No Aleph com Borges
(capítulo adaptado de minha tese)
As vozes mutantes
de Borges e Wilde propõem um
jogo de luz com os temas do sonho – da imaginação -, da aparência – do duplo -,
da biblioteca -, do jardim.
Como o irlandês, Borges
fez do compromisso imaginativo, estratégia de percepção do mundo – o que deixa
marcada a silhueta do pensador alemão - , palavras que devem ser ouvidas e não
apenas lidas; seu silêncio estético grita na escrita.
Tendo nascido em
1899, apagar do século dezenove, o escritor argentino, tradutor do conto wildiano
O Príncipe Feliz aos nove anos de idade, configura no texto um
mundo onde celebração, realidade, imaginário, tempo e espaço se confundem,
ativando um dispositivo de espelhos conjugados em .
Sobre este inventor
de labirintos verbais, diz Ricardo Piglia em A arte de narrar:
“Os contos de Borges têm a estrutura
de um oráculo: há alguém que está ali para receber um relato, mas até o final
não compreende que essa história é a sua(...)” .
Wilde conta narrando,
Borges narra contando. Diria Nietzsche
acerca do encanto da imperfeição em A
gaia ciência:
“Vejo aqui um
escritor que, como tantas pessoas, seduz mais pelas suas imperfeições do que
por tudo que sai elaborado e perfeito de suas mãos; pode mesmo dizer-se que a
sua glória e a sua superioridade derivam da sua impotência em finalizar, mais
do que do seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime a fundo aquilo que
gostaria de dizer exatamente, aquilo que desejaria ter visto perfeitamente:
parece ter havido nele um antegostode uma visão e nunca essa própria visão(...)
mas dela lhe ficou, no fundo da alma, prodigioso desejo, e é nela que vai
mergulhar a sua prodigiosa eloqüência: do desejo e da fome. É graças a ela que
eleva aqueles que o ouvem acima da sua obra e de todas as ‘obras’, e lhes dá
asas para subir mais alto do que normalmente os ouvidos alcançariam(...)”.
Nietzsche fala de si
e sonha Borges que fala de Wilde.(...)” . O exercício de linguagem aproxima os três. O paradoxo como
brinquedo de palavras – inegável herança wildiana – cria um segundo mundo que
nomeia, sonha e olha o leitor, convidando-o a uma dança com uma nova e
revolucionária ordem
Borges, cego “acordou, olhou (já sem
assombro) para as coisas indistintas que o cercavam e inexplicavelmente sentiu,
como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe acontecera e
que ele o enfrentara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Wilde, oitenta e poucos anos antes, cego para uma
realidade que restringia, descendeu ao mundo hieroglífico – o livro – para
desenhar no tempo – ou no não-tempo – sua figura: inconcebível, improvável;
figura que formula incansavelmente perguntas cujas respostas vemos ou ouvimos
em enigmas por entre espelhos. Wilde ‘lembra-se’ do fazedor de Borges. O
argentino não precisa citar explicitamente o irlandês e, por isso, o convite é
ao garimpo de nuances que o incansável escrutínio pelos livros do pai fez do
jovem Jorge um herdeiro da memória que prova e aprova existências. Os livros
agrupados emitem relações eternas com o belo neste refúgio. Borges tem a
máscara de leitor que passou a prescindir do livro em si.
A referência à cegueira de Homero, citada em O crítico como artista de Wilde poderia
ser aplicada a este poeta:
“Tenho pensado por
vezes que a história da cegueira de Homero tenha podido muito bem ser na
realidade um mito artístico, criado em tempos de crítica, para recordar-nos,
não só que um grande poeta é sempre um vidente, cujos olhos corporais vêem
menos que
os da alma, mas
que também é um cantor autêntico, construindo seu poema com música, repetindo
para si indefinidamente cada verso até ter captado o segredo de sua nelodia,
proferindo na escuridão palavras aladas de luz.”
Cada passo deste
artista parece ser queda numa noite permanente. Na dualidade múltiplo x fragmentado e pluralidade x anulação, o leitor é levado a considerar o que
poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que é apresentado
estão cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação, desvios, enfim, tudo
o que pode ‘facilitar’ outras opções de percepção.
Assim é com o primeiro conto: BORGES E
EU, contido em O Fazedor, de 1960. O
autor se duplica num pacto silencioso de movimento circular que entendemos
incorporar Dorian Gray. Tal mistura de sensações faz o autor questionar-se
sobre quem seria : “não sei qual dos dois escreve esta página.”7 . O
mergulho foi no Aleph, no depositário de todas as existências – as ‘reais’ e as
‘imaginárias’ , juntamente com a multiplicidade que cada uma engendra.
5.1.1.1. A literatura
sobre a literatura: BORGES E EU
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas.
Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez mecanicamente, para olhar o
arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio
e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário
biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século
XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro
compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em
atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu
vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa
literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas
páginas válidas, mas essas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já
não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além
disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de
mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora
conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que
todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser
pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou
alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do
que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me
dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o
infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras
coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento,
ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta
página.
