A
CIRCUNFERÊNCIA DA GENIALIDADE DE ENRIQUE GÓMEZ CARRILLO NA PARCERIA COM OSCAR
WILDE
Stella
Maria Ferreira
Doutora em Ciência da
Literatura-UFRJ
“Los
artistas que no se creen más grandes que el resto
del
mundo, no producen nunca una obra maestra...”1
A força de uma obra artística está na eterna
novidade de seu alcance. Mesmo inserida em determinado contexto histórico,
pulsa em suas entrelinhas um alívio de eternidade permitindo a pluralidade de
possibilidades, tornando os alicerces, cambiantes.
No prefácio para seu
primoroso retrato, Oscar Wilde diz que a vida imita a arte, instalando a
surpresa de um novo olhar sobre a cumplicidade que, até então, só promovia uma
utilidade para as manifestações artísticas atendendo às exigências de condições
do ordinário. A entrada da arte no círculo da vida permite que não só o corpus, mas o corpo seja ‘contaminado’
pelo desejo do infinito. A Musa seduz e domina de tal maneira o artífice que
passa a ser-lhe indesejável tudo que antecedeu o vislumbre da beleza.
Intoxicado, resiste à existência cotidiana e se rende ao mundo dos sonhos, com
seus matizes e suas formas inusitados. Os traços desta escrita já se tornariam
reflexo da liberdade interior experimentada. Os grilhões seriam então doces
porque o prenderiam somente a ele mesmo e ao infinito poder criativo; as
amarras, leves, trariam o gozo de um destino incerto: a alegria de desejar
ardentemente fechar-se em um labirinto; o contentamento de, sabendo-se único,
adotar um estilo de vida que trouxesse à tona a graça do irrepetível. Para Wilde, este artista deixa que os
sentidos o guiem, sem contestar. As coisas são também como deveriam ser e não
somente como parecem quando apreendidas pelo olfato, pelo tato ou pelos
ouvidos. Os olhos escolhem não ver apenas o que está imediatamente à frente,
mas o que jaz guardado na imaginação. O
tempo e o espaço se diluem para que a força imaginativa tome um lugar de
destaque, por isso, não há repouso ou descanso. O cansaço, porém, não se
apodera deste peregrino, a quem não é garantida glória perpétua, pois este amor
pela arte aponta, por vezes, o escombro. Ao entregar-se a ela, o artista sabe
que pode compor-se como quiser, pode potencializar todas as ações, por isso,
não há temor. A obra que perdura é a que chega a ser escrita com sangue.
Tendo nascido em 1873
filho de um historiador, o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo - crítico,
ensaísta, contista – marca presença no meio literário com uma escrita de
concordância cromática e fecundidade varonil. Deixando-se levar pela vida,
vestiu-se de mudança para conclamar o repúdio à adequação. Abraçando a ousadia do fim de século XIX,
busca ressaltar em seus textos uma luminosidade de incerteza: “ la gran luz que
ciega, que matiza de tonos de incendio, que une objetos, que da movimiento,
vida y violência al espacio...” (CARRILLO, 2004,p.61). Destaca esta luz que
sabe não poder prescindir de sua
companheira inseparável, a treva, para ele fonte inesgotável de surpresas e
encantamento. Carrillo trabalha as duas de mãos dadas, permitindo que desvelem
ou ocultem detalhes dos objetos num jogo de sedução que repudia o senso
comum. Destaca no ensaio La critica y los críticos en Paris :
“...muchas veces no conocemos bien
una calle o un barrio sino cuando lo hemos visto vivir su vida
nocturna...cunado las luces se encienden, dijérase que una existencia cominenza
más brillante, más febril, más seductora que la del dia...No son solo Paris,
Barcelona, Milan, Buenos Aires y las demás Metrópolis noctâmbulas las que merecen
ser observadas a la claridad de las lámpadas. En pueblos muy tranquilos, en
villas viejas y casi muertas de países muy lejanos, cuando la sombra invade la
calle e cuando los interiores revelan algo de su mistério...” 2.
