.



Comentando sobre  O nascimento da tragédia, seu livro ‘problemático’, Nietzsche diz:

“edificado a partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte(...)um livro talvez(...)cheio de inovações psicológicas e de segredos dos artistas(...) uma obra das primícias, inclusive do mau sentido da palavra,  não obstante  o seu  problema senil, acometida de  todos  os  defeitos  da mocidade  (...)  que  retorna  múltiplas  vezes à sugestiva proposição  de  que a  existência  do  mundo  só se justifica como fenômeno estético.”;



e parecemos estar diante em O retrato de Dorian Gray de proposta semelhante por parte de Wilde: uma obra definitiva para uma grande vida que não temeu o fim.
                                          



 No capítulo III, conversam o Sr. Erskine e Lorde Henry (WILDE, 2003,p. 87):

“ – O senhor fala como um livro – disse -. Por que não escreve algum?

   - Gosto por demais de ler os dos outros para cuidar de escrever um, Sr. Erskine. Gostaria realmente de escrever um romance que fosse tão adorável e tão irreal como um tapete persa.”

Borges em Magias parciais do Quixote comenta a leitura sobreposta na obra de Cervantes, assim como a peça teatral encomendada pelo protagonista em Hamlet e o fantástico Livro das Mil e Uma noites - sobre este último diz:   


“Essa compilação de histórias fantásticas duplica e reduplica

até a vertigem a ramificação de um conto central em contos adventícios, mas não procura graduar suas realidades, e o efeito  (que devia ser profundo) é superficial, como um tapete persa(...)”.

  

Ousaríamos identificar uma alusão a sentença de Lorde Henry ( de que só admitiria escrever um romance irreal como um tapete persa). Talvez. Quanto a Wilde, pode-se dizer que sua erudição, que acalentava o pensamento de que a vida, como um livro, é formada por histórias sobrepostas, o fragmento é intencionalmente sagaz. O esteta permitiu-se a construção de um romance circular, que conteria nenhuma e, por isso, todas as histórias. A juventude de Dorian engloba o tapete persa das fábulas de Sahrazad, que funde tempos distantes, passando por Homero e a tapeçaria de Penélope( feita de dia e desfeita à noite) a espera de seu Ulisses -, abraçando a marcante presença das heroínas shakesperianas (representadas pela atriz Sybil Vane), mergulhando nos círculos dantescos em busca desenfreada pelo prazer a partir do livro amarelo  recebido de Lorde Henry.  Um tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica. No Oriente, lembra Michel Foucault, para os persas, os tapetes eram, no início, reproduções de jardim. Este, considerado espantosa criação atualmente milenar com significação profunda.O tapete, assim, é uma espécie de jardim; jardim claro, de flores delicadas e soturno, de perfumes embriagadores. Retrato-metáfora do escritor que deve dar lugar ao texto.

O romance se inicia plenamente apolíneo – equilíbrio perfeito de cores com uma leve predominância da cor síntese: o branco, fixando uma cena de despertar e afirmação da juventude, perfeita para o protagonista, que : “(...)encarnava a graça e a  branca pureza da adolescência e a beleza tal como no-la conservaram os antigos mármores gregos(...)” (WILDE, 2003,p. 82).  O ‘tempo’ se desloca como a areia do deserto ao vento e à medida que os fios da teia se combinam para o enlace final, a atmosfera muda de cor. A luminosidade dá lugar às saturnais do espírito e fortes pinceladas são adicionadas emoldurando o clima de mistério, quando ‘escuta’ pela primeira vez palavras acerca de sua incomparável beleza, antes mesmo de ver o retrato pronto: “as poucas palavras que o amigo de Basílio lhe havia dito – pronunciadas indubitavelmente a esmo e repletas de paradoxos – haviam ferido alguma corda secreta, antes nunca vibrada, mas agora vibrante e palpitante de estranhas emoções...As palavras! As simples palavras(...)Não se podia fugir delas...Pareciam comunicar uma forma plástica às coisas informes(...)” (WILDE, 2003,p.71). Para que o inconsciente de Dorian se manifestasse, foi-lhe preciso ‘abrir os ouvidos’ a Lorde Henry, então pôde produzir seus efeitos. Diz J.-D. Nasio em Cinco lições sobre a Teoria de Jacques Lacan:

“Imaginem que o real não é um planeta deserto, mas, ao    contrário, cheio demais, infinitamente cheio, tão cheio de coisas e seres que é homogêneo a um vazio. O real não é o vazio no sentido do abismo oco, mas no sentido do infinitamente cheio, do lugar onde Tudo é possível. Quando, nesse lugar onde tudo é possível, revela-se uma –e uma única – impossibilidade, um único obstáculo, um único menos, então existe aí o nascimento de um ser positivo.O ser positivo, isto é, nosso sujeito do inconsciente, surge apenas como o correlato de um furo cavado no infinitamente cheio(...)” .