Borges tece sua
narrativa porque o outro assim o permite. Esse retrato tem vida própria:
caminha por Buenos Aires – a Londres latina -, gosta de relógios de areia – com
o tempo infinitamente re-contado -, de mapas – território contido, compacto que
abarca um todo -, da prosa do criador de O
médico e o Monstro, das etimologias – de como a origem de uma palavra pode
se perder ou levar alguém a perder-se -, do gosto do café – que remete ao
prazer de uma conversa de amigo. Borges desempenha as preferências, faz delas
características que o distinguem, enquanto que o outro se deixa levar por elas
e, por isso, está destinado à perdição. Borges é o ator da vida do outro. As
ações desempenhadas por vezes são as mesmas, o enredo, o mesmo, mas porque
Borges é vaidoso, prima pela aparência e, por isso, encanta,existência. Borges
queria sorver a vida a largos goles, entregava-se ao prazer
. O outro, seguia, de longe, talvez invejoso, talvez admirador; haveria a mesma
alegria em sua existência? Existiria ele, afinal? Percorreria ele a mesma
trilha de Borges com o mesmo gozo? Exalaria a mesma tranquilidade?
Até aqui, até esta
constatação, os dois parecem dois. “Eu permanecerei em Borges, não em mim...mas
me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros.” . Entretanto, fala
o narrador-personagem ou o Borges-ator? A prisão dos ‘eus’ de que fala
Nietzsche, atinge este homem “de cima para baixo.
Ao tentar se livrar de Borges, este se apropria de seus jogos com o tempo e com
o infinito e o leva à prisão.
A memória tem aqui papel de destaque. Nela as
figuras são construídas para serem depois destruídas; é ‘lugar’ de
transformações constantes, onde os eventos se desencadeiam de fora para dentro
e vice-versa; solidão sempre re-inventada.
O protagonista do romance wildiano escondia o
retrato e só de quando em vez o descobria, no conto, o outro deixa que Borges transite
com ele, mesmo reconhecendo as inegáveis diferenças entre ambos. Estas não os
separam, mas os mantêm unidos numa alquimia de interpretações. A ficcionalidade
extrapola os limites da literatura e esta aparente contradição move uma rede
que assume o universo como criação escrita, lida e experimentada a todo
momento. Dorian encenara uma forma de ‘existir’ sem o retrato. O outro ainda
sente Borges, não como sombra, mas como seu duplo caminhando a seu lado. Oscar
Wilde, com o passar dos anos, lendo e estudando compulsivamente chegou a seu
desejo maior: que o ‘eu ficcional’ e ele fosse um e o mesmo, artista e obra
fundidos; obra de arte andarilha. Borges ainda questiona quem escreve as páginas
, ele ou o outro. Chegara às portas de um delicioso confinamento do qual
tentava fugir, mas que, no fundo, sabia dele necessitar como nutriente para
seus ‘eus’. O médico precisa do monstro, Dorian precisa de seu retrato, Wilde
precisa de seus personagens, Nietzsche precisa de suas vozes internas, Borges
precisa de seu par. Eles precisam de mim, leitor, para que vivam e eu deles,
para sobreviver. Eles vencem; eu me perco e me pergunto, mas por que escrever?
E Borges me diz que escrevia para se livrar do texto.
A aceitação das
diferentes ‘identidades’ assusta. Ser plural é admitir insegurança mas é também
constituir força que rejeita o óbvio. Este ‘dilaceramento’ é esperança contra o
esquecimento e única maneira de evitar a cicatrização das feridas.
A escrita borgiana oculta e revela o que acalenta: um
coração despedaçado que tinha aos pés um abismo que não podia ver, mas que o
observava incessantemente. A palavra, sua amante, é meio inesgotável de multiplicar os caminhos
e fugir por entre seus labirintos para evitar o regresso à uniformidade,
afirmando cada vez mais o indeterminado. Borges confessou constantemente a
não-verdade opondo aos valores habituais e sabia que esta estrada não ofereceria
saída, nem para ele, nem para seus leitores. A linguagem o oprime e liberta,
exige agudez de escuta, tato infalível, olfato delicado, audição sensível e
visão colorida, dançante. Tendo, às vezes, a melancolia como insistente
companheira, não deixa de questionar a linha e a entrelinha; o que ficou
impresso no papel e o que seu outro escondeu. Mente labiríntica, correm os
pensamentos e o conto descortina uma inusitada discussão entre a consciência e
a inconsciência. As duas falam. Borges diz não saber quem vence na escrita.
Arriscamos, apostando no inconsciente de um autor que transpirava arte. O não saber
quem escreve é entrega, alívio e libertação. No aconchego da não-saída, seu
destino é o labirinto.
Stella, percebo o quanto este texto tem a ver com o título dado por você a este site (nateiadaliteratura).
ResponderExcluirMuito fascinante esta parte de sua tese, um condensado entre você e os autores , que se entrelaçam na teia, sugerindo paradoxos subentendidos, deixando aos leitores a tarefa de decifrar os jogos imaginativos expostos.
Até mais, bjs
Elisabeth Pinto
Maravilhoso comentário.Você percebeu precisamente o quanto um texto poético pode jogar com nosso imaginário. Obrigada. Bjs.
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