domingo, 20 de maio de 2012

Chá literário


 Um texto publicado no livro Fulgurações que traz um delicioso diálogo.

A CIRCUNFERÊNCIA DA GENIALIDADE DE ENRIQUE GÓMEZ CARRILLO NA PARCERIA COM OSCAR WILDE



                   Stella Maria Ferreira

           Doutora em Ciência da Literatura-UFRJ

        



                                                                           “Los artistas que no se creen más grandes que el resto

                                                                                              del mundo, no producen nunca una obra maestra...”1

                                                                             

                A força de uma obra artística está na eterna novidade de seu alcance. Mesmo inserida em determinado contexto histórico, pulsa em suas entrelinhas um alívio de eternidade permitindo a pluralidade de possibilidades, tornando os alicerces, cambiantes.

            No prefácio para seu primoroso retrato, Oscar Wilde diz que a vida imita a arte, instalando a surpresa de um novo olhar sobre a cumplicidade que, até então, só promovia uma utilidade para as manifestações artísticas atendendo às exigências de condições do ordinário. A entrada da arte no círculo da vida permite que não só o corpus, mas o corpo seja ‘contaminado’ pelo desejo do infinito. A Musa seduz e domina de tal maneira o artífice que passa a ser-lhe indesejável tudo que antecedeu o vislumbre da beleza. Intoxicado, resiste à existência cotidiana e se rende ao mundo dos sonhos, com seus matizes e suas formas inusitados. Os traços desta escrita já se tornariam reflexo da liberdade interior experimentada. Os grilhões seriam então doces porque o prenderiam somente a ele mesmo e ao infinito poder criativo; as amarras, leves, trariam o gozo de um destino incerto: a alegria de desejar ardentemente fechar-se em um labirinto; o contentamento de, sabendo-se único, adotar um estilo de vida que trouxesse à tona a graça do irrepetível.  Para Wilde, este artista deixa que os sentidos o guiem, sem contestar. As coisas são também como deveriam ser e não somente como parecem quando apreendidas pelo olfato, pelo tato ou pelos ouvidos. Os olhos escolhem não ver apenas o que está imediatamente à frente, mas o que jaz guardado na imaginação.  O tempo e o espaço se diluem para que a força imaginativa tome um lugar de destaque, por isso, não há repouso ou descanso. O cansaço, porém, não se apodera deste peregrino, a quem não é garantida glória perpétua, pois este amor pela arte aponta, por vezes, o escombro. Ao entregar-se a ela, o artista sabe que pode compor-se como quiser, pode potencializar todas as ações, por isso, não há temor. A obra que perdura é a que chega a ser escrita com sangue.

            Tendo nascido em 1873 filho de um historiador, o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo - crítico, ensaísta, contista – marca presença no meio literário com uma escrita de concordância cromática e fecundidade varonil. Deixando-se levar pela vida, vestiu-se de mudança para conclamar o repúdio à adequação.  Abraçando a ousadia do fim de século XIX, busca ressaltar em seus textos uma luminosidade de incerteza: “ la gran luz que ciega, que matiza de tonos de incendio, que une objetos, que da movimiento, vida y violência al espacio...” (CARRILLO, 2004,p.61). Destaca esta luz que sabe não poder  prescindir de sua companheira inseparável, a treva, para ele fonte inesgotável de surpresas e encantamento. Carrillo trabalha as duas de mãos dadas, permitindo que desvelem ou ocultem detalhes dos objetos num jogo de sedução que repudia o senso comum.  Destaca no ensaio La critica y los críticos en Paris :



“...muchas veces no conocemos bien una calle o un barrio sino cuando lo hemos visto vivir su vida nocturna...cunado las luces se encienden, dijérase que una existencia cominenza más brillante, más febril, más seductora que la del dia...No son solo Paris, Barcelona, Milan, Buenos Aires y las demás Metrópolis noctâmbulas las que merecen ser observadas a la claridad de las lámpadas. En pueblos muy tranquilos, en villas viejas y casi muertas de países muy lejanos, cuando la sombra invade la calle e cuando los interiores revelan algo de su mistério...” 2.



Assim, consegue que do corpo das palavras emane uma brincadeira em que se diluem sons e aromas. Instigantes e incômodos, seus escritos impelem ao movimento: a alguns indivíduos emprestando passadas largas e decididas, a outros, passos leves e tímidos. Inaugura para este seleto grupo de ‘eleitos’ a possibilidade de um  rumo ao sempre desconhecido, frisando a graça deste caminho escuro em que a única luz que brilha é a da arte.  Tomado pelo sentido de plasticidade, valorizou a impressão da realidade como propiciadora de emoção única, buscando nesta singularidade a porta para grandes e ilimitadas realizações.  O contemporâneo Wilde assim resume:



                                   “A Arte...tem uma vida independente, como a tem o Pensamento, e

                                               se desenrola simplesmente em um sentido que lhe é peculiar...

                                               Longe de ser uma criação de seu tempo, está geralmente em oposição

                                               direta a ele...Por vezes volta sobre seus passos e ressuscita alguma forma

                                               antiga, como sucedeu no movimento arcaico da última arte grega e no

                                               movimento pré-rafaelita contemporâneo. Outras vezes adianta-se

                                               absolutamente à sua época e produz uma obra que outro século posterior

                                               compreenderá, apreciará e gozará...” 3

                                                              

A forte ressonância impressionista que busca uma negociação com as diferenças, traz vibrações ao ar desta escrita, “...mezclando o sobreponiendo en el lienzo los tonos más variados, las notas más incoherentes, y haciendo brotar del conjunto transparencias policromas tales cual las que en la vida nos sorprenden y nos encantan....”, diz em El impresionismo, crítica de arte de 1921(CARRILLO, 2004). Trabalhando a frase com meticuloso carinho, a exemplo de Wilde e seus famosos epigramas, revela cores para as vogais e consoantes: umas lhe parecem claras, outras morenas, todas, porém, a serviço da pureza de uma arte de descoberta. Esculpe, esmalta, grava, pinta as palavras como gemas preciosas prontas a adivinhar o insólito e atestar o caráter de insubordinação que queria o artista para a literatura. No triunfo destes detalhes, a impressão estética ganha corpo e forma a custa de paciência e dedicação, cujo prêmio é o atrevimento próprio da escrita avassaladora característica do movimento decadente. Escrita como a wildiana em que “la nota triunfante de su singularidad es la extremidad en las medias tintas.”( CARRILLO, 2004,p.74).

 Como o notório irlandês – seu amigo pessoal - Carrilo foi um amante da viagem cujas noites que definia como o instante em que “no conocemos aún a nadie; esas noches en las que nos encontramos solos con nosotros mismos...”(CARRILLO, 2004, p.268). A opção por uma vida errante proporcionou a Carrillo uma aplicação singular e imprevista à eternidade em que está mergulhada a letra. Com frases ‘viajantes’, exercita e dá a exercício o pensamento e todas as suas pulsações, tendo a arte como guia e mestre. Em passos de hipnose, esta paixão inquietante revela uma incessante busca por algo “ más frívolo, más sutil, más pitoresco, más poético y más positivo: la sensación” (CARRILLO, 2004, p.265). Na diversidade de pontos captados pela retina, “cada hora del dia, cada capricho del sol, cada cambio de la atmósfera, modifica radicalmente el paisaje. La Naturaleza es sensible y variable como una mujer.” (CARRILLO, 2004, p.266), pode-se perceber o olhar irrequieto e aguçado. Chegar não era o objetivo primordial, o prazer estava na viagem em si, pois, “el que se va no vuelve nunca. Quien vuