quarta-feira, 30 de maio de 2012

De Guardador de existências

                                             As viagens de Alexandre Herculano

                                             Passeiam pelos olhos de minha memória

                                             A passos largos

                                             Das muralhas

                                             Dos pórticos

                                             Dos açudes

                                             Das colinas

                                             Essa voz aventureira

                                             Ouve, ausculta,

                                             Anuncia um cenário

                                             De luz e treva

                                             De medos e certezas

                                             De glória e ruína

                                             Do humano demasiadamente humano


Food for thought II

Oscar Wilde:

  "To recognize  that the soul of a  man is unknowable is the ultimate achievement of Wisdom. The final

mystery is oneself. When one has weighed the sun in a balance, and measured the steps of the moon,

 and mapped out the seven heavens star by star, there still remains oneself. Who can calculate the orbit

of his own soul.".

  Somos adoráveis mistérios!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Guardador de existências

 Guardador de existências nasceu da vontade de homenagear alguns dos escritores que marcaram minha vida. É uma coletânea de poemas em prosa e aí está mais um:


                               O tapete persa revela o mundo num jardim.
                          O todo no pouco.
                          Fio a fio.
                          A resposta em cada ponto.
                          Roteiro para o livro de Lorde Henry Wotton,
                          Palavras desafiadoras para uma vida devotada ao Belo.

                          Ficcionalizando-se,
                          Wilde caminhou por escombros,
                          Pés na sarjeta,
                          Olhos nas estrelas.
                          Em luta com o ordinário,
                          Avançando pelas fronteiras,
                          Desconhecendo barreiras,
                          Numa existência paralela,
                          Inútil,
                          Vazia de razão,
                          Transbordante de imaginação.
                          Poética

sábado, 26 de maio de 2012

O João do Rio I




                                






ALMA  ENCANTADORAMENTE  POÉTICA



                                                                                Stella Maria Ferreira





                                            Dedicatória



À João do Rio, leitor de olhos imaginativos cujo discurso ‘alternativo’ tornou a percepção mais extensa e intensa; que escalou o zênite de cada dia entre a aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito era o infinito, são dedicadas estas páginas de simplicidade. 









O que confere ‘nobreza’(...)é a coragem sem o desejo

                                                                     das  honras; é  um  contentamento de si  mesmo  que

                                                                     transborda e se prodigaliza aos homens e às coisas(...)”1.



Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada personagem, o que não acontece na vida.

 A força de uma vida que se renda definitivamente à Arte a ponto de confundir-se com ela parece ter sido o caminho buscado por alguns escritores de final do século XIX, que viveram sob a égide do colapso das expectativas. O texto resultante desta experiência não se caracteriza pela precisão e se diverte com uma lógica circular, já que indiferente ao avanço do tempo. As linhas escarlates e serpentinas que se seguem deslizam do papel para destacar o traçado de palavras que comporta sinuosidades desconcertantes de contraditória maestria. É texto de quem do cotidiano faz o extraordinário ao deixar-se ser arte, ou antes, deixar-se ser, pura e simplesmente. É tensão constante de quem toma o risco de inventar-se a cada dia, de desfazer-se de chaves sem descanso, sem repouso; é fruto da vertigem de quem se vê preso por querer numa teia que atrai porque assusta e surpreende.

         O deslocamento expatria este artista; sujeito e objeto se confundem em uma existência cujo fim é o de eliminar a distância entre o fazer poético e o viver poético. É escrita de quem se vê nos outros. Assim, perdido na tradução dos signos, o cronista-poeta procura um ‘lugar’, sabendo-se espectador e ator. Sua é a linguagem que remete para si mesma de maneira infinita, entreabrindo-se e sendo direcionada pela musicalidade das palavras a partir de suas sílabas.

         Joe, José Antônio José,João Coelho, Caran D’Ache, Simeão e, por fim, João Paulo Alberto Coelho Barreto  -  tendo nascido em 5 de agosto de 1881 - registra-se definitivamente na história literária de finais do século XIX como João do Rio. A cidade que mereceu seu atento olhar, sua crítica ferina e seu amor incondicional teve, afinal, a alma do artista. A ela ele se entregou e este dramático enlace rendeu aos leitores escritos atormentados, elegantes, sensuais, paradoxais, sutis e bizarros.

Palco de amores e dissabores, as ruas do Rio de Janeiro finissecular ganham nas mãos de João um colorido de sangue e o encanto da escrita é resultado da observação de amante de olhar transitivo, que reconhece por entre as montras a estranha beleza do escombro. Frente à modernidade, torna-se um pensador da cidade – um leitor de seus signos – e, desejando ir aos extremos, fugindo do corriqueiro, quer contar uma capital que acelera o seu ritmo projetando-se para o mundo.

            O fio aglutinador dos textos de João do Rio é um painel que não se curva ao cotidiano e que, pela verticalidade, preenche incontrolavelmente qualquer rigidez com leveza e alegria interior, divertindo os espíritos ansiosos por surpresas. Das cinzas que atapetavam os primeiros anos do século XIX, João manteve um espaço mágico para a eternidade de vida que desejava ganhar, procurando ocultar, sim, qualquer sentença de morte que insistisse em se introduzir no gosto de vida de seus textos, que como esconderijo, ofertava.

            Cheio de boas intenções, João lidou com a alegria e a morte, aparentemente com o mesmo ardor. Seu esforço foi em direção à uma escritura que se constituísse diferença; transgressão que apontasse para as várias máscaras refletidas no prazer instaurador de uma nova visão para o corpus. Textos destruidores da forma cristalizada, que se distinguem pelo que possuem, bem como pelo que excluem. A serviço da in-consciência, batalham pela constante interrogação acerca dos vazios. Apesar de estar inserido num conturbado momento  histórico, João não se deixou vincular ou depender, produzindo em sua escrita efeitos encantatórios sobre o que pode um corpo.

 Paulo Barreto promoveu uma arquitetura outra para a cidade maravilhosa em inícios do século XX. Suas crônicas e contos reconstituiriam o charme da cidade que se buscava maquilada em Paris. Diz Renato Cordeiro Gomes em João do Rio – Vielas do vício, ruas da graça :



       A cidade do Rio de Janeiro, também em metamorfose como um palco em que se monta uma máscara – figurino de uma mistificação do moderno -, convoca o artista para representar travestido de jornalista. Estilizando a experiência que se atrela ao trabalho, Paulo Barreto, aliás João do Rio, impõe-se a criação de ficções tratadas como se fossem verdadeiras, graças à utilidade prática dessas criações, máscaras como parte indispensável da vida (...) – ele pode falar em nome da cidade, na escrita que também é máscara.”2



 Das lentes deste observador irônico, teríamos a fotografia em perspectivas do real cotidiano carioca. Multiplicou-se para sentir e tingir sua ação estilizada num mundo dogmatizado. Psicólogo urbano, sua crônica poética foi subversão porque não fundada na cronologia, mas no tempo da imaginação que é um – o do instante, o do agora. Ao perambular pela rua em busca de histórias, exercita seu texto como movimento circular, eternamente único; a importância originária do tempo marcado cede lugar a uma crítica que escrutiniza o dia-a-dia, ameaçando e desestruturando a ordem, ficcionalizando o real. Da experiência de observador, amplia a ação como contista. Optando pela experiência do corpo como escritura, mistura-se a indivíduos apressados e a flânerie ganha o charme e toque cariocas: “é vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas(...)”3 .

         A coleção de instantâneos coletados na rua resultou em A alma encantadora das ruas4 e, assim, na esteira de Wilde, perfeito dândi, oferece ao público um cenário poético para uma cidade cheia de contrastes: “(...)nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor pela rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas(...)” (p.3).*

         O passeio pelas páginas parecem corresponder à nossa memória sonhada de como Oscar Wilde, espírito viajante, deveria se deliciar “falando aos notáveis e aos humildes com doçura(...)conhecendo cada rua(...)cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos(...)” (p.6), ou mesmo em silêncio, pensando com os pés, como Nietzsche, afinal, “(...)a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões(...)” (p.18). A voz deste narrador, “como o flanêur buscando um flagrante, confere agilidade ao relato, que se desenvolve espontaneamente em tom de conversa descontraída.” (MESSER, 2002,p.xvi).