Assim, consegue que do corpo das palavras emane uma brincadeira em que se
diluem sons e aromas. Instigantes e incômodos, seus escritos impelem ao
movimento: a alguns indivíduos emprestando passadas largas e decididas, a
outros, passos leves e tímidos. Inaugura para este seleto grupo de ‘eleitos’ a
possibilidade de um rumo ao sempre
desconhecido, frisando a graça deste caminho escuro em que a única luz que
brilha é a da arte. Tomado pelo sentido
de plasticidade, valorizou a impressão da realidade como propiciadora de emoção
única, buscando nesta singularidade a porta para grandes e ilimitadas
realizações. O contemporâneo Wilde assim
resume:
“A Arte...tem uma vida independente,
como a tem o Pensamento, e
se desenrola
simplesmente em um sentido que lhe é peculiar...
Longe de ser uma
criação de seu tempo, está geralmente em oposição
direta a ele...Por
vezes volta sobre seus passos e ressuscita alguma forma
antiga, como sucedeu
no movimento arcaico da última arte grega e no
movimento
pré-rafaelita contemporâneo. Outras vezes adianta-se
absolutamente à sua
época e produz uma obra que outro século posterior
compreenderá,
apreciará e gozará...” 3
A forte ressonância impressionista que busca uma
negociação com as diferenças, traz vibrações ao ar desta escrita, “...mezclando
o sobreponiendo en el lienzo los tonos más variados, las notas más
incoherentes, y haciendo brotar del conjunto transparencias policromas tales
cual las que en la vida nos sorprenden y nos encantan....”, diz em El impresionismo, crítica de arte de
1921(CARRILLO, 2004). Trabalhando a frase com meticuloso carinho, a exemplo de
Wilde e seus famosos epigramas, revela cores para as vogais e consoantes: umas
lhe parecem claras, outras morenas, todas, porém, a serviço da pureza de uma
arte de descoberta. Esculpe, esmalta, grava, pinta as palavras como gemas
preciosas prontas a adivinhar o insólito e atestar o caráter de insubordinação
que queria o artista para a literatura. No triunfo destes detalhes, a impressão
estética ganha corpo e forma a custa de paciência e dedicação, cujo prêmio é o
atrevimento próprio da escrita avassaladora característica do movimento
decadente. Escrita como a wildiana em que “la nota triunfante de su
singularidad es la extremidad en las medias tintas.”( CARRILLO, 2004,p.74).
Como o notório
irlandês – seu amigo pessoal - Carrilo foi um amante da viagem cujas noites que
definia como o instante em que “no conocemos aún a nadie; esas noches en las
que nos encontramos solos con nosotros mismos...”(CARRILLO, 2004, p.268). A
opção por uma vida errante proporcionou a Carrillo uma aplicação singular e
imprevista à eternidade em que está mergulhada a letra. Com frases ‘viajantes’,
exercita e dá a exercício o pensamento e todas as suas pulsações, tendo a arte
como guia e mestre. Em passos de hipnose, esta paixão inquietante revela uma
incessante busca por algo “ más frívolo, más sutil, más pitoresco, más poético
y más positivo: la sensación” (CARRILLO, 2004, p.265). Na diversidade de pontos
captados pela retina, “cada hora del dia, cada capricho del sol, cada cambio de
la atmósfera, modifica radicalmente el paisaje. La Naturaleza es sensible y
variable como una mujer.” (CARRILLO, 2004, p.266), pode-se perceber o olhar
irrequieto e aguçado. Chegar não era o objetivo primordial, o prazer estava na
viagem em si, pois, “el que se va no vuelve nunca. Quien vuelve es outro.”
(CARRILLO, 2004, p.267) - outro porque ousara entregar-se a movimentos rápidos
e inesperados. Admitiu um passo diferente à sua escrita, de retas e curvas
visíveis e provocadoras, exaltando a sensibilidade plástica que se dispersa e
se concentra permitindo a constatação da eternidade das coisas, percebendo como
“minuto por minuto, las luces vesperales van matizando con suavidades
acariciadoras los confines de las enramadas...” (CARRILLO, 2004,p.266).
