quarta-feira, 23 de maio de 2012

O olhar outro


                        Considerações bakhtinianas sobre o incomum na literatura          





Saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição.”

                                ( Bakhtin em Estética da criação verbal)



         A intrigante constatação de Mikhail Bakhtin em seu Estética da criação verbal aposta no leitor como o incomum no jogo da literatura. Como?

         Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade  a cada personagem, o que não acontece na vida; “na vida não nos interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra(...)já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseia numa resposta única ao todo do personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra” (p.4, do livro citado acima). Este ‘excedente’ de informação garantirá ao leitor uma identificação mais imediata; ele poderá ‘ver-se’ estilisticamente, conhecendo um pouco mais de si. O discurso literário, assim, constituiria esta ponte lançada entre duas pessoas: o autor e o leitor. Nesta relação dialógica, o primeiro se torna um todo a partir do olhar deste último. O leitor é constitutivo do autor. Se a obra de arte é reminiscência e antecipação de discursos passados e futuros, os dois – autor e leitor – estão entrelaçados num perpétuo jogo: um como complemento do outro.

         No filme Into the wild, dirigido por  Sean Penn (baseado na história real de Christopher McCandless), o personagem se lança na aventura de chegar ao Alasca. Diante de um futuro escrito pelos pais, após sua formatura, decide-se por partir com o dinheiro poupado, algumas roupas e livros de seus autores favoritos  para o Alasca, lugar recôndito que parece simbolizar seu interior. No caminho, encontra-se com várias pessoas, que lhe oferecem trabalho e estadia. Ele, ao aceitar, condiciona sempre sua permanência à necessidade de provisões para a viagem, que é seu destino; deixa claro a todo instante que escolhera a solidão. Sua personalidade cativante acaba por ajudar a mudar a vida de muitos que convivem com ele. Seu desejo por este lugar – Alasca –,no entanto, o impede de se enxergar neles. A busca por si, pelo auto-conhecimento a que se propusera já estava em andamento. O périplo se adiantava e ele preocupava-se por demais em não criar laços. Queria estar livre. Recusava o olhar destes outros que já o definiam. Pelos amigos que fez, o espectador já delineia um rosto. Quando afinal chega ao ‘destino’, a alegria dura alguns bons meses. Tem fome e decide retornar, mais uma vez somente para obter provisões A cheia de um rio, muda a geografia do local demarcado e ele  não tem como seguir. Próxima a morte, escreve com dificuldade nas páginas do livro querido que a felicidade tem que ser compartilhada; a vida é partilha incessante.

         Não é difícil para o espectador se ver neste jovem. O ser humano, diante das inúmeras dificuldades, sente uma urgência de fuga. Ele foge (geograficamente, se assim  pode ser posto), mas leva consigo seus livros. E, nos meses de solidão, as letras fizeram com que se confrontasse com cada pessoa que deixara para trás. Em cada uma delas ele se viu, assim como o espectador se viu nele.

         A arte tem este poder de abarcar-nos, abraçar-nos.

        

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