ALLEGRO
(um olhar sobre Sinfonia em amarelo de Oscar Wilde)
(texto publicado na Revista Garrafa-Faculdade de Letras-UFRJ)
Stella Maria Ferreira
“ ‘Estou sedento por encontrar um mestre na arte dos sons’,
dizia um inovador ao seu discípulo, ‘um mestre que pudesse
apreender os meus pensamentos e em seguida os traduzisse
na sua linguagem: desta forma eu atingiria melhor os ouvidos
e os corações dos homens...” (Nietzsche, 2004,p.101)
A arte alicia a vida e o convite chega precedido de uma música encantatória que,
continuamente, remete ao mistério para manter o intangível e o inesgotável murmúrio
das forças imaginativas. O indivíduo que se puser à escuta, que se descola de uma
existência marcada pela obviedade, disponibiliza-se a um jogo estético que destacará
sua personalidade singular. Ao que, ao contrário, não se deixa enlevar, só resta a pura
reprodução de modelos “fora de qualquer magia, de qualquer entusiasmo, como se fosse
natural, como se essa palavra que retorna fosse sempre rigorosamente adequada...”
(BARTHES, 2001, p.85). A obra artística, com a provocação da dança dos sentidos, traz
um colorido prazeroso em cada matiz rejeitando a repetição fossilizada.
Oscar Wilde, figurino sem par cuja corporeidade transbordava imagens de uma
vida dedicada exclusivamente à beleza, louva a ‘ação’ de certas cores como gestação
para este novo olhar, este compromisso com novas perspectivas. Para a névoa oriunda
de um mundo mergulhado na monotonia, o artista propõe frases curtas e densas que se
aplicam à epifania da embriaguez como caminho para uma existência em plenitude.
A proposital escolha do amarelo transgressor e do verde caótico a procura de uma
nova ordem fixam a embrionária opção wildiana pela renovação do conceito de
inexorabilidade do corpo. O ‘tempo’ insatisfatório é atravessado por rasgos de
eternidade. O aparente desequilíbrio, produto do devir, assegura, paradoxalmente, um
renovado equilíbrio que não se esgotaria diante de pré-concepções e cristalizações. A
consequência é uma estranha alegria que emana do sopro repetido destas cores. Alegria
que enlaça o leitor para que a vida individual seja ultrapassada a cada momento. Na
insistente repetição do amarelo e do verde, Wilde convida ao som dos movimentos da
sinfonia que formam, de fato, o circuito de instantes, de ‘agoras’ que é a vida. Esta
multiplicidade dos possíveis aproximaria o corpo percebido do corpo sonhado. O artista,
desejoso de evitar a perplexidade diante do não vivido, instaura a graça do espanto. O
irlandês acreditava ser dever de cada um dar uma forma –ainda que não a concebida de
maneira ortodoxa – ao caos. Diz ele, em carta de 1897 ao amigo Robert Ross:
“Do outro lado do muro da prisão há...árvores...que estão agora
cobrindo-se de brotos de um verde quase gritante. Sei perfeitamente
o que lhes sucede: encontram sua expressão...” (Wilde, 2003, p.1240).
Escrito em 1889, o poema Sinfonia em amarelo reluz pela simplicidade. Em cenas
cotidianas, Wilde insere elementos com a cor da revolta, do anseio por mudanças. Em
versos serpentinos, o poema é concebido para, da tragicidade que emana da monotonia,
chegar à alegria das oportunidades de escolha. Visitemos, enfim, o texto:
Um ônibus atravessa a ponte,
Borboleta amarela a deslizar,
E aqui e ali, algum passante
Parece um mosquito inquieto
Grandes barcaças cheias de amarelo feno
São impelidas para os cais sombrios,
E como um amarelo cachecol de seda
Pende ao longo do molhe de espessa névoa
Começam a secar as folhas amarelas
E dos olmos do Templo caem, girando,
E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido
Jaz como uma barra de enrugado jade.
O estilo impressionista é predominante. A transgressão imposta pelo amarelo
mostra o desejo do artista de sentir seu hálito contaminando todo o lugar ‘exigindo’ um
posicionamento acerca da ordem estabelecida. Dos três movimentos que uma sinfonia
tem, Wilde enfatiza na hora silenciosa o andante,obscuro, trágico, melancólico. Cada
indivíduo experimenta a dor e o que determinará uma vida de ‘tranqüilidade’ é como
passará deste para o próximo movimento.