A ‘realidade’ de Dorian é afetada por uma falta; ergue-se a sua frente um obstáculo que se mostrava impossível de ser ultrapassado.

          No cap. II,  vê o retrato que Basílio terminara: “(...)Ao vê-lo, recuou e, por um momento, as suas faces se enrubesceram de prazer. Uma centelha de alegria brilhou nos seus olhos, como se se tivesse reconhecido pela primeira vez. Permaneceu imóvel por algum tempo, maravilhado, percebendo confusamente que Hallward lhe falava, mas sem, compreender o significado das suas palavras. A sensação da sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma revelação(...)” (WILDE, 2003,p. 74). “(...)Dorian Gray não se movia. Procurava reunir os fios escarlates de sua vida e tecer com eles um roteiro(...)” (WILDE, 2003,p. 127). Aqui, e não no capítulo  final, Dorian morre. Essa ‘morte’ para o mundo ‘real’, em Dorian, é ressurreição para uma diferença que tornaria o vazio do lado noturno, lugar de permanência; vida definida com a morte. Se a consciência de que “a vida que devia formar a sua alma, deformar-lhe-ia o corpo’ e “tornar-se-ia horrível, disforme e grotesco” (WILDE, 2003,p.74), cabia fazer agora do murmúrio da inconsciência movimento a ser explorado, a partir do sinistro pacto. Aos que acenaram para o caráter sombrio do tema, diz Wilde em  seu engenhoso prefácio, “o artista jamais é mórbido” (WILDE, 2003,p.55). Para ele,  chamar um artista de mórbido porque trata da morbidade como tema principal é tão ‘estúpido’ quanto chamar Shakespeare de louco porque escreveu o Rei Lear. A morte e a vulgaridade só são dois fatos que se pode explicar, completa. Assim, a frenética descida deixa o rastro de um colorido embaçado, turvo pela entrega às paixões, enquanto o rosto do protagonista permanece guardado de qualquer efeito. O retrato – espelho – revela a imagem interna, o aspecto oculto da realidade. O centauro wildiano experimenta a vontade de escuridão.

Conta Alberto Manguel no Dicionário de lugares imaginários que no país do Espelho de Lewis Carroll (in Through the looking-glass, 1871), o desperdício desnecessário do movimento no espaço e da passagem do tempo fora abolido. Ora, para Dorian o tempo pessoal havia parado ali sem que as outras pessoas fossem por isso afetadas. O romance, então, que se pretendia narrativa ordenada, na verdade, é pura decomposição. O retrato composto por Basílio e apresentado a Dorian passa a ser por este decomposto. O que estaria ‘congelado’ na história (a pintura) à medida que seu modelo envelhecesse, tem a constituição revertida a partir do desejo de imortalidade verbalizado pelo jovem. O que é texto preso na moldura da página se liberta para a indeterminação de um mito que penetra na mente dos leitores e faz de O retrato de Dorian Gray relato de um longo suicídio e romance sempre presente.

Ao entregar-se ao pacto, adentra o mundo do retrato; mundo similar ao de Carroll – circular - , onde só se poderia subir “após evitar cautelosamente os vasos de flores secas, protegidos por redomas vitorianas.” (WILDE, 2003,p.149). O anseio de Dorian passa a ser o de escapar às correias de regras e normas que davam às palavras e, conseqüentemente, às coisas, o sentido que ordenassem; “seu lugar é esse intransponível vazio – espaço flutuante, ausência de solo, ‘mar incrédulo’ – onde, entre o ser oculto e a aparência desarmada, a morte surge, mas onde, aliás, dizer tem o poder maravilhoso de dar a ver.” (FOUCAULT, 2006,p. 11). A questão é seria Dorian ou o retrato a imagem refletida?