Entendia que os trajetos e os enredos envolviam o corpo e, por isso, não se
esgotavam. Focalizou, então, o que por ele passava, enfatizando também o
‘entre-corpos’, o ‘entre-imagens’.
Fundiu consciência e inconsciência na superfície do texto. Percebe-se em
Carrillo, claramente, o dito e o não-dito como forças transformadoras e
eficazes na tecitura das tramas, negociando constantemente com o destino.
A marca de
‘andante’ deu a Carrillo oportunidades únicos como em 1895 quando a Real Academia
de la Lengua Española o elegeu Acadêmico Correspondente Estrangeiro pela
Guatemala e 1898 quando o então Presidente do país lhe concedeu o cargo de
Cônsul em Paris e depois em Hamburgo. O destaque vai para uma publicação de
1913, La sonrisa de la Esfinge, que
descreve algumas impressões sobre o Egito. Carrillo acalenta a sedutora atração
exercida pelo Oriente para os decadentistas ao dizer que “hay que perderse
voluntariamente en el laberinto de las callejuelas estrechas. Hay que adoptar
el carácter del sitio con toda su languidez voluptuosa y resignada...Y poço á
poço, sin esfuerzo...mi alma se empapa en los eflúvios del extraño ambiente que
me rodea...” (CARRILLO, 1913, p.25). E, ao perder-se propositalmente em
percursos dedáleos, experimenta sensações das mais surpreendentes:
“...nosotros, los hombres del siglo XX, que vivimos en medio de civilizaciones
más infelices...con su sensualismo ingenuo y su resignación tranqüila,con su
credulidad infantil y su refinamiento artístico...con su tolerancia social y su
fantasia religiosa, el Egipto nos parece como el más satisfecho de los
pueblos...” (CARRILLO, 1913,p.316). A conclusão deste ‘espírito livre’ não
surpreende. Toda a suntuosidade e mistério resgatados da antiga Bizâncio pelos
escritores decadentes são por ele aceitos e incorporados ao tecido da escrita.
O Oriente se abre, assim, como complemento paradoxal para um olhar de leveza e
dinamismo; um olhar que aceita o inexato. A assimilação de todos os elementos
da sensualidade se resumiria numa outra perspectiva – junção das partes em um
todo harmônico – acentuando a virtualidade para despertar um indivíduo
reflexivo e operante: um corpo estranho. Neste mundo marcado pela estesia, tudo
estaria em relação, a partir da mutabilidade e da suspensão. Assim, do que se
julgava unificado, fluiria uma dança de sonhos digna de quem não aceita calar a
agonia da alma amante.
Neste contexto, ganha um destaque todo especial a
figura da mulher. Adornada de jóias e coloridos véus, a mulher oriental mascara
inocência e malícia, sobriedade e embriaguez. De seus gestos quase infantis
emana veneno suficiente para inebriar observadores, salta a bebida dionisíaca
que fará entontecer a todos. Carrillo lembra Scherazade, personagem oriental de
excelência e suas mil e uma noites dizendo:
“Su belleza es uno de sus talismanes.
La belleza, empero, no
basta.
Hay algo de más fuerte, un algo que no está en el cuerpo;
que
es inmaterial, que reside en el fondo oscuro del espíritu; un
algo
imponderable, indefinible, inexplicable...Es una virtud
secreta
hecha de fantasia...es, en suma, la Gracia...” 4.
