Considerações
bakhtinianas sobre o incomum na literatura
“Saber que o outro pode ver-me
determina radicalmente a minha condição.”
( Bakhtin em Estética da criação verbal)
A
intrigante constatação de Mikhail Bakhtin em seu Estética da criação verbal aposta no leitor como o incomum no jogo da literatura. Como?
Na
vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas,
mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos.
Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que
lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto
– a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do
artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada personagem, o que não acontece na
vida; “na vida não nos interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus
atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de
outra(...)já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da
personagem se baseia numa resposta única ao todo do personagem, cujas
manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo
como elemento da obra” (p.4, do livro citado acima). Este ‘excedente’ de informação garantirá ao
leitor uma identificação mais imediata; ele poderá ‘ver-se’ estilisticamente,
conhecendo um pouco mais de si. O discurso literário, assim, constituiria esta
ponte lançada entre duas pessoas: o autor e o leitor. Nesta relação dialógica,
o primeiro se torna um todo a partir do olhar deste último. O leitor é
constitutivo do autor. Se a obra de arte é reminiscência e antecipação de
discursos passados e futuros, os dois – autor e leitor – estão entrelaçados num
perpétuo jogo: um como complemento do outro.
No
filme Into the wild, dirigido
por Sean Penn (baseado na história real
de Christopher McCandless), o personagem se lança na aventura de chegar ao
Alasca. Diante de um futuro escrito pelos pais, após sua formatura, decide-se
por partir com o dinheiro poupado, algumas roupas e livros de seus autores
favoritos para o Alasca, lugar recôndito
que parece simbolizar seu interior. No caminho, encontra-se com várias pessoas,
que lhe oferecem trabalho e estadia. Ele, ao aceitar, condiciona sempre sua
permanência à necessidade de provisões para a viagem, que é seu destino; deixa
claro a todo instante que escolhera a solidão. Sua personalidade cativante
acaba por ajudar a mudar a vida de muitos que convivem com ele. Seu desejo por este
lugar – Alasca –,no entanto, o impede de se
enxergar neles. A busca por si, pelo auto-conhecimento a que se propusera já
estava em andamento. O périplo se adiantava e ele preocupava-se por demais em
não criar laços. Queria estar livre. Recusava o olhar destes outros que já o
definiam. Pelos amigos que fez, o espectador já delineia um rosto. Quando
afinal chega ao ‘destino’, a alegria dura alguns bons meses. Tem fome e decide
retornar, mais uma vez somente para obter provisões A cheia de um rio, muda a geografia
do local demarcado e ele não tem como
seguir. Próxima a morte, escreve com dificuldade nas páginas do livro querido
que a felicidade tem que ser compartilhada; a vida é partilha incessante.
Não
é difícil para o espectador se ver neste jovem. O ser humano, diante das
inúmeras dificuldades, sente uma urgência de fuga. Ele foge (geograficamente,
se assim pode ser posto), mas leva
consigo seus livros. E, nos meses de solidão, as letras fizeram com que se
confrontasse com cada pessoa que deixara para trás. Em cada uma delas ele se
viu, assim como o espectador se viu nele.
A
arte tem este poder de abarcar-nos, abraçar-nos.
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