Allegro neste poema está ainda implícito nas palavras, é a esperança nutrida pelo poeta;
allegro está dentro dele. A força do desejo, no entanto, explode para os 'eleitos'
– aqueles que se mantêm abertos, à deriva, à espera. O poeta vislumbra a beleza
dentro do disforme. Foi capaz de, sem cavar, perceber intensa luz e enigmático ar. A procura,
no entanto, ainda é do outro; a ele cabe o exemplo de quem re-emergiu, para tornar-se novo. Diz
Wilde mais tarde em O crítico como artista
“(ao poeta)...pertence a vida em sua absoluta e plena totalidade;
não somente a beleza que os homens vêem, mas a que ouvem;
não só a graça momentânea de forma ou a fugaz alegria da cor,
mas toda a esfera da sensação, o ciclo completo do pensamento...”(Wilde, 2003,p.1134)
Para tanto, Wilde elenca ícones de recriação: a borboleta, as flores amarelas da
estação e o rio para produzir o ritmo do poema. A borboleta a deslizar lembra o leitor do
esforço interior pelo qual se deve passar para que a beleza desabroche. De lagarta com
cor turva à dama de vestimenta colorida e leve, assim é o processo de desdobramento do
eu; camada após camada deixando que o fluido da vida nutra os membros de forma a
garantir perene liberdade. Logo de início, o ônibus que atravessa a ponte anima o poeta, toma um
impulso na corrente de sentimentos, mesmo em meio às perdas – afinal, este sofrimento já levara o
poeta à sublime abstenção de qualquer queixa. Ele espera pelas estações e deposita
neste momento crédito especial ao outono – tempo de recolhimento, para que nova vida
possa brotar. Após a queda das folhas, a visão se tornará mais límpida, menos
obscurecida pelos estereótipos. A alusão a esta estação satisfatória, já que de mudança,
faz-nos indagar do tempo musical em consonância ou dissonância com o tempo
cronológico. O tempo em Wilde é predominantemente interior, regido pela imaginação.
Esta pode e deve superar todo e qualquer empecilho, permitindo um constante
deslocamento, um exercício para o corpo insubmisso. Nesta desmesura, aposta na
fronteira para garantir o estado de exceção da arte. Daí, ser imprescindível a escolha
pela simultaneidade que, aflorando no tempo e no espaço, permite matizes de sons até
então impensados. A repetição do amarelo e do verde não nasce do tempo, ela é o
tempo(ver Fink, 1983).
As insistentes cores se aninham nos corações e esperam que, pelo
‘desconforto’, possam atingir resultados.
A resistência do ‘passante’, ‘inquieto mosquito’, contrasta com a ‘borboleta
amarela’, já transfigurada, plena da força da vida que espera e vence. O rio, acostumado
ao movimento contínuo das águas, que mudava sua constituição diariamente, observa
com curiosidade a névoa encantada. Enquanto isso, deseja também ser observado e que
o verde de suas águas seduza outros passantes. Ele leva as barcaças para os sombrios
cais e se deslumbra, com certeza, diante do contraste com a luz dos feixes de feno, que
quer envolver e aquecer os corações frios e sem destino. O Tâmisa, verde, é então,
testemunha e junto ao poeta aguarda o momento de revelação. O rio, em seu fluxo
constante, observa a ambiência caótica e este sentimento é abrilhantado pela cor. É o
mesmo do ensino de Heráclito, o sempre novo, o perseverante, posse que não se reduz
com o uso. É preciso olhá-lo e rir, descobrindo em si um herói e um insano, bailar em
suas águas como trocista, sem vergonha de experimentar a leveza que a vida social
negara.
As folhas que caem desenham também uma trilha a ser seguida pelos que se
dispuserem à aventura e jazem na rua – lugar de alma encantadora. Estas mesmas
folhas, como não imaginar, já transformadas em sua textura e sua cor pela estação, aos
pés do amado e precioso rio, tal qual narcisos, invejariam os homens capazes do
mergulho que resultaria em transmutação. A coragem de banhar-se no verde caótico e
recriar-se rumo a uma ordem – fato que se repetiria , pois “a criação tende a repetir-se”
(WILDE, 2003,p.1123) – está nos versos finais:
(...)