            1.1. Almas  encantadoras



Das muitas visitas aos caminhantes ( mercadores de livros, músicos ambulantes, cocheiros...), nossa atenção recai sobre as mulheres: as Mariposas do luxo5 que, surgem no momento, “em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia(...)” (p.101). Os relógios batem seis horas, “na artéria estreita cai a luz acizentada das primeiras sombras.” (p.101), e então as raparigas, operárias surgem, devagar, “quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando(...)” (p.102). São trabalhadoras que após horas de árdua labuta passam parecendo pássaros assustados, “tontos de luxo, inebriados de olhar(...)” (p.102). Olham o que possivelmente nunca chegaram a comprar, olham o que seu trabalho permite que outras mulheres vistam e usem; “são as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca(...)e então, todo dia, (...)haveis de vê-las passar(...)A mocidade dá-lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito de andar...os vestidos são pobres(...)mas essa miséria é limpa(...)” (p.102). Paradoxalmente belas, donas de direito do luxo que a outros proporcionam, têm na rua a oferta do “foco em torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas(...)” (p.102). A rua é seu lugar de sonho, onde as cores mais variadas quase ofuscam o olhar curioso e ávido de vida. As montras “de rendas, montras de perfumes, montras de toilettes, montras de flores – a chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las(...)” (p.104). Na hora indecisa, imprecisa em seus contornos de luz, estas mulheres experimentavam-se sedutoras: “morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes nega na polidez espelhante dos vidros(...)” (p.103). O brilho alucinante das vitrines, arco-íris furta-cor, fazia o contorno de seus corpos dançarem, cobrindo e descobrindo uma alegria quase infantil, mas com o toque essencial da malícia de Salomé: “a alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante dos adereços(...)” (p.104). À dançarina dos sete véus nada se negava e seu tédio só fora aplacado diante daquele que não se deixara encantar. À estas moças, tudo fora negado em nome do progresso e da modernidade. Seu tédio, no entanto, se aliviava com o sonho e o desejo do mundo ‘irreal’; do  mundo das impossibilidades, do mundo da pura beleza. A noite, hora reveladora para os decadentistas, hora dos desejos proibidos era o palco perfeito para elas, prontas para uma

cena já desenhada inúmeras vezes na mente, com as linhas memorizadas.  Mas, “um suspiro mais forte – a coragem da que se libertou da hipnose – fá-las desapegar-se do lugar(...) A rua delira de novo...Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito tempo(...)” (p.105). O banhar-se no mar da imaginação traz uma alegria febril que ‘precisa’ ser interrompida pelo movimento da consciência. Para que se restabeleça a ‘ordem’ é preciso que elas se ‘vejam’ novamente que “a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano, senão a miragem do esplendor(...)” (p.105). O lugar do pensamento, hora ociosa, era cada vez mais sufocado pela necessidade de produzir, de lucrar. E, João, um tanto melancólico, finaliza, “e haveis de vê-las passar, as mariposas do Luxo, no seu passinho modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas(...)” (p.105), para um destino que o artista gritava não ser o de ninguém. A sobrevivência dependia da condução da vida como arte, pura e simplesmente manifestação artística. O tom leva a marca do wildiano A alma do homem sob o socialismo que reclamava para cada indivíduo uma situação econômica confortável que lhe garantisse a realização de todo o seu potencial criativo. Só numa sociedade em que os direitos e acessos fossem comuns poderia a vida se compor como obra de arte que é. João do Rio, ao trazer “a crônica viva dos seres que se movimentavam no centro cultural do Brasil e o habitavam nas primeiras décadas do século XX” (MESSER, 2002,introdução-p.xxxv), paradoxalmente desmascara e seduz, quando ressalta a vulnerabilidade do senso comum e a arte como pungente resposta de desconstrução para que as paixões mais íntimas pudessem ser reveladas. As moças voam por sobre um real por elas sustentado – com o árduo trabalho – e a elas negado. Se não dispunham de tempo para sonhar porque eram constantemente interrompidas pela culpa do desperdício, como poderiam exercitar no pensamento uma vida mais plena. A urgência da hora de escapar ao constrangimento de olhares acusadores prevenia as jovens de gozar da liberdade a que foram destinadas. Escravas do lucro, elas acorrentavam os anseios do presente em nome de um futuro que poderia nunca chegar.

         Pelos labirintos de uma escrita de delícias, João do Rio afirmava e reafirmava continuamente a imperfeição de quem direciona sua vida pela consciência, sepultando os instintos, condenando seu progresso pessoal. O corpo de João também foi sulcado pela força da pena; ele também foi um condenado que descobriu a alegria destes grilhões libertadores e, nós, os premiados leitores, só tivemos a ganhar com sua criação que emanou de sua obra.















                                 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



COUTINHO,L.E.B; CORRÊA, I.E.J. O labirinto finissecular e as idéias do esteta.RJ:

7 Letras,2004.



GOMES, R.C.João do Rio -  vielas do vício, ruas da graça.RJ: Relume Dumará, 1996.



MESSER, O. A cidade e a modernidade: João do Rio.Campinas: Remate de Males, 1990.


RIO,J.do. A alma encantadora das ruas. RJ: Secretaria Municipal de Cultura, 1987.


1 NIETZSCHE, 2004, p.70- aforismo 55
2 GOMES, R.C., 1996,p.49
3 RIO,J. do, 1987, p.5.
4 Ibidem.
* Todas as páginas apresentadas entre parênteses a seguir são parte de A alma encantadora das ruas.
5 Em ibidem.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Wilde I


                           Um olhar  sobre  De Profundis 

                      Carta escrita  por oscar wilde  na prisão

                               (parte de minha tese de Doutorado)                                               

                           “A desventura de hoje não é mais real que a ventura pretérita.”



         No primeiro ano de reclusão, os rigores do sistema penitenciário foram impiedosamente aplicados a Wilde. Tinha que confeccionar certa quantidade de estopa ou suportar a punição de fazer girar com seus companheiros a roda que alimentava de água a casa de detenção. O isolamento na cela, cruel o bastante para conduzi-lo a um sanatório, era aliviado por um número limitado de livros trazido por amigos, liberados certamente após censura. Os anos dourados pareciam irremediavelmente deixados para trás. Proibido de escrever na prisão a não ser cartas (e, mais tarde, mostra-se profundamente agradecido ao novo diretor da prisão por permitir a ele a expressão: “para um artista, o supremo e único modo de vida” – WILDE, 2003,p.1340), o prisioneiro da cela 3 da plataforma 3 da galeria C pintou o gênero epistolar com cores cinzentas, que o mundo agradeceu com profusão. O título – aparecido cinco anos após a morte do artista – tomado de empréstimo do Salmo CXXX: “Do fundo do abismo eu grito à ti!” é relato pungente sobre as causas e conseqüências de sua reclusão – e exclusão -, vida de imobilidade paralisante, eternamente ou ordenada sobre um rígido modelo. De Profundis é tocante, exercício novo uma vez mais – o abandono, não às aventuras, mas o do paria, para quem só há uma estação: a estação da dor.

