sexta-feira, 6 de julho de 2012

Chá literário III : Jorge Luis Borges, Oscar Wilde e eu


                                          No Aleph com Borges                                                   

(capítulo adaptado de minha tese) 


As vozes mutantes  de Borges e Wilde  propõem um jogo de luz com os temas do sonho – da imaginação -, da aparência – do duplo -, da biblioteca -, do jardim.

Como o irlandês, Borges fez do compromisso imaginativo, estratégia de percepção do mundo – o que deixa marcada a silhueta do pensador alemão - , palavras que devem ser ouvidas e não apenas lidas; seu silêncio estético grita na escrita.

Tendo nascido em 1899, apagar do século dezenove, o escritor argentino, tradutor do conto wildiano O Príncipe Feliz  aos nove anos de idade, configura no texto um mundo onde celebração, realidade, imaginário, tempo e espaço se confundem, ativando um dispositivo de espelhos conjugados em  .

Sobre este inventor de labirintos verbais, diz Ricardo Piglia em A arte de narrar:



Os contos de Borges têm a estrutura de um oráculo: há alguém que está ali para receber um relato, mas até o final não compreende que essa história é a sua(...)” .



Wilde conta narrando, Borges narra contando. Diria Nietzsche  acerca do encanto da imperfeição em A gaia ciência:



“Vejo aqui um escritor que, como tantas pessoas, seduz mais pelas suas imperfeições do que por tudo que sai elaborado e perfeito de suas mãos; pode mesmo dizer-se que a sua glória e a sua superioridade derivam da sua impotência em finalizar, mais do que do seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime a fundo aquilo que gostaria de dizer exatamente, aquilo que desejaria ter visto perfeitamente: parece ter havido nele um antegostode uma visão e nunca essa própria visão(...) mas dela lhe ficou, no fundo da alma, prodigioso desejo, e é nela que vai mergulhar a sua prodigiosa eloqüência: do desejo e da fome. É graças a ela que eleva aqueles que o ouvem acima da sua obra e de todas as ‘obras’, e lhes dá asas para subir mais alto do que normalmente os ouvidos alcançariam(...)”.



Nietzsche fala de si e sonha Borges que fala de Wilde.(...)” . O exercício de linguagem aproxima os três. O paradoxo como brinquedo de palavras – inegável herança wildiana – cria um segundo mundo que nomeia, sonha e olha o leitor, convidando-o a uma dança com uma nova e revolucionária ordem
         Borges, cego “acordou, olhou (já sem assombro) para as coisas indistintas que o cercavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe acontecera e que ele o enfrentara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Wilde, oitenta e poucos anos antes, cego para uma realidade que restringia, descendeu ao mundo hieroglífico – o livro – para desenhar no tempo – ou no não-tempo – sua figura: inconcebível, improvável; figura que formula incansavelmente perguntas cujas respostas vemos ou ouvimos em enigmas por entre espelhos. Wilde ‘lembra-se’ do fazedor de Borges. O argentino não precisa citar explicitamente o irlandês e, por isso, o convite é ao garimpo de nuances que o incansável escrutínio pelos livros do pai fez do jovem Jorge um herdeiro da memória que prova e aprova existências. Os livros agrupados emitem relações eternas com o belo neste refúgio. Borges tem a máscara de leitor que passou a prescindir do livro em si.

 A referência à cegueira de Homero, citada em O crítico como artista de Wilde poderia ser aplicada a este poeta:



“Tenho pensado por vezes que a história da cegueira de Homero tenha podido muito bem ser na realidade um mito artístico, criado em tempos de crítica, para recordar-nos, não só que um grande poeta é sempre um vidente, cujos olhos corporais vêem menos que

os da alma, mas que também é um cantor autêntico, construindo seu poema com música, repetindo para si indefinidamente cada verso até ter captado o segredo de sua nelodia, proferindo na escuridão palavras aladas de luz.”                           



Cada passo deste artista parece ser queda numa noite permanente. Na dualidade múltiplo x fragmentado e pluralidade x anulação, o leitor é levado a considerar o que poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que é apresentado estão cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação, desvios, enfim, tudo o que pode ‘facilitar’ outras opções de percepção.

         Assim é com o primeiro conto: BORGES E EU, contido em O Fazedor, de 1960. O autor se duplica num pacto silencioso de movimento circular que entendemos incorporar Dorian Gray. Tal mistura de sensações faz o autor questionar-se sobre quem seria : “não sei qual dos dois escreve esta página.”7 . O mergulho foi no Aleph, no depositário de todas as existências – as ‘reais’ e as ‘imaginárias’ , juntamente com a multiplicidade que cada uma engendra.



5.1.1.1. A literatura sobre a literatura: BORGES E EU



         Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas essas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.

         Não sei qual dos dois escreve esta página.