         O texto wildiano busca conformar e confrontar forma e informe; é diário do que passou e do que se passa, projetando as expectativas de jogos com a máscara. Com Dorian Gray, Wilde foi “(...)do brilho do diamante ao seu núcleo carbônico...” (FOUCAULT, 2006, p. 190). Dessa arqueologia, revelou em seu protagonista o inverso visível da morte. A partir desse momento, tempo e espaço são deslocados; a linearidade é suspensa e a linguagem ultrapassa as bordas da página.

Diz Bakhtin em Estética da criação verbal:



“ um elemento espacial e sumamente importante na visão plástico-  pictural do homem é o vivenciamento das fronteiras externas que o abarcam...o outro é todo dado no mundo exterior a mim como elemento deste, inteiramente limitado e termos espaciais(...)   abranjo-o por inteiro com o olhar e posso abarcá-lo todo com o tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça sobre o fundo do      mundo exterior, e todas as linhas do seu corpo que o limitam  no mundo(...)”.



Assim, só pelo outro do retrato, Dorian experimenta a finitude humana. Os contornos definidos da pintura, desconcertantes, definiriam ou concluiriam o jovem  para si mesmo. Os anos e as luxúrias passariam sobre seu corpo tal como um sopro, sem deixar traços. Estas linhas fronteiriças para a pintura são inadequadas para Dorian. Esta forte certeza viria a destruir toda a capacidade de persuasão que a realidade do retrato poderia trazer. Por este outro, Dorian vivenciou a beleza do corpo humano, mas também, a degenerescência a que se destinava. E é com o retrato, seu reverso, que faz o pacto. Simula um jogo  como se fosse outro e não com  ele mesmo. Instiga-o a manifestar-se ao deixar o pensamento livre das fronteiras da ‘vida consciente’. Ele é, ao mesmo tempo, Dorian e o anjo decaído do Fausto. 

Com linguagem sempre em excesso e em falta, Wilde constrói para Dorian um espaço vizinho da morte; faixa tênue afastando-o do precipício. Encarnando todos os desejos realizados – e realizáveis -, o jovem regride ao infinito, torna-se capaz de fundir elementos aparentemente inconciliáveis do comportamento.

O Dorian retratado se aproxima do jovem pelo olhar e, ao mesmo tempo, o mantém longe e o separa dele. As diferenças se misturam. O retrato se oferece dividido, espaço que avança para que o jovem possa recuar, nervura do que não ‘existe’ tal como é. O jovem, então, experimenta a realidade vivida do avesso. As radiações de caráter variado fazem do imaginário, vida real; acomoda-se ao efêmero. Aventura-se no invisível, rechaçando o físico, o limitado. Essa suspensão temporal torna possível a aparição e existência de coisas fora da condição natural, como em sonhos crepusculares – afinal, a vida quer ilusão, ela vive de ilusão . Wilde faz Dorian habitar o extraordinário; atinge uma co-presença entre sentido e não senso. O esteta faz seu personagem ‘esquecer’ a fadiga do movimento linear, eliminando a memória. Retirado esse componente essencialmente humano, os modos de comportamento se tornam eclipsados. Dorian sai de si para conhecer-se. As recordações são ‘sopradas’ para o retrato. A estrada para a completa realização envolveria uma rejeição a padrões de idade e liberdade para todos os credos e sistemas. Há a patologia de uma nova idéia.  A vida seria produto de uma simulação e sua beleza não estaria ‘ameaçada’ pela moral: “de acordo com os psicólogos, há momentos em que o desejo do pecado, ou do que os homens chamam de pecado, domina de tal modo a nossa natureza, que cada fibra do corpo e cada célula do cérebro parecem movidos por impulsos terríveis. Em tal momento, os homens e as mulheres perdem sua liberdade e seu arbítrio. Dirigem-se como autômatos para seu fatal objetivo. O direito de escolher lhes é recusado e sua consciência está morta(...)” (WILDE, 2003,p. 198). Este corpo apaixonado deixa-se invadir. Ao escrever O retrato, Wilde abraça elementos do aterrorizante Melmoth, the Wanderer, do tio distante, guardando, no entanto, um quê de originalidade. Diz John Sloan em Oscar Wilde- authors in context:



  “(...)Maturin’s tale(...)begins with the young student Melmoth’s discovery in an unused room of a portrait of an evil Melmoth ancestor. Like Wilde’s Dorian, the figure in the painting has made a bargain with the devil whereby he can live without showing signs of ageing. In a melancholy ending, Melmoth returns to his native Ireland to die after more than a century of restless wanderings,having failed to find a kindred soul to share his fate(...)” .