A jovem prisioneira preconiza a poesia de uma existência imaginativa ao
desenhar um “álbum de imágenes pintorescas y galantes...” (CARRILLO, 2004,
p.55), atraindo para um labirinto sem chave de saída. Junta-se a ela Em La sonrisa de la Esginge, a sedutora figura metade humana, metade
animal que, com o sorriso enigmático e uma postura inerte, parece acompanhar o escritor em suas
perambulações. O sussurro de seus lábios ao ouvido de Carrillo combina passado
e presente num tempo único e eterno. Segredos são desvelados e outros mistérios
se formam a cada esquina mergulhados em fortes essências de volúpia. O jovem
corre não se sabe mais se com os pés, com os olhos ou só com a imaginação
lugares pitorescos que fazem revolver sentimentos e desejos adormecidos. A
palavra se liberta, mergulhando na impetuosidade. A realidade até então
‘segura’ viu-se transformada no caos do sonho – a arte penetra na vida prática.
A respiração gélida da esfinge turva seus sentidos, o que facilita a apreensão
da alma e dos costumes do povo. Mais do que pura descrição, Carrillo, no
artifício de ‘carregar’ a narrativa de um colorido estupendo, aguça a
curiosidade e admiração dos leitores por uma Antigüidade que se quer
reaquecida. Memórias queridas, mesmo do nunca antes vivido. Então, “una
sensación deliciosa de bienaventuranza, de alegria familiar, de tranquilidad de
espíritu, llena el ambiente” (CARRILLO, 1913, p.22) e seu coração inquieto.
Livre de qualquer empecilho ou distração, “ la voz femenina llega á nuestros
oídos” e o viajante se vê absorto por estas “que pasan, rítmicas, y cuyas túnicas ligeras y
ceñidas nos permiten admirar sus cuerpos esbeltos, sus piernas esculturales,
sus senos menudos. A cada instante, en efecto, uma de estas representantes de
la antigua raza egípcia nos sorprende con su gracia de figulina de bronce...”
(CARRILLO, 1913, p.44). O sorriso da Esfinge atrai o caminhante, que a seus
pés, alça vôo desconcertante rumo ao auto-conhecimento. Tendo a frente um
tapete, microcosmo do mundo, Carrillo decifra antigos enigmas e se vê
emaranhado em outros. O sempre novo do insondável lhe é difícil resistir. Os passeios em solo oriental encantam e o perfume
de raros incensos se sobressai a cada página. O leitor, viajante no movimento
dos olhos percorrendo as linhas da esquerda para a direita, de cima para baixo
é dragado num mar de exotismo. Oscar Wilde por certo sorriria ao amigo se a ele
enunciasse em conversa informal tais impressões. O esteta também já tivera um
encontro com este baú de segredos em 1894 com A Esfinge. No longo poema, a bela e silenciosa figura tocaia um
jovem estudante ávido por aventuras. “Através das trevas ondulantes. Intangível
e quieta” (WILDE, 2003, p.958), a estranha gata, sem o menor movimento, “faz
vacilar a lâmpada” (WILDE, 2003, p.964), fazendo o estudante sentir na fronte a
umidade de “terríveis orvalhos da noite e da morte” (WILDE, 2003, p.964).
Sonhos de vida sensual são despertados e ele, apavorado, após uma ‘viagem’ pelo
tempo e espaço bem ao gosto decadentista – no pensamento – ‘expulsa’ de sua
presença a influência mordaz que faz dele “aquilo que não quereria ser”(WILDE,
2003,p.965). Não há como voltar atrás: o calor de uma nova vida já o invadira.
Assim como Gómez Carrillo, o viajante de fato, o estudante wildiano não poderia
resistir à brisa torrencial e apaixonante desta terra. Ambos sabem, porém, que
para gozar de suas delícias é necessário paciência para experimentar “el
encanto de la atmósfera milenaria, el dulce encanto que nos hace vivir en la
realidad como antes solo habíamos vivido con la imaginación...” (CARRILLO,
2004, p.187), pois cada passo parece guardar algo de inverossímil. “Ante las
tapias que esconden los jardines y las fuentes que mi alma codicia, una Honda,
una inexplicable impresión de criatura condenada al destierro que, pela última
vez, contempla” (CARRILLO, 2004,p.190), aliviado, com as memórias de suas
retinas o que deixara de viver pela imaginação.