          Na solitária onde reina um eterno crepúsculo, a falta de dias de Sol aperta o coração.  Apesar disso, no decorrer do texto, a dolorosa confissão, aparente fraqueza, se mostra em superioridade, sem receio e o branco de uma paz alentadora invade e envolve o escrito. A extenuante viagem é atenuada pela alegria que conduz ao profundo abismo para reerguê-lo depois. Pela obra literária que foi sua vida, descobriu-se e ultrapassou-se. O pântano da hipocrisia é vencido pela flor da regeneração. O esteta despedaçara-se para reconstituir-se ao infinito. De Profundis torna-se, assim, um extenso monólogo afetado no estilo pela ausência de público. O caráter confidencial, confessional, naturalmente conferido às cartas dá um novo tom para esta obra artística: “Agora percebo perfeitamente o que há em mim e vejo com clareza o que devo fazer. E quando digo isto, não me refiro a nenhuma ordem nem sanção externas, inadmissíveis para mim. Sou, mais do que nunca, individualista. Não há nada que alcance mais valor que aquilo que sai de nós mesmos(...)” (WILDE, 2003,p.1390). Retira ou veste uma máscara? Isto não parece importar: “o ter saudades das próprias experiências é atalhar a evolução de si próprio. Abjurá-las é colocar uma mentira nos lábios. É nada menos que renegar a alma(...)” (WILDE, 2003,p.1392). Derrotado e vencedor, que veio “(...)não da obscuridade para a notoriedade momentânea do crime, mas de uma espécie de eternidade da glória para a eterna infâmia” (WILDE,2003, p. 1393), Wilde, num exercício catártico, produziu um texto de beleza arrebatadora, intrigante, que transformou a esterilidade da dor em auto-realização – “não tropeçarei com dificuldades, porque quando se deseja amar, o amor costuma estar esperando.” (WILDE,2003, p. 1390). No deserto, refaz o percurso ainda uma vez, registrando os caprichos e escrevendo a crônica da prolongada dor para quem o tempo não progride, é circulo de angústia: “lá fora, o dia pode ser azul e ouro; mas a claridade que se filtra através do vidro embaciado da janela gradeada sob a qual estamos sentados é cinzenta e mísera”. (WILDE, 2003,p.1380). Esta estranha palpitação, no entanto, foi resposta das mais suaves, tornou-se “ folha de ouro” que registrou forças invisíveis que o fizeram superar o período de profundo contrangimento.

          Das profundezas dessa dor, cor esmaecida do uniforme de detento, dos olhos marejados, dos cabelos mal-tratados não evitou que se entrevisse a luminosidade de sua figura. Apolo traz o equilíbrio silencioso para Dionísio. O deus intempestivo abraça o deus da temperança, inundando o espírito do esteta de uma calma diferente. O drama se desenrola na ausência de platéia, o que dá um tom bem diverso de ‘conversação’. Wilde fala consigo mesmo; fala, diretamente com suas máscaras, sem a interferência do público. As diversas vozes travam um combate que deveria durar pelo menos dois anos. De Profundis é  processo doloroso, mas de preclara lucidez; suscinto e denso. Diz ele: “os homens cujo desejo consiste unicamente em realizarem-se a si mesmos não sabem nunca aonde vão. Nem podem sabê-lo(...)reconhecer que a alma humana é desconhecida é a suprema realização da sabedoria. O mistério final reside na gente mesmo. Quando se pesou o sol na balança, quando se mediram os passos da lua e desenhou o mapa dos sete céus, estrela por estrela, ainda resta o nosso próprio ser. Quem pode calcular a órbita de sua alma?(...)” (WILDE, 2003,p.1411). Esta ‘descoberta’ faria toda a diferença e facilitaria a aceitação de Tudo. Em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou os instantes de mais ou menos quarenta anos, passou a experimentar a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão: “não há verdade comparável com a dor e há momentos em que penso que a dor é a única verdade possível...da dor surgiram os mundos e sempre houve sofrimento ao nascer uma criança ou uma estrela(...)” (WILDE, 2003,p. 1396). “O supremo vício é a estreiteza de espírito” (WILDE, 2003,p.1344), por isso, analisa ao longo de todo texto as brechas que deixou e que vieram facilitar interferências em sua caminhada pelas linhas da imaginação: “A debilidade é nada menos que um crime, quando essa debilidade é a que paralisa a imaginação.” (WILDE, 2003,p.1346). A chave para a filosofia a que se propunha, brilhante, encantadora, trivial, fora  posta de lado e os ouvidos se fecharam a voz das sereias e os olhos perderam o colorido da visão, passando a acompanhá-lo uma sombra diferente no instante em que se volta à sociedade que tanto criticara, forçando-se a entabular um processo contra o Marquês Queensberry. E “a linguagem deve ser afinada como um violino e assim como uma vibração excessiva, demasiado débil, na voz do cantor, ou o tremor das cordas fazem que o tom não seja de todo puro, de igual modo um excesso, uma falta de palavras altera aquilo que a gente quer exprimir(...)” (WILDE, 2003,p.1426).

Entretanto, refuta a renúncia ao mundo que conquistara; a liberdade viria de outra constatação: ‘o amor, qualquer que seja sua categoria(...)”(WILDE, 2003,p. 1397). Compreendeu que “a única coisa que poderia fazer era aceitar tudo. Desde então, por estranho que pareça, tenho sido mais feliz(...)” (WILDE, 2003,p.1402). Esta adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem moderno e fez com que acreditasse que algo se introduziria em sua obra: “uma plena memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” Notório o impacto do pessimismo e o surpreendente ultrapassamento. De costas para a acomodação, é auxiliado pela música questionadora que insiste em envolver o indivíduo. A dor foi grande, mas fez um pacto com as auroras.

         O texto que fala de morte, para a morte e contra ela, busca, se não detê-la, dominá-la, fazendo prevalecer um novo som que se reduplica ininterruptamente. Chegando até o extremo da dor pelo relato do passado, colocando cuidadosamente todas as configurações eventuais, abre caminho novo. Escrevendo sobre seus infortúnios, Wilde caminha se endereçando para a morte, mas a ‘inquebrantável’ sofre duro golpe: o extravasamento de vida  faz desfalecer a inimiga. O ruído crescente e inevitável da morte é abafado pela literatura. Reconhece, porém, que a nova entrada no mundo, após cumprimento da pena não será mais festiva; passará de uma prisão para outra, como comenta com Robert Ross (em uma carta de 1897, enviada juntamente com a Epistola in Carcere et Vinculis) e também nas derradeiras palavras da Epistola: “A sociedade, tal como a construímos, não terá lugar para mim, nem tem lugar nenhum para oferecer-me...” (WILDE, 2003,p.1435). Nutre, no entanto, esperança que o sofrimento não pôde apagar: “Não temas o passado. Se as pessoas te disserem que é irrevogável, não o creias. O passado, o presente e o futuro são tão-somente um momento aos olhos de Deus(...)O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão são unicamente simples condições acidentais do pensamento(...)” (WILDE, 2003,p.1437). De onde se percebe uma obstrução, a força da inconsciência tem poder de afetar e produzir uma outra fala. Ainda em uma carta de 1897 a Ross, exprime a gratidão ao Diretor da prisão por tê-lo concedido expressar-se, “(...)Durante quase dois anos tive dentro de mim um fardo crescente de amargura, do qual me desembaracei agora em grande parte. Do outro lado do muro da prisão há umas pobres árvores, enegrecidas pela fuligem, que estão agora cobrindo-se de brotos de um verde quase gritante. Sei perfeitamente o que lhes sucede: encontram sua expressão.” (WILDE, 2003,p.1340). Esculpe sobre essa nova pele a reconciliação entre o externo e o interno, combinação para um homem de gênio: “Costumavam dizer que eu era demasiado individualista. Agora mais do que nunca, terei de sê-lo. Devo extrair de mim mesmo mais do que até agora retirei e exigi do mundo, menos do que nunca lhe pedi. Na realidade, minha ruína não se deveu a um excessivo individualismo, mas a demasiado pouco(...)” (WILDE, 2003,p.1415).