Wilde adota o nome Melmoth ao sair da prisão, sabendo que viveria exilado – nunca voltaria à Irlanda ou à Inglaterra novamente. Com isso traça, juntamente com seu personagem, uma viagem para a imortalidade, “mais penosa e mais contrariada do que qualquer outra(...)e, no entanto(...)pode estar seguro de nela alcançar o seu próprio fim – porque só ele sabe permanecer nas asas abertas de todas as épocas(...)” (NIETZSCHE,2002, p.53).

 Sobre a história, apesar da aparente similaridade – a imediata interpretação é a de um pacto com o mal -, Wilde foi um tanto além: seu protagonista faz um pacto com ele mesmo para libertar seus desejos inconscientes. Não há como em Melmoth ou mesmo como no Fausto a menção de um acordo com a personificação do Mal. Tudo em torno de Dorian é de um silêncio enervante.  Há um suposto mediador, Lorde Henry, que passamos a considerar a seguir.

 A aclamada influência que Lorde Henry diz ter sobre Dorian – interpretação consentida por muitos críticos do texto, também -: “Havia algo de terrivelmente sedutor na ação daquela influência. Nenhuma outra atividade podia comparar-se a ela...transportar para outro o seu temperamento como um fluido sutil ou um estranho perfume(...)(WILDE, 2003,p.82)(...)Tentaria dominá-lo – na realidade, já o havia quase conseguido  - , tornaria seu aquele espírito maravilhoso. Havia algo de fascinante naquele filho do Amor e da Morte(...)” (WILDE, 2003,p.83), aproxima-se muito da de Mefistófeles em relação a Fausto. As palavras venenosas, pronunciadas sob um tom de oráculo, parecem insinuar para a ação quando, na verdade, apenas traduzem o que já se passava no coração. Lorde Henry, cético amável, refinado e corrompido deu a conhecer a Dorian  uma chama adormecida que ansiava por ser acesa: “(...)Aconteceram-lhe na infância coisas que não havia compreendido. Agora as compreendia. A vida pareceu-lhe, de repente, violentamente colorida. Pensou que até então andara entre o fogo. Por que não o soube nunca?” (WILDE, 2003,p.70).  O próprio Dorian conclui: “Seria realmente verdade que uma pessoa nunca pode mudar? Sentiu dentro de si um anelo ardente pela pureza imaculada da inocência(...)Tinha consciência de que ele mesmo a havia maculado e de que tinha também corrompido totalmente seu espírito(...)” (WILDE, 2003,p.221). Percebemos em Wotton, a voz do inconsciente na boca de um ‘anjo mau’ garantindo a opção já feita, por livre vontade, pelo protagonista. A ‘indução’ é, então, relativa. Como diz Nietzsche no aforismo 19 de A gaia ciência, “lançou uma frase no ar ao acaso, para se divertir, essa frase, apesar de tudo, fez cair uma mulher”(p.24). Esta ‘mulher’ que poderíamos interpretar no contexto de O retrato é a arte aliciando a vida, impulsionando-a a mudanças, faz com que o ‘papel’ de Lorde Henry seja apenas o de evitar que Dorian sucumba ao ‘enquadramento consciente’: “Atualmente você é o tipo perfeito. Não vá quebrar essa perfeição. No momento você é irrepreensível. Não, não negue(...)O mundo sempre nos censurou, mas a você sempre adorou. E sempre o adorará. Você é o tipo que nossa época procurava e que, todavia, receia ter encontrado. Alegro-me de que você nunca tenha feito nada: nem uma estátua, nem um quadro, enfim que não tenha produzido coisa alguma à exceção de você mesmo.” (WILDE, 2003,p.219). Lorde Henry dá a provar a alegria do poder; a volúpia da dominação que torna o indivíduo indiferente às conseqüências de seus atos. Dorian tornara-se o que era18 : para sempre ‘identificado’ por fora e eternamente estrangeiro, encoberto, declínio e ascensão, por dentro. Esta aparente decadência é poderoso estimulante em sua vida.  