Gómez Carrillo,
desfilando por diversos gêneros literários – mesmo tendo sido reconhecido pelos
contemporâneos como ‘Príncipe dos Cronistas’ – pinça certos temas e revela,
inevitavelmente, um favoritismo pela ação sutil do instinto feminino que vence
com a sedução e não com a força. A dança - manifestação artística relegada pela
filosofia até então, mas re-aquecida pelos textos nietzschianos -, para ele
presente nas histórias da jovem prisioneira do rei, fixa nas linhas a ternura
de traçados serpentinos que, bailando pela folha de papel, saltam aos olhos,
turvando os sentidos. Para acompanhar esta heroína surge o grande ícone
decadentista, Salomé, exemplo de perda de fronteiras, de dualismo de atitudes,
alegoria do moderno: mil em uma. A dançarina de sangue exaltada na peça em um
ato escrita por Oscar Wilde em língua francesa - mereceu um belíssimo conto
intitulado El triunfo de Salomé,
inserido no livro Tristes idílios,
publicado em 1900. Evocação de um sonho intangível de mulher, a bailarina
protagonista, Marta, nas apresentações, pouco a pouco, se despojava “en
apariencia, de sus velos, de su blancura, de su sonrisa, de sus joyas, de todo
que había en ella, en fin, de material y de humano” (CARRILLO, 2004, p.217). O
público - aturdido e seduzido – aplaudia freneticamente esta doce fatalidade.
Discípula do irmão, autor das composições musicais que executava, ensaia a
autoria de uma – o título do conto- que assim descreve: “es un baile que nada
vale al lado de los tuyos, un puro capricho de mujer mimada...al principio a
medida que lo he ido ensayando, su música se há convertido para mi en uma
obsesión...no puedo escribir la partitura ni menos aún instrumentarla.”
(CARRILLO, 2004,p.221). Luciano aceita se inteirar da obra da irmã e “era un
laberinto caótico de notas fantasticamente descabelladas, cuyo conjunto, no
obstante, contenía uma conmovedoraarmonía llena de gracia y de incoherencia.”
(CARRILLO, 2004,p.221). Com um labor de jardineiro artístico- diz Carrillo-
Luciano apara as flores demasiado grandes e corta as ramas inúteis, para,
juntos, ao cabo de um mês, terminarem El
triunfo de Salomé. Começam os ensaios e Marta, “más inspirada que
nunca...bailaba..todos los dias...erguíase cual un icono de oro al estruendo
metálico de los címbalos que rugían anunciado a su triunfo sanguinario... sus
pies parecían desconocer la fatiga, y, siempre inquietos, marcaban sindarse
punto de reposo el ritmo de la danza sagrada...” (CARRILLO, 2004, p.222/223). O
tempo do texto, portanto, é marcado pela dança, com os episódios se sucedendo
sem muitas margens de repouso. Alcança, assim, uma dimensão notável, já que o
leitor parece adivinhar a que horas as cenas ocorrem, a que temperatura e sob
que atmosfera. O toque especial da caneta do artista apresenta um esboço de
pintura. A dramaticidade é intensificada pela condensação do tempo, com
inúmeras emoções sugeridas e estimuladas num espaço de poucas horas, tal qual a
obra do admirável esteta irlandês. A vida interna do conto assemelha-se a um
sonho de efeito hipnótico. Diz Wilde na conferência Aos estudantes de arte, de 1883:
“O objetivo da arte é tanger a corda
mais divina e secreta
que
produz música na alma; e a cor é, na realidade por si
mesma, uma presença mística sobre as coisas e assemelha-se a
uma
espécie de sentinela...” 5
A partir daqui,
Carrillo, sob a silhueta de Wilde, faz surgir para a jovem, a própria Salomé em
sonhos delirantes “para revelarla el secreteo de la gracia perdurable,
diciéndola lo que había hecho, dos mil años antes, en el palácio del Tetrarca,
con objeto de obtener en recompensa la cabeza recien cortada del
Precursor...Bailé – murmuraba la hija de Herodiada al oído de la artista
dormida – baile largamente...mi cuerpo dorado y ágil plegóse como un junco ante
Herodes; luego se enderezó con un movimiento de sepiente...mis caderas se
estremecieron...” (CARRILLO, 2004, p.223).Marta, embalada pela força da
Princesa ‘hacía todo lo posible por saturarse de la leyenda...repitiéndole sin
cesar las divinas estrofas de Mallarmé, los diálogos complicados de Oscar
Wilde, las pomposas cláululas de Flaubert, las pesadas descripciones de
Huysmans...” (CARRILLO, 2004, p.224). A alma de Salomé parecia ter-se
desprendido do papel, colando-se a jovem a ponto de fazê-la dizer ao irmão:
“Bailaré de tal modo, que los espectadores me ofrecerán sus cabezas.”