         As inúmeras viagens que fizera levaram-no a um certo conhecimento de si que foi sedimentado com a prisão. Olhos fixos nas paredes nuas da cela, pôde vagar pelas câmaras da mente, experimentando na solidão a intensidade da vida. Chegar ao limiar da loucura foi o que precisara para solidificar sua lucidez e ao entender isto destaca Hamlet: “no drama nada conheço de comparável, do ponto de vista da arte(...)que o desenho que traça Shakespeare de Rosencratz e Guildenstern. São amigos de escola de Hamlet, guardam consigo a lembrança dos deliciosos dias que passaram juntos. No momento em que, na peça, se encontram com Hamlet, cambaleia este sob o peso de um fardo insuportável para um homem de seu temperamento. O morto saiu armado de seu sepulcro para impor-lhe uma missão que é, ao mesmo tempo, demasiado grande e demasiado mesquinha para ele. É um sonhador e se arrasta para a ação.Possui o temperamento de um poeta e se lhe pede que lute(...)coisa absolutamente por ele ignorada(...)Não tem idéia do que deve fazer e sua loucura consiste em simular a loucura(...)mas a loucura de Hamlet é uma simples máscara para dissimular sua debilidade(...)Obstina-se em brincar com a ação, como o artista com a teoria É o espião de seus próprios atos e escutando suas próprias palavras...em vez de tentar ser o herói de sua própria história, tenta ser o espectador de sua própria tragédia(...)Nada disto compreendem Rosencratz e Guildenstern(...)” (WILDE, 2003,p.1429). Perguntamo-nos aqui se a loucura de Nietzsche e de Wilde, preso, não seria a máscara de que se serviram para a volta às “forças elementais” (WILDE, 2003,p.1435).

A dor levara-lhe ao fundo e de lá só poderia sair fortalecido. Vivenciara, por fim, a ‘profundidade’ do trágico.
Suas lágrimas encontraram caminho por entre as paredes rochosas da prisão e a Epistola in Carcere et Vinculis é exemplo incondicional de exercício estético.

Renomeia-se. Torna-se andarilho: nova forma de escrita o aguarda, agora com os pés. Percorreria antigos caminhos com olhos e ouvidos novos. A novidade é a mesmo: “(...)também eu terei de prescindir desse outro nome que tão harmoniosamente soava antes nos lábios da fama. Quão mesquinho, quão limitado este século nosso, quão pouco de acordo com seus próprios vícios! Ao triunfo erige um palácio de pórfiro, mas não tem sequer uma cabana para a vergonha e para a dor. Tudo quanto possa fazer em meu favor é permitir-me mudar de nome, quando a própria Idade Média me teria oferecido o capuz de monge ou a máscara do leproso, com os quais teria eu podido viver em paz(...)” (WILDE, 2003,p.1436).

         Louis Thomas em seu L’Esprit D’Oscar Wilde traça o longo relato do carcereiro de Wilde – que não quis se identificar, mas deixou registrado as impressões do ilustre prisioneiro. Diz ele que Wilde preferia a solidão da cela, mesmo quando a debilitada saúde – dores de estômago, câimbras - exigia ida à enfermaria. Lá, poderia, em voz alta, exprimir seus pensamentos sem os comentários indelicados dos espíritos mais estreitos. Certa vez, parecia realmente doente, mas sorria, dizendo que só precisaria de algo quente. Não era hora de refeição alguma, “aussi décidai-je de trouver quelque chose à lui Donner d’ici là. Je sortis vivement, fis chauffer du bouillon de boef, le versai dans une bouteille, placais la boteille sous ma tunique et retornai vers as cellule. Pendant que je montais l’escalier, la boutelleglissa entre ma chemise et ma peau. Elle êtait três chaude. Je as vais qu’il y avait une cellule inoccupée à l’étage au-des-sus, et je résolus d’yaller pour retirer la bouteille de cette position douloureuse, mais à ce moment une voix ,’appela, venant du hall cantral en dessous. Je regardai en bas, et vis le gardien en chef. Il me fir signe d’aller le trouver. Je redescendis. Il voulait me parler d’une réclamation notée au rapport de la nuit precedente(...)Mon angoisse était effroyable(...)La bouitelle chaude me brûlait le ventre comme du plomb bouillant(...)je me tordais et me contorsionnais en tous sens, dans l’espoir de m’affranchir de l’objet infernal(...)Et le plus étrange était que plus le temps s’avançait plus elle devenait chaude. Lê chef me considérait curieusement. Je crois  qu’il pensaque j’avais bu(...)Je montai quatre à quatre les marches de fer de l’escalier, entrai em coup de bombe dans la cellule du poete(...)Le poète souriait tandis que je debitais mon histoire, puis il rit réellement.Je fus froissé parce qu’il riait. Je lui dis que c’était une pauvre recompense pour tout ce que j’avais subi(...)” . Oscar o presenteou com um texto intitulado Uma desculpa, escrito com a  marca original, pessoal, cheia do charme dos antigos epigramas e um estilo tão amoroso que cativou o novo amigo para sempre. Aquele que fizera votos de nunca mais rir – dedicando a vida inteiramente à tragédia - num momento de espírito quase infantil, riu-se a valer e registrou para o guarda a promessa quebrada. Relata ainda o carcereiro que durante o dia, parecia um homem comum, mas a noite operava-se uma transfiguração. Quando as portas eram fechadas, o gás tremeluzia, as sobras tombavam, quando tudo era calma e um silêncio regular e terrível habitava as celas e o ar: em todo círculo dos sepulcros vivos, nenhum quadro mais doloroso como aquele. Ele com suas musas, andando de um lado para o outro – três passos de cada vez, minúsculo era o espaço -, suas mãos para trás, olhos cravados no chão, como a ultrapassar as profundezas, olhando assim, o infinito. E sorria. Sua poderosa imaginação, com certeza, trabalhava, embora o corpo permanecesse acorrentado. Parecia escapar acima dos outros homens e mulheres, e, de repente, suspira, balbucia o nome da mãe, verte uma lágrima, voltara às barras da cela, como trazido por um relâmpago.

         Em De Profundis, como em Dorian Gray, as palavras têm uma flexibilidade admirável. Quando Wilde expõe o resultado de suas meditações solitárias ou narra um acontecimento emprega pequenas e breves frases, fortes na cena, carregadas de ‘pensamento’, simples e claras – bem ao estilo nietzschiano. Alvin Readman em seu The wit and humour of Oscar Wilde, destaca que Wilde só recebia uma folha de papel por dia em Reading Gaol e que, após preenchê-la por completo, esta lhe era retirada pelo guarda e não mais vista. No dia seguinte, outra folha em branco lhe chegava às mãos. Mesmo assim, ele conseguiu com uma destreza surpreendente manter o fluxo de pensamento, mesmo sem retornar ao texto para possíveis correções: “it is amazing that even in his state of mental torment he was able to call upon that clarity of mind and fluent use of language which were such salient features of his discourse(...)” .

         Quando relata os horrores e tristezas da hora presente, sua frase se alonga, mostra-se rica em música, sonora como os versos dos grandes poetas, deixando a impressão imediata da dilatação das emoções. Não há mais lar, nem dinheiro, nem nome: sua aventura não será mais um fim, mas um começo. Sabia que um término se aproximava. Mais uma vez, assim como quando entrou em Oxford pela primeira vez, podia ser o que quisesse. A sociedade pensando tirar-lhe, deu, sim, a ele a chance de ser ainda outro. Mais um dentre tantos que ele fora durante a vida de notoriedade. Deram a ele a única coisa de que precisava: mais uma máscara. A última, que seria essencial para o exercício pelo qual deveria passar – a saída às ruas. Viveu seu sonho, sem fechar os olhos, por isso, mesmo de seus carrascos recebeu o presente de mais uma entrada no palco. Entrada diferente desta vez; pelos bastidores, sem pompa, mas com a alegre música dos que se sentem únicos, artistas, afinal. Prescinde do nome que soara tão harmoniosamente nos palácios da fama e assume mudança radical de mais um disfarce, na saída da prisão.

          

           Uma pausa. Nossos olhos e os de Wilde se entrecruzam e somos invadidos por uma estranha alegria. O passeio por sua escrita, circularmente elaborada para se chegar à ideia de que necessário não é o real. Por isso, entendemos que ao sofrimento vivido só restou-lhe uma calma extasiante. Nossa alegria é a de fazer parte do grupo de leitores de sua inesquecível obra.