Deliciando Wotton - que  observa o desenrolar da trama – recebe dele em dado momento,  um livro mais tarde identificado pelos críticos como sendo À Rebours de Huysmans: “seus olhos caíram sobre o livro amarelo(...)Que seria?(...)era o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os pecados do mundo, vestidos de maneira singular, desfilavam diante em mudo cortejo, ao som delicado de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado confusamente se tornavam repentinamente reais para ele(...).era uma novela sem enredo, com um só personagem, na realidade, um simples estudo psicológico de um jovem parisiense, que passava a vida tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e maneiras de pensar de todos os outros séculos(...)amando, pela própria irrealidade, aquelas renúncias que os homens chamam tolamente de virtude, bem como aquelas rebeliões naturais que os homens ainda chamam de pecado(...)era um livro cheio de veneno.” (WILDE,2003,p.149). Stephen Calloway, em seu Wilde and the dandysm of the senses comenta ter sido a primeira edição de Studies in the History of the Renaissance, de Walter Pater (especialmente a conclusão), o livro amarelo de Wilde.

(Atentamos aqui para um interessante detalhe – não comentado no texto: Dorian parece nunca dormir. O que nos faz crer que neste mundo de sonho em que se encaixou, não havia lugar para repouso, apenas para vivência de ardentes emoções. Vivência esta que não o caracterizava pela agitação da vida moderna. O intenso movimento interior somado ao ócio fazia-o ir a procura de prazeres).

A partir daí, a unidade da história cede lugar à independência de algumas páginas que, como caixas chinesas, umas dentro das outras, dão a noção de que a história contém e está contida em várias outras. Wilde desfila um catálogo de formas de elegância e perversidade, revelando-se um autêntico conhecedor de flores e jóias. Uma longa descrição que tem início no cap. XI, p. 155: “começou a estudar os perfumes e os segredos de sua fabricação(...)compreendeu que não havia nenhum estado de espírito que não tivesse correspondente na vida sensorial(...)” confirma a fascinação de Dorian pelo livro. A narrativa dentro da narrativa acentua o crescente apuro e sofisticação dos gostos do jovem, insinuando a passagem do tempo. Torna-se um colecionador cujo refinamento é medido pela raridade dos objetos que possui e pelos sentimentos artísticos que produzem.: “todas aquelas preciosidades que colecionava em sua bela habitação tão cheia de atrativos nada mais eram que recursos de que lançava mão para esquecer, para fugir(...)” (WILDE,2003,p.160). A casa passa a ser como uma espécie de cápsula. E cada objeto cuidadosamente guardado  é lembrança revivida, garantia do eterno retorno de todas as coisas.Seus gostos visam à sensação pura: ele ama o odor das flores, os objetos que pode apalpar – marfim, bronze, pedras preciosas, bordados, tapeçarias, sedas, veludos -, o que lhe dá a ilusão de conhecimento.  Lembramos aqui as palavras de Walter Benjamin em Charles Baudelaire- um lírico no auge do capitalismo:



“(...)concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando,assim, os seus vestígios,como a natureza preserva no granito uma fauna extinta(...)”.



A alma do jovem encena uma maneira de funcionar por si mesma, permitindo-se faculdades criadoras, matizes desconcertantes, já que a Dorian só restou o ‘esquecimento’ de todo e qualquer ato. Ele se distancia das próprias atrocidades como se fosse mero espectador. Seu mundo é ardente, feito de violência e fragilidade, ao mesmo tempo: “Poucos são aqueles dentre nós que muitas vezes não acordaram antes da aurora(...) dessas noites de horror ou de alegria monstruosa, quando, através dos escaninhos de nossa mente, deslizam fantasmas mais terríveis que a própria realidade, impulsionados por essa vida intensa que se esconde em tudo que é grotesco e que confere à arte gótica sua vitalidade profunda, uma vez que esta é, como se pode perceber, uma arte de indivíduos cuja mente foi perturbada pela enfermidade da  rêverie(...) A criação desses mundos é que parecia a Dorian Gray o verdadeiro, o único objetivo da vida(...)” (WILDE,2003,ps. 153/154) e oprimia-o a instância da realização.