(CARRILLO, 2004, p.225). Em embriaguez
dionisíaca, as forças naturais formam um elo musical criando um estado de
acuidade e receptividade de todos os sentidos. A música orquestrada está nos
pés de Marta e em sua mente, conduzindo o leitor ora a um movimento
contemplativo, ora a excitação desta dança ansiosa e viva
Faltava a Marta, porém, a saúde – os pulmões estavam
debilitados, o corpo todo lhe doía - e passados os dias, “sus pulmones se
laceraban; su pulso era cada instante más rápido y más desigual.” (CARRILLO,
2004, p.227), apesar de se mostrar expressão de uma personalidade forte, pronta
a não se deixar governar. O espetáculo havia sido cancelado e no dia da
estréia, após um dia de intensa dor, a jovem acorda às dez, “la hora en que el
público, al verla aparecer vestida de princesa de Israel, cubierta de joyas y
de amuletos, debía aplaudirla...la hora de Salomé...la hora suprema...impusada
por uma fuerza, Marta salió del lecho. Quería bailar...Apoyándose en los
mubles, llegó hasta la venntana y la abrió...el aire de la noche, acaricio, com
su soplo, mortal, los brazos frágiles...” (CARRILLO, 2004, p.229). Marta dançou
vertiginosamente toda a obra no espaço
de alguns minutos e caiu, exausta, diante das estrelas. Cumprira a promessa de
reviver o mito de Salomé e, assim como, a filha de Herodíades, vai de encontro
à morte, impulsionada pelo desejo de superar os limites impostos ao corpo. A
febre interior da jovem trazia uma inquietude que fez com que sua personalidade
se desenvolvesse completamente. O caminho reserva como destino o desastre –
única escolha possível. Sob a luz da Lua, esta ‘deusa’ que se mostra diferente
a cada vez, Marta sofre uma transição. Tal qual a dança das fases da Lua, a
jovem bailarina revela a multiplicidade de identidades de seu coração. Frágil e
decidida, pura e sedutora, mansa e rebelde, exercita uma representação que
exigiu dela acordes novos e ousados. É possível imaginar uma progressão de
suavidade para gestos mais vigorosos e inflamados. O drama de Marta, o de
Salomé, é dar um sentido outro para a existência. Até então, conduzia
perfeitamente suas relações, mas não desenvolvia o jogo de fascinação que tinha
em si. A grande força de independência de Salomé foi o que a todos atraía e
para Marta não poderia ser de outra maneira: descobre pelo sonho a paixão pela
vida. Em sua sede, portanto, possuiu
tudo. A medida da multiplicação das fantasias é a garantia de vida – para sempre. Completa o ciclo, evitando a perplexidade
diante do não-vivido, do mal-estar, do estranhamento produzido pelo
distanciamento de si. O desprezo velado pelos limites levou Marta a buscar o
bálsamo do escondido no vôo mais alto das idéias. Fugiu da dolorosa sensação de
ceder a própria independência, sufocando a força da alma pelo poder do
cotidiano, enterrando os germes da criatividade para lançar-se ao novo.