“E aos meus pés o Tâmisa verde-pálido
Jaz como uma barra de jade.”.
Wilde sabia que enquanto os indivíduos não expressassem seu verdadeiro ‘eu’
selariam um destino infiel ao elevado potencial a respeito da vida. Mantém, porém, um
espírito vago, um tom de indeterminação no texto para forçar seu leitor a entender a
mensagem de que a “virtude e a maldade são simplesmente para ele (artista) o que são
para o pintor as cores em sua palheta...Vê que por meio delas pode produzir-se certo
efeito artístico e produz...”
O amarelo procura envolver e seduzir semelhantes. O trabalho é árduo, avança
lentamente, o sofrimento é voluntário e, por isso, compensador. Ele sabe que não é fácil
ultrapassar a fronteira da consciência, mas se o ônibus atravessa uma ponte diariamente
haverá um instante em que a inconsciência chamará os indivíduos a entregarem-se à
embriaguez favorável a obstrução de todo e qualquer preconceito. A resposta está no
acolhimento estético de todas as coisas: “discernir a beleza de uma coisa é o mais alto
ponto a que podemos alcançar. Até mesmo um senso de cor é mais importante no
desenvolvimento do indivíduo do que um senso de bem e de mal...” (o crítico-p.1163).
A sociedade, dizia ele, primava pela emoção que levasse à ação e a arte queria a emoção
pela emoção. A sociedade existia simplesmente para concentrar energia humana
suficiente para assegurar a perpetuação de todas as coisas a partir de uma sadia
estabilidade. “As belas emoções estéreis que a arte desperta em nós são odiosas a seus
olhos e esse horrível ideal social domina com sua tirania tão por completo as pessoas...”
( WILDE, 2003, p.1143).
A visão desta cena captada por Wilde devia levar ao descanso daquele que escolhe
o sonho; daquele para quem deseja que nenhuma forma de pensamento seja estranha,
nenhuma emoção, obscura. Simpatizar com o pensamento: eis o segredo, pois, “a arte é
uma paixão e em matéria de arte o Pensamento está inevitavelmente colorido pela
emoção...” (WILDE, 2003,p.1152). A entrega ao poema é essencial e o que se espera é
que nada além dele povoe a mente; nada de preconceitos, preferências. Assim, a cor do
texto se mostrará, seu prodígio criará, enfim, um mundo mais real do que a própria
5 WILDE,2003, p.1327.
realidade, um sentimento sem limites se ‘imporá’. E este é o momento oportuno para o
‘grande salto’ em direção ao labirinto, que recusa a obviedade da linha reta. A
Sinfonia continua a ecoar aos ouvidos, “seus pastéis são fascinantes como
paradoxo...se não abriram os olhos aos cegos, deram, ao menos, grandes alentos aos
míopes...” (WILDE, 2003, p.1156). Para um artista como Wilde, o som da liberdade de
expressão só poderia vir por esta cor de energia, de uma luz inebriante, ao mesmo
tempo de Apolo e de Dionísio; cor de duas ‘faces’ que, no jogo estético, garante o allegro,
sequência sonora que desvela para cada indivíduo o que jaz em seu interior:
esta vontade de completitude, de experimentação das várias existências dentro de uma
mesma. A cor assegura a força da mascarada e, na fortaleza que emana da música que
só a ouvidos atentos se permite ‘descobrir’, Oscar Wilde ativa o mecanismo de um texto
que se quer diferença. Aí, neste instante, a Arte vence.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
:
BARTHES, R.
O prazer do texto. Lisboa: Edições70, 2001.
FINK, E.
A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
WILDE, O . Obra Completa. Rio de Janeiro; Nova Aguilar, 2003.
Tanta coisa pode-se extrair de um poema, através da maneira de senti-lo profundamente. Este, em especial enaltecido pelas cores, muito pode revelar.
ResponderExcluirSua interpretação é carregada de sentimento e convida-nos a percorrer um labirinto de emoções.
Bs,
Elisabeth
É isso,Elisabeth. Mesmo em meio a situações conflitantes, Wilde promovia um jogo multicolorido que visava uma diveritda reflexão. Até a próxima teia.
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