Assim, a cada nova interpretação, uma de suas máscaras cai, mas surpreendentemente outras a substituem. Quanto mais o jovem parece se mostrar de si mesmo, mais ele se torna um eficiente enigma que, paradoxalmente ansiava por ser decifrado e deleitava-se com a impossibilidade de sê-lo. O elo com o retrato que possibilitara tudo isso, por vezes, parecia incomodá-lo: “Por um momento, pensou em rezar para que desaparecesse a terrível afinidade que existia entre ele e o retrato. Um pedido a produziu; quem sabe se novo pedido não a tornaria imutável(...)dependeria aquilo de sua vontade? Teria sido, realmente, o seu pedido que provocara aquela situação? Não haveria algum curioso processo científico que explicasse tudo aquilo? Se o pensamento podia exercer sua influência sobre um organismo vivo, não poderia exercê-la sobre as coisas mortas ou inorgânicas? Por sua vez, não poderiam as coisas exteriores a nós, destituídas de pensamento ou desejo consciente, vibrar em uníssono com nossos humores e paixões, já que o átomo atrai o átomo por um amor misterioso de estranha afinidade?” (WILDE, 2003,ps. 135/136). A ‘preocupação’, no entanto, não durava tanto.   



         Wilde não deixa claro qual ou quais seriam os ‘pecados’ de Dorian Gray.                            

            (Atrevemo-nos a considerar se Wilde saberia os pecados de Dorian Gray).

É-nos apresentado apenas o estado de amargura em que ficam todos os que dele se aproximavam ou que com ele conviveram. Diz o esteta que “cada qual vê seu próprio pecado em Dorian Gray. Ninguém sabe quais são  os pecados de Dorian Gray, Se alguém os descobrir, é que os trazia em si mesmo.” (WILDE, 2003, p. 1327).O vago e o indeterminado intensificam a incômoda atmosfera de curiosidade e aversão provocada no leitor. As suposições são feitas a partir de evidências ambíguas que provocam o leitor, mesmo que a ousadia da nomeação ou definição do ‘pecado’ não venha à mente. As possibilidades são diversas e isto pode ser sedutor e inevitavelmente assustador.

        

         Diz Borges em Os espelhos velados:



“(...)seu infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos, sua pantomima cósmica eram tão sobrenaturais desde que anoitecia...algumas vezes temi que começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo(...)” .





         Fazendo Dorian debruçar-se sobre seu outro, Wilde antecipa, não só as linhas que viriam para ele, como para todos os que se dispusessem – ou se abrissem – a uma reflexão sobre seu papel. A capacidade de comunicação proporcionada pela obra se acentua nas críticas negativas assim como nos elogios mais fervorosos.


O retrato de Dorian Gray, lido por nós em diferentes momentos da vida, guardará assustadoramente nossas marcas de expressão de alegria, ira, medo, morte e vida. Cada frase pode surpreender com a revelação de um segredo que quiséramos escondido ou alegremente desvendado. O romance é único porque é presente para cada leitor. Oferta para um tempo presente.

Belamente concebido, já que primeira manifestação de Wilde em condensar um estilo de vida que primasse pela aceitação do tudo em cada um, O retrato foi resumo do mundo. Do mundo novo que se insinuava em finais de século. Seu lado sombrio estava impregnado de luz. O retrato do fenômeno estético estava desenhado. Entretanto, só os eleitos poderiam percebê-lo e sentir o calor das páginas nutriria os corações preparados para a mudança. Dorian esboça um conflito, mas não põe termo à guerra. A idéia é terrível, doce e amarga. A grande virada estaria por vir, dependendo da reação dos leitores. Ontem. E ainda hoje, desestabiliza e convida o pensamento ‘consciente’ ao mesmo mergulho. O que move o protagonista e Wilde esperava que movesse os que leriam seu romance não é a perversidade – apesar dela estar necessariamente presente. O impulso é o do jogo que desperta. Aquele que aceita, afoga-se irremediavelmente na luz de uma alegria que faz descansar o corpo fatigado da luta contra si. O convite foi e continua sendo o deixar-se levar pela força e alegria inebriantes da vida. 
                     

O sussurro aos ouvidos ainda incomoda e instiga á ação. O vigor do texto se insinua na pele do leitor, embriagando uma vez mais os sentidos. Dorian Gray é mais do que atual: é real.




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