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caminheiro

          Sonho que caminho com Pessoa
          Nas ruas alegres e sóbrias de Lisboa
          As ruas têm alma, sussurra o João do Rio

          O passo ritmado me angustia
          O poeta acostumado à dor, sorri.
          'Desassossegado
          Sê inteiro, eis o segredo'.

          As luzes da noite evidenciam e dissimulam minha ribalta
          Pertenço ao poema
          Ri-se Pessoa
          Doces grilhões - que venha o exílio!
          'Pária'
     
          Colo meus passos nos do mestre português
          'Aceitaste a embriaguez do desvio', diz

          A letra extrai luz do obscuro

          'Teu tempo é de aflição, refugia-te nas encruzilhadas.'
   
          A voz fenece.
          Abro os olhos.
          Começo o caminho.

O olhar outro


                        Considerações bakhtinianas sobre o incomum na literatura          





Saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição.”

                                ( Bakhtin em Estética da criação verbal)



         A intrigante constatação de Mikhail Bakhtin em seu Estética da criação verbal aposta no leitor como o incomum no jogo da literatura. Como?

         Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade  a cada personagem, o que não acontece na vida; “na vida não nos interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra(...)já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseia numa resposta única ao todo do personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra” (p.4, do livro citado acima). Este ‘excedente’ de informação garantirá ao leitor uma identificação mais imediata; ele poderá ‘ver-se’ estilisticamente, conhecendo um pouco mais de si. O discurso literário, assim, constituiria esta ponte lançada entre duas pessoas: o autor e o leitor. Nesta relação dialógica, o primeiro se torna um todo a partir do olhar deste último. O leitor é constitutivo do autor. Se a obra de arte é reminiscência e antecipação de discursos passados e futuros, os dois – autor e leitor – estão entrelaçados num perpétuo jogo: um como complemento do outro.

         No filme Into the wild, dirigido por  Sean Penn (baseado na história real de Christopher McCandless), o personagem se lança na aventura de chegar ao Alasca. Diante de um futuro escrito pelos pais, após sua formatura, decide-se por partir com o dinheiro poupado, algumas roupas e livros de seus autores favoritos  para o Alasca, lugar recôndito que parece simbolizar seu interior. No caminho, encontra-se com várias pessoas, que lhe oferecem trabalho e estadia. Ele, ao aceitar, condiciona sempre sua permanência à necessidade de provisões para a viagem, que é seu destino; deixa claro a todo instante que escolhera a solidão. Sua personalidade cativante acaba por ajudar a mudar a vida de muitos que convivem com ele. Seu desejo por este lugar – Alasca –,no entanto, o impede de se enxergar neles. A busca por si, pelo auto-conhecimento a que se propusera já estava em andamento. O périplo se adiantava e ele preocupava-se por demais em não criar laços. Queria estar livre. Recusava o olhar destes outros que já o definiam. Pelos amigos que fez, o espectador já delineia um rosto. Quando afinal chega ao ‘destino’, a alegria dura alguns bons meses. Tem fome e decide retornar, mais uma vez somente para obter provisões A cheia de um rio, muda a geografia do local demarcado e ele  não tem como seguir. Próxima a morte, escreve com dificuldade nas páginas do livro querido que a felicidade tem que ser compartilhada; a vida é partilha incessante.

         Não é difícil para o espectador se ver neste jovem. O ser humano, diante das inúmeras dificuldades, sente uma urgência de fuga. Ele foge (geograficamente, se assim  pode ser posto), mas leva consigo seus livros. E, nos meses de solidão, as letras fizeram com que se confrontasse com cada pessoa que deixara para trás. Em cada uma delas ele se viu, assim como o espectador se viu nele.

         A arte tem este poder de abarcar-nos, abraçar-nos.

        

terça-feira, 22 de maio de 2012

Food for thought

   
     A  little  of  Oscar Wilde's  wit:

    " Art is not something which you can take or leave. It is a necesity of human life."


   " That is the mission of true art - to make us pause and look at a thing a second time."


   " The true artist is a man who believes absolutely in himself, because he is absolutely
     
     himself."


     Somos todos artistas da vida; acreditar-se obra de arte torna o trabalho, as relações

sociais,o lazer,muito mais encantadores.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

a vida como texto

         Acordei pensando o corpo como leitura e pergunto se você fosse um livro, qual seria.

Eu, definitivamente, seria algum do século XIX - época para mim com as produções mais atraentes.

Dê seu comentário.

domingo, 20 de maio de 2012

Conversa comigo


               A memória finge falhar. Cenas parecem ir e vir.O desassossego está em saber que

 está tudo aí. Nas estrias e curvas do corpo: a infância, a juventude e a maturidade. Como um

registro do qual não se pode fugir. Coladas ao olhar interior as idas e vindas da existência

recompensam o corpo cansado com uma centelha de sabedoria.A esperança reafirma a vida.


                  

Chá literário


 Um texto publicado no livro Fulgurações que traz um delicioso diálogo.

A CIRCUNFERÊNCIA DA GENIALIDADE DE ENRIQUE GÓMEZ CARRILLO NA PARCERIA COM OSCAR WILDE



                   Stella Maria Ferreira

           Doutora em Ciência da Literatura-UFRJ

        



                                                                           “Los artistas que no se creen más grandes que el resto

                                                                                              del mundo, no producen nunca una obra maestra...”1

                                                                             

                A força de uma obra artística está na eterna novidade de seu alcance. Mesmo inserida em determinado contexto histórico, pulsa em suas entrelinhas um alívio de eternidade permitindo a pluralidade de possibilidades, tornando os alicerces, cambiantes.

            No prefácio para seu primoroso retrato, Oscar Wilde diz que a vida imita a arte, instalando a surpresa de um novo olhar sobre a cumplicidade que, até então, só promovia uma utilidade para as manifestações artísticas atendendo às exigências de condições do ordinário. A entrada da arte no círculo da vida permite que não só o corpus, mas o corpo seja ‘contaminado’ pelo desejo do infinito. A Musa seduz e domina de tal maneira o artífice que passa a ser-lhe indesejável tudo que antecedeu o vislumbre da beleza. Intoxicado, resiste à existência cotidiana e se rende ao mundo dos sonhos, com seus matizes e suas formas inusitados. Os traços desta escrita já se tornariam reflexo da liberdade interior experimentada. Os grilhões seriam então doces porque o prenderiam somente a ele mesmo e ao infinito poder criativo; as amarras, leves, trariam o gozo de um destino incerto: a alegria de desejar ardentemente fechar-se em um labirinto; o contentamento de, sabendo-se único, adotar um estilo de vida que trouxesse à tona a graça do irrepetível.  Para Wilde, este artista deixa que os sentidos o guiem, sem contestar. As coisas são também como deveriam ser e não somente como parecem quando apreendidas pelo olfato, pelo tato ou pelos ouvidos. Os olhos escolhem não ver apenas o que está imediatamente à frente, mas o que jaz guardado na imaginação.  O tempo e o espaço se diluem para que a força imaginativa tome um lugar de destaque, por isso, não há repouso ou descanso. O cansaço, porém, não se apodera deste peregrino, a quem não é garantida glória perpétua, pois este amor pela arte aponta, por vezes, o escombro. Ao entregar-se a ela, o artista sabe que pode compor-se como quiser, pode potencializar todas as ações, por isso, não há temor. A obra que perdura é a que chega a ser escrita com sangue.