Borges tece sua narrativa porque o outro assim o permite. Esse retrato tem vida própria: caminha por Buenos Aires – a Londres latina -, gosta de relógios de areia – com o tempo infinitamente re-contado -, de mapas – território contido, compacto que abarca um todo -, da prosa do criador de O médico e o Monstro, das etimologias – de como a origem de uma palavra pode se perder ou levar alguém a perder-se -, do gosto do café – que remete ao prazer de uma conversa de amigo. Borges desempenha as preferências, faz delas características que o distinguem, enquanto que o outro se deixa levar por elas e, por isso, está destinado à perdição. Borges é o ator da vida do outro. As ações desempenhadas por vezes são as mesmas, o enredo, o mesmo, mas porque Borges é vaidoso, prima pela aparência e, por isso, encanta,existência. Borges queria sorver a vida a largos goles, entregava-se ao prazer . O outro, seguia, de longe, talvez invejoso, talvez admirador; haveria a mesma alegria em sua existência? Existiria ele, afinal? Percorreria ele a mesma trilha de Borges com o mesmo gozo? Exalaria a mesma tranquilidade?

Até aqui, até esta constatação, os dois parecem dois. “Eu permanecerei em Borges, não em mim...mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros.” . Entretanto, fala o narrador-personagem ou o Borges-ator? A prisão dos ‘eus’ de que fala Nietzsche, atinge este homem “de cima para baixo. Ao tentar se livrar de Borges, este se apropria de seus jogos com o tempo e com o infinito e o leva à prisão.

 A memória tem aqui papel de destaque. Nela as figuras são construídas para serem depois destruídas; é ‘lugar’ de transformações constantes, onde os eventos se desencadeiam de fora para dentro e vice-versa; solidão sempre re-inventada.

 O protagonista do romance wildiano escondia o retrato e só de quando em vez o descobria,  no conto, o outro deixa que Borges transite com ele, mesmo reconhecendo as inegáveis diferenças entre ambos. Estas não os separam, mas os mantêm unidos numa alquimia de interpretações. A ficcionalidade extrapola os limites da literatura e esta aparente contradição move uma rede que assume o universo como criação escrita, lida e experimentada a todo momento. Dorian encenara uma forma de ‘existir’ sem o retrato. O outro ainda sente Borges, não como sombra, mas como seu duplo caminhando a seu lado. Oscar Wilde, com o passar dos anos, lendo e estudando compulsivamente chegou a seu desejo maior: que o ‘eu ficcional’ e ele fosse um e o mesmo, artista e obra fundidos; obra de arte andarilha. Borges ainda questiona quem escreve as páginas , ele ou o outro. Chegara às portas de um delicioso confinamento do qual tentava fugir, mas que, no fundo, sabia dele necessitar como nutriente para seus ‘eus’. O médico precisa do monstro, Dorian precisa de seu retrato, Wilde precisa de seus personagens, Nietzsche precisa de suas vozes internas, Borges precisa de seu par. Eles precisam de mim, leitor, para que vivam e eu deles, para sobreviver. Eles vencem; eu me perco e me pergunto, mas por que escrever? E Borges me diz que escrevia para se livrar do texto.


A aceitação das diferentes ‘identidades’ assusta. Ser plural é admitir insegurança mas é também constituir força que rejeita o óbvio. Este ‘dilaceramento’ é esperança contra o esquecimento e única maneira de evitar a cicatrização  das feridas.
                A escrita borgiana oculta e revela o que acalenta: um coração despedaçado que tinha aos pés um abismo que não podia ver, mas que o observava incessantemente. A palavra, sua amante,  é meio inesgotável de multiplicar os caminhos e fugir por entre seus labirintos para evitar o regresso à uniformidade, afirmando cada vez mais o indeterminado. Borges confessou constantemente a não-verdade opondo aos valores habituais e sabia que esta estrada não ofereceria saída, nem para ele, nem para seus leitores. A linguagem o oprime e liberta, exige agudez de escuta, tato infalível, olfato delicado, audição sensível e visão colorida, dançante. Tendo, às vezes, a melancolia como insistente companheira, não deixa de questionar a linha e a entrelinha; o que ficou impresso no papel e o que seu outro escondeu. Mente labiríntica, correm os pensamentos e o conto descortina uma inusitada discussão entre a consciência e a inconsciência. As duas falam. Borges diz não saber quem vence na escrita. Arriscamos, apostando no inconsciente de um autor que transpirava arte. O não saber quem escreve é entrega, alívio e libertação. No aconchego da não-saída, seu destino é o labirinto.

2 comentários:

  1. Stella, percebo o quanto este texto tem a ver com o título dado por você a este site (nateiadaliteratura).
    Muito fascinante esta parte de sua tese, um condensado entre você e os autores , que se entrelaçam na teia, sugerindo paradoxos subentendidos, deixando aos leitores a tarefa de decifrar os jogos imaginativos expostos.
    Até mais, bjs
    Elisabeth Pinto

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  2. Maravilhoso comentário.Você percebeu precisamente o quanto um texto poético pode jogar com nosso imaginário. Obrigada. Bjs.

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