O efeito conseguido por Carrillo é devastador.A
intensidade é grande e o leitor acompanha o destino de Marta, discípula de
Salomé, que, em vertigem, culminará com a queda que de antemão era tida como
iminente. A exatidão de detalhes produz a ilusão perfeita, lição wildiana em A verdade das máscaras, de 1885.
Adjetivando este mundo exótico onde mergulha o leitor, Carrillo provoca sua curiosidade
e o conquista definitivamente. O final
não surpreende, já que, se trata de alguém que toca a eternidade. Tornando-se
cega, surda e muda para um real insatisfatório que tolhia sua liberdade, Marta,
cabeça erguida, digere a vida. Salomé
continua charada sem solução. Esta nova linguagem deveria ser amada e não
afetada por uma consciência que limita; era linguagem que desejava fugir ao
óbvio para lançar o indivíduo num redemoinho de onde sairia renovado, pleno de
vigor. Assim foi com Marta: Salomé
dançou em sua mente uma vez por todas. Assim foi com Wilde. Enamorado da vida,
ao enxergar toda a sua beleza, quebra o pacto com a consciência que o amarraria
ao ordinário e abraça a ficção como única alternativa para realizar toda a
potencialidade individual. Com este conto, Carrillo, além de homenagear o
amigo, fazendo com que sua personagem experimentasse o real e o ficcional,
exalta esta escolha. Ao se perder para o mundo, Marta encontra o seu lugar. A
regulação para o corpo não mais existia. A jovem figura a sede por coisas
impossíveis. Mesmo repudiado e aviltado pelos vitorianos, Wilde, recusando-se a
descer do palco, não desiste da vida como arte e, com isso, se torna uma
escrita eterna. Seguiu as palavras do filósofo alemão Nietzsche – mesmo sem tê-lo
conhecido, colocando um pouco de arte nos sentimentos, preferindo ousar fazer
uma tentativa com o artificial , da mesma forma como fazem os verdadeiros
artistas da vida (ver NIETZSCHE, 2003, p.68).
Gómez Carrillo, igualmente consegue, com sua profunda
pesquisa da mente humana, que as palavras tenham sistema nervoso, formando um
espetáculo de claridade, de pureza e de simplicidade. Em seu compromisso com a
vida e seu amor pela literatura diz:
“El idioma literario es único e
invariable...en su forma está toda
la
retórica, toda la gramática, todo el ritmo. Todo el ritmo, si, pues
no
basta saberlo comprender y con saberlo leer. Hay, además, que
saberlo
salmodiar...” 7.
Foi um transeunte da vida, “no era fisicamente bello, conforme al cânon
apolíneo, a pesar de sus ojos somadores, fascinantes, y su cabellera...pero fue
hermoso con aquella hermosura que preconizo Wilde: hermosura del pensamiento y
del alma, que ilumina el rostro...” (ESPINOZA, 2007, p.xv). Admiradores,
biógrafos e leitores o têm como um vencedor, para quem nada faltou para
triunfar porque viveu na e para a sensação. Em 1927, faleceu em
Paris para figurar desde então no quadro dos grandes escritores viajantes de
fina agudez visual e simpatia sem par.
Eleito em vida
por Wilde para o círculo literário que desejava montado, Carrillo é ainda hoje
figura de referência para os estudos finisseculares e propiciador de um prazer
inigualável com palavras dançantes.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
BAUDELAIRE,
C. As flores do mal. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
CARRILLO,
E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis
Edinter, 2004.
______________.
La sonrisa de la Esfinge. Madrid:
Renacimiento, 1913.
ESPINOZA,
E.T. Enrique Gómez Carrillo, el cronista
errante. Guatemala: F&G
Editores, 2007.
NIETZSCHE,
F. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.
_____________.
Para além do bem e do mal. São Paulo:
Martin Claret, 2003.
WILDE,
O. Obra Completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.
1 CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.73.
2 CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.271.
3 WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1093.
4 CARRILLO,E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.56.
5 WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1044
7 CARRILLO, E.G. La sonrisa de la Esfinge. Madrid:
Renacimiento, 1913, p.97.
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