            Tendo nascido em 1873 filho de um historiador, o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo - crítico, ensaísta, contista – marca presença no meio literário com uma escrita de concordância cromática e fecundidade varonil. Deixando-se levar pela vida, vestiu-se de mudança para conclamar o repúdio à adequação.  Abraçando a ousadia do fim de século XIX, busca ressaltar em seus textos uma luminosidade de incerteza: “ la gran luz que ciega, que matiza de tonos de incendio, que une objetos, que da movimiento, vida y violência al espacio...” (CARRILLO, 2004,p.61). Destaca esta luz que sabe não poder  prescindir de sua companheira inseparável, a treva, para ele fonte inesgotável de surpresas e encantamento. Carrillo trabalha as duas de mãos dadas, permitindo que desvelem ou ocultem detalhes dos objetos num jogo de sedução que repudia o senso comum.  Destaca no ensaio La critica y los críticos en Paris :



“...muchas veces no conocemos bien una calle o un barrio sino cuando lo hemos visto vivir su vida nocturna...cunado las luces se encienden, dijérase que una existencia cominenza más brillante, más febril, más seductora que la del dia...No son solo Paris, Barcelona, Milan, Buenos Aires y las demás Metrópolis noctâmbulas las que merecen ser observadas a la claridad de las lámpadas. En pueblos muy tranquilos, en villas viejas y casi muertas de países muy lejanos, cuando la sombra invade la calle e cuando los interiores revelan algo de su mistério...” 2.



Assim, consegue que do corpo das palavras emane uma brincadeira em que se diluem sons e aromas. Instigantes e incômodos, seus escritos impelem ao movimento: a alguns indivíduos emprestando passadas largas e decididas, a outros, passos leves e tímidos. Inaugura para este seleto grupo de ‘eleitos’ a possibilidade de um  rumo ao sempre desconhecido, frisando a graça deste caminho escuro em que a única luz que brilha é a da arte.  Tomado pelo sentido de plasticidade, valorizou a impressão da realidade como propiciadora de emoção única, buscando nesta singularidade a porta para grandes e ilimitadas realizações.  O contemporâneo Wilde assim resume:



                                   “A Arte...tem uma vida independente, como a tem o Pensamento, e

                                               se desenrola simplesmente em um sentido que lhe é peculiar...

                                               Longe de ser uma criação de seu tempo, está geralmente em oposição

                                               direta a ele...Por vezes volta sobre seus passos e ressuscita alguma forma

                                               antiga, como sucedeu no movimento arcaico da última arte grega e no

                                               movimento pré-rafaelita contemporâneo. Outras vezes adianta-se

                                               absolutamente à sua época e produz uma obra que outro século posterior

                                               compreenderá, apreciará e gozará...” 3

                                                              

A forte ressonância impressionista que busca uma negociação com as diferenças, traz vibrações ao ar desta escrita, “...mezclando o sobreponiendo en el lienzo los tonos más variados, las notas más incoherentes, y haciendo brotar del conjunto transparencias policromas tales cual las que en la vida nos sorprenden y nos encantan....”, diz em El impresionismo, crítica de arte de 1921(CARRILLO, 2004). Trabalhando a frase com meticuloso carinho, a exemplo de Wilde e seus famosos epigramas, revela cores para as vogais e consoantes: umas lhe parecem claras, outras morenas, todas, porém, a serviço da pureza de uma arte de descoberta. Esculpe, esmalta, grava, pinta as palavras como gemas preciosas prontas a adivinhar o insólito e atestar o caráter de insubordinação que queria o artista para a literatura. No triunfo destes detalhes, a impressão estética ganha corpo e forma a custa de paciência e dedicação, cujo prêmio é o atrevimento próprio da escrita avassaladora característica do movimento decadente. Escrita como a wildiana em que “la nota triunfante de su singularidad es la extremidad en las medias tintas.”( CARRILLO, 2004,p.74).

 Como o notório irlandês – seu amigo pessoal - Carrilo foi um amante da viagem cujas noites que definia como o instante em que “no conocemos aún a nadie; esas noches en las que nos encontramos solos con nosotros mismos...”(CARRILLO, 2004, p.268). A opção por uma vida errante proporcionou a Carrillo uma aplicação singular e imprevista à eternidade em que está mergulhada a letra. Com frases ‘viajantes’, exercita e dá a exercício o pensamento e todas as suas pulsações, tendo a arte como guia e mestre. Em passos de hipnose, esta paixão inquietante revela uma incessante busca por algo “ más frívolo, más sutil, más pitoresco, más poético y más positivo: la sensación” (CARRILLO, 2004, p.265). Na diversidade de pontos captados pela retina, “cada hora del dia, cada capricho del sol, cada cambio de la atmósfera, modifica radicalmente el paisaje. La Naturaleza es sensible y variable como una mujer.” (CARRILLO, 2004, p.266), pode-se perceber o olhar irrequieto e aguçado. Chegar não era o objetivo primordial, o prazer estava na viagem em si, pois, “el que se va no vuelve nunca. Quien vuelve es outro.” (CARRILLO, 2004, p.267) - outro porque ousara entregar-se a movimentos rápidos e inesperados. Admitiu um passo diferente à sua escrita, de retas e curvas visíveis e provocadoras, exaltando a sensibilidade plástica que se dispersa e se concentra permitindo a constatação da eternidade das coisas, percebendo como “minuto por minuto, las luces vesperales van matizando con suavidades acariciadoras los confines de las enramadas...” (CARRILLO, 2004,p.266). Entendia que os trajetos e os enredos envolviam o corpo e, por isso, não se esgotavam. Focalizou, então, o que por ele passava, enfatizando também o ‘entre-corpos’, o ‘entre-imagens’.  Fundiu consciência e inconsciência na superfície do texto. Percebe-se em Carrillo, claramente, o dito e o não-dito como forças transformadoras e eficazes na tecitura das tramas, negociando constantemente com o destino.

 A marca de ‘andante’ deu a Carrillo oportunidades únicos como em 1895 quando a Real Academia de la Lengua Española o elegeu Acadêmico Correspondente Estrangeiro pela Guatemala e 1898 quando o então Presidente do país lhe concedeu o cargo de Cônsul em Paris e depois em Hamburgo. O destaque vai para uma publicação de 1913, La sonrisa de la Esfinge, que descreve algumas impressões sobre o Egito. Carrillo acalenta a sedutora atração exercida pelo Oriente para os decadentistas ao dizer que “hay que perderse voluntariamente en el laberinto de las callejuelas estrechas. Hay que adoptar el carácter del sitio con toda su languidez voluptuosa y resignada...Y poço á poço, sin esfuerzo...mi alma se empapa en los eflúvios del extraño ambiente que me rodea...” (CARRILLO, 1913, p.25). E, ao perder-se propositalmente em percursos dedáleos, experimenta sensações das mais surpreendentes: “...nosotros, los hombres del siglo XX, que vivimos en medio de civilizaciones más infelices...con su sensualismo ingenuo y su resignación tranqüila,con su credulidad infantil y su refinamiento artístico...con su tolerancia social y su fantasia religiosa, el Egipto nos parece como el más satisfecho de los pueblos...” (CARRILLO, 1913,p.316). A conclusão deste ‘espírito livre’ não surpreende. Toda a suntuosidade e mistério resgatados da antiga Bizâncio pelos escritores decadentes são por ele aceitos e incorporados ao tecido da escrita. O Oriente se abre, assim, como complemento paradoxal para um olhar de leveza e dinamismo; um olhar que aceita o inexato. A assimilação de todos os elementos da sensualidade se resumiria numa outra perspectiva – junção das partes em um todo harmônico – acentuando a virtualidade para despertar um indivíduo reflexivo e operante: um corpo estranho. Neste mundo marcado pela estesia, tudo estaria em relação, a partir da mutabilidade e da suspensão. Assim, do que se julgava unificado, fluiria uma dança de sonhos digna de quem não aceita calar a agonia da alma amante.

Neste contexto, ganha um destaque todo especial a figura da mulher. Adornada de jóias e coloridos véus, a mulher oriental mascara inocência e malícia, sobriedade e embriaguez. De seus gestos quase infantis emana veneno suficiente para inebriar observadores, salta a bebida dionisíaca que fará entontecer a todos. Carrillo lembra Scherazade, personagem oriental de excelência e suas mil e uma noites dizendo:



                                   “Su belleza es uno de sus talismanes. La belleza, empero, no

                                               basta. Hay algo de más fuerte, un algo que no está en el cuerpo;

                                               que es inmaterial, que reside en el fondo oscuro del espíritu; un

                                               algo imponderable, indefinible, inexplicable...Es una virtud

                                               secreta hecha de fantasia...es, en suma, la Gracia...” 4.



A jovem prisioneira preconiza a poesia de uma existência imaginativa ao desenhar um “álbum de imágenes pintorescas y galantes...” (CARRILLO, 2004, p.55), atraindo para um labirinto sem chave de saída.  Junta-se a ela Em La sonrisa de la Esginge, a sedutora figura metade humana, metade animal que, com o sorriso enigmático e uma postura inerte,  parece acompanhar o escritor em suas perambulações. O sussurro de seus lábios ao ouvido de Carrillo combina passado e presente num tempo único e eterno. Segredos são desvelados e outros mistérios se formam a cada esquina mergulhados em fortes essências de volúpia. O jovem corre não se sabe mais se com os pés, com os olhos ou só com a imaginação lugares pitorescos que fazem revolver sentimentos e desejos adormecidos. A palavra se liberta, mergulhando na impetuosidade. A realidade até então ‘segura’ viu-se transformada no caos do sonho – a arte penetra na vida prática. A respiração gélida da esfinge turva seus sentidos, o que facilita a apreensão da alma e dos costumes do povo. Mais do que pura descrição, Carrillo, no artifício de ‘carregar’ a narrativa de um colorido estupendo, aguça a curiosidade e admiração dos leitores por uma Antigüidade que se quer reaquecida. Memórias queridas, mesmo do nunca antes vivido. Então, “una sensación deliciosa de bienaventuranza, de alegria familiar, de tranquilidad de espíritu, llena el ambiente” (CARRILLO, 1913, p.22) e seu coração inquieto. Livre de qualquer empecilho ou distração, “ la voz femenina llega á nuestros oídos” e o viajante se vê absorto por estas “que  pasan, rítmicas, y cuyas túnicas ligeras y ceñidas nos permiten admirar sus cuerpos esbeltos, sus piernas esculturales, sus senos menudos. A cada instante, en efecto, uma de estas representantes de la antigua raza egípcia nos sorprende con su gracia de figulina de bronce...” (CARRILLO, 1913, p.44). O sorriso da Esfinge atrai o caminhante, que a seus pés, alça vôo desconcertante rumo ao auto-conhecimento. Tendo a frente um tapete, microcosmo do mundo, Carrillo decifra antigos enigmas e se vê emaranhado em outros. O sempre novo do insondável lhe é difícil resistir.  Os passeios em solo oriental encantam e o perfume de raros incensos se sobressai a cada página. O leitor, viajante no movimento dos olhos percorrendo as linhas da esquerda para a direita, de cima para baixo é dragado num mar de exotismo. Oscar Wilde por certo sorriria ao amigo se a ele enunciasse em conversa informal tais impressões. O esteta também já tivera um encontro com este baú de segredos em 1894 com A Esfinge. No longo poema, a bela e silenciosa figura tocaia um jovem estudante ávido por aventuras. “Através das trevas ondulantes. Intangível e quieta” (WILDE, 2003, p.958), a estranha gata, sem o menor movimento, “faz vacilar a lâmpada” (WILDE, 2003, p.964), fazendo o estudante sentir na fronte a umidade de “terríveis orvalhos da noite e da morte” (WILDE, 2003, p.964). Sonhos de vida sensual são despertados e ele, apavorado, após uma ‘viagem’ pelo tempo e espaço bem ao gosto decadentista – no pensamento – ‘expulsa’ de sua presença a influência mordaz que faz dele “aquilo que não quereria ser”(WILDE, 2003,p.965). Não há como voltar atrás: o calor de uma nova vida já o invadira. Assim como Gómez Carrillo, o viajante de fato, o estudante wildiano não poderia resistir à brisa torrencial e apaixonante desta terra. Ambos sabem, porém, que para gozar de suas delícias é necessário paciência para experimentar “el encanto de la atmósfera milenaria, el dulce encanto que nos hace vivir en la realidad como antes solo habíamos vivido con la imaginación...” (CARRILLO, 2004, p.187), pois cada passo parece guardar algo de inverossímil. “Ante las tapias que esconden los jardines y las fuentes que mi alma codicia, una Honda, una inexplicable impresión de criatura condenada al destierro que, pela última vez, contempla” (CARRILLO, 2004,p.190), aliviado, com as memórias de suas retinas o que deixara de viver pela imaginação.

 Gómez Carrillo, desfilando por diversos gêneros literários – mesmo tendo sido reconhecido pelos contemporâneos como ‘Príncipe dos Cronistas’ – pinça certos temas e revela, inevitavelmente, um favoritismo pela ação sutil do instinto feminino que vence com a sedução e não com a força. A dança - manifestação artística relegada pela filosofia até então, mas re-aquecida pelos textos nietzschianos -, para ele presente nas histórias da jovem prisioneira do rei, fixa nas linhas a ternura de traçados serpentinos que, bailando pela folha de papel, saltam aos olhos, turvando os sentidos. Para acompanhar esta heroína surge o grande ícone decadentista, Salomé, exemplo de perda de fronteiras, de dualismo de atitudes, alegoria do moderno: mil em uma. A dançarina de sangue exaltada na peça em um ato escrita por Oscar Wilde em língua francesa - mereceu um belíssimo conto intitulado El triunfo de Salomé, inserido no livro Tristes idílios, publicado em 1900. Evocação de um sonho intangível de mulher, a bailarina protagonista, Marta, nas apresentações, pouco a pouco, se despojava “en apariencia, de sus velos, de su blancura, de su sonrisa, de sus joyas, de todo que había en ella, en fin, de material y de humano” (CARRILLO, 2004, p.217). O público - aturdido e seduzido – aplaudia freneticamente esta doce fatalidade. Discípula do irmão, autor das composições musicais que executava, ensaia a autoria de uma – o título do conto- que assim descreve: “es un baile que nada vale al lado de los tuyos, un puro capricho de mujer mimada...al principio a medida que lo he ido ensayando, su música se há convertido para mi en uma obsesión...no puedo escribir la partitura ni menos aún instrumentarla.” (CARRILLO, 2004,p.221). Luciano aceita se inteirar da obra da irmã e “era un laberinto caótico de notas fantasticamente descabelladas, cuyo conjunto, no obstante, contenía uma conmovedoraarmonía llena de gracia y de incoherencia.” (CARRILLO, 2004,p.221). Com um labor de jardineiro artístico- diz Carrillo- Luciano apara as flores demasiado grandes e corta as ramas inúteis, para, juntos, ao cabo de um mês, terminarem El triunfo de Salomé. Começam os ensaios e Marta, “más inspirada que nunca...bailaba..todos los dias...erguíase cual un icono de oro al estruendo metálico de los címbalos que rugían anunciado a su triunfo sanguinario... sus pies parecían desconocer la fatiga, y, siempre inquietos, marcaban sindarse punto de reposo el ritmo de la danza sagrada...” (CARRILLO, 2004, p.222/223). O tempo do texto, portanto, é marcado pela dança, com os episódios se sucedendo sem muitas margens de repouso. Alcança, assim, uma dimensão notável, já que o leitor parece adivinhar a que horas as cenas ocorrem, a que temperatura e sob que atmosfera. O toque especial da caneta do artista apresenta um esboço de pintura. A dramaticidade é intensificada pela condensação do tempo, com inúmeras emoções sugeridas e estimuladas num espaço de poucas horas, tal qual a obra do admirável esteta irlandês. A vida interna do conto assemelha-se a um sonho de efeito hipnótico. Diz Wilde na conferência Aos estudantes de arte, de 1883:



                                               “O objetivo da arte é tanger a corda mais divina e secreta

                                                               que produz música na alma; e a cor é, na realidade por si

                                                                   mesma, uma presença mística sobre as coisas e assemelha-se a

                                                               uma espécie de sentinela...” 5



 A partir daqui, Carrillo, sob a silhueta de Wilde, faz surgir para a jovem, a própria Salomé em sonhos delirantes “para revelarla el secreteo de la gracia perdurable, diciéndola lo que había hecho, dos mil años antes, en el palácio del Tetrarca, con objeto de obtener en recompensa la cabeza recien cortada del Precursor...Bailé – murmuraba la hija de Herodiada al oído de la artista dormida – baile largamente...mi cuerpo dorado y ágil plegóse como un junco ante Herodes; luego se enderezó con un movimiento de sepiente...mis caderas se estremecieron...” (CARRILLO, 2004, p.223).Marta, embalada pela força da Princesa ‘hacía todo lo posible por saturarse de la leyenda...repitiéndole sin cesar las divinas estrofas de Mallarmé, los diálogos complicados de Oscar Wilde, las pomposas cláululas de Flaubert, las pesadas descripciones de Huysmans...” (CARRILLO, 2004, p.224). A alma de Salomé parecia ter-se desprendido do papel, colando-se a jovem a ponto de fazê-la dizer ao irmão: “Bailaré de tal modo, que los espectadores me ofrecerán sus cabezas.” (CARRILLO, 2004, p.225).  Em embriaguez dionisíaca, as forças naturais formam um elo musical criando um estado de acuidade e receptividade de todos os sentidos. A música orquestrada está nos pés de Marta e em sua mente, conduzindo o leitor ora a um movimento contemplativo, ora a excitação desta dança ansiosa e viva

Faltava a Marta, porém, a saúde – os pulmões estavam debilitados, o corpo todo lhe doía - e passados os dias, “sus pulmones se laceraban; su pulso era cada instante más rápido y más desigual.” (CARRILLO, 2004, p.227), apesar de se mostrar expressão de uma personalidade forte, pronta a não se deixar governar. O espetáculo havia sido cancelado e no dia da estréia, após um dia de intensa dor, a jovem acorda às dez, “la hora en que el público, al verla aparecer vestida de princesa de Israel, cubierta de joyas y de amuletos, debía aplaudirla...la hora de Salomé...la hora suprema...impusada por uma fuerza, Marta salió del lecho. Quería bailar...Apoyándose en los mubles, llegó hasta la venntana y la abrió...el aire de la noche, acaricio, com su soplo, mortal, los brazos frágiles...” (CARRILLO, 2004, p.229). Marta dançou vertiginosamente toda a obra  no espaço de alguns minutos e caiu, exausta, diante das estrelas. Cumprira a promessa de reviver o mito de Salomé e, assim como, a filha de Herodíades, vai de encontro à morte, impulsionada pelo desejo de superar os limites impostos ao corpo. A febre interior da jovem trazia uma inquietude que fez com que sua personalidade se desenvolvesse completamente. O caminho reserva como destino o desastre – única escolha possível. Sob a luz da Lua, esta ‘deusa’ que se mostra diferente a cada vez, Marta sofre uma transição. Tal qual a dança das fases da Lua, a jovem bailarina revela a multiplicidade de identidades de seu coração. Frágil e decidida, pura e sedutora, mansa e rebelde, exercita uma representação que exigiu dela acordes novos e ousados. É possível imaginar uma progressão de suavidade para gestos mais vigorosos e inflamados. O drama de Marta, o de Salomé, é dar um sentido outro para a existência. Até então, conduzia perfeitamente suas relações, mas não desenvolvia o jogo de fascinação que tinha em si. A grande força de independência de Salomé foi o que a todos atraía e para Marta não poderia ser de outra maneira: descobre pelo sonho a paixão pela vida.  Em sua sede, portanto, possuiu tudo. A medida da multiplicação das fantasias é a garantia de vida –  para sempre. Completa o ciclo, evitando a perplexidade diante do não-vivido, do mal-estar, do estranhamento produzido pelo distanciamento de si. O desprezo velado pelos limites levou Marta a buscar o bálsamo do escondido no vôo mais alto das idéias. Fugiu da dolorosa sensação de ceder a própria independência, sufocando a força da alma pelo poder do cotidiano, enterrando os germes da criatividade para lançar-se ao novo.

O efeito conseguido por Carrillo é devastador.A intensidade é grande e o leitor acompanha o destino de Marta, discípula de Salomé, que, em vertigem, culminará com a queda que de antemão era tida como iminente. A exatidão de detalhes produz a ilusão perfeita, lição wildiana em A verdade das máscaras, de 1885. Adjetivando este mundo exótico onde mergulha o leitor, Carrillo provoca sua curiosidade e o conquista definitivamente.  O final não surpreende, já que, se trata de alguém que toca a eternidade. Tornando-se cega, surda e muda para um real insatisfatório que tolhia sua liberdade, Marta, cabeça erguida,  digere a vida. Salomé continua charada sem solução. Esta nova linguagem deveria ser amada e não afetada por uma consciência que limita; era linguagem que desejava fugir ao óbvio para lançar o indivíduo num redemoinho de onde sairia renovado, pleno de vigor.  Assim foi com Marta: Salomé dançou em sua mente uma vez por todas. Assim foi com Wilde. Enamorado da vida, ao enxergar toda a sua beleza, quebra o pacto com a consciência que o amarraria ao ordinário e abraça a ficção como única alternativa para realizar toda a potencialidade individual. Com este conto, Carrillo, além de homenagear o amigo, fazendo com que sua personagem experimentasse o real e o ficcional, exalta esta escolha. Ao se perder para o mundo, Marta encontra o seu lugar. A regulação para o corpo não mais existia. A jovem figura a sede por coisas impossíveis. Mesmo repudiado e aviltado pelos vitorianos, Wilde, recusando-se a descer do palco, não desiste da vida como arte e, com isso, se torna uma escrita eterna. Seguiu as palavras do filósofo alemão Nietzsche – mesmo sem tê-lo conhecido, colocando um pouco de arte nos sentimentos, preferindo ousar fazer uma tentativa com o artificial , da mesma forma como fazem os verdadeiros artistas da vida (ver NIETZSCHE, 2003, p.68).

Gómez Carrillo, igualmente consegue, com sua profunda pesquisa da mente humana, que as palavras tenham sistema nervoso, formando um espetáculo de claridade, de pureza e de simplicidade. Em seu compromisso com a vida e seu amor pela literatura diz:

                                   “El idioma literario es único e invariable...en su forma está toda

                                               la retórica, toda la gramática, todo el ritmo. Todo el ritmo, si, pues

                                               no basta saberlo comprender y con saberlo leer. Hay, además, que

                                               saberlo salmodiar...” 7.



Foi um transeunte da vida, “no era fisicamente bello, conforme al cânon apolíneo, a pesar de sus ojos somadores, fascinantes, y su cabellera...pero fue hermoso con aquella hermosura que preconizo Wilde: hermosura del pensamiento y del alma, que ilumina el rostro...” (ESPINOZA, 2007, p.xv). Admiradores, biógrafos e leitores o têm como um vencedor, para quem nada faltou para triunfar porque viveu na e para a sensação. Em 1927, faleceu em Paris para figurar desde então no quadro dos grandes escritores viajantes de fina agudez visual e simpatia sem par.                                                    

 Eleito em vida por Wilde para o círculo literário que desejava montado, Carrillo é ainda hoje figura de referência para os estudos finisseculares e propiciador de um prazer inigualável com palavras dançantes.





























REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Martin Claret, 2002.



CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004.

______________. La sonrisa de la Esfinge. Madrid: Renacimiento, 1913.



ESPINOZA, E.T. Enrique Gómez Carrillo, el cronista errante. Guatemala: F&G

     Editores, 2007.



NIETZSCHE, F. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.

_____________. Para além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2003.



WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.























1              CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.73.
2              CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.271.
3              WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1093.
4              CARRILLO,E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.56.
5              WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1044
7              CARRILLO, E.G. La sonrisa de la Esfinge. Madrid: Renacimiento, 1913, p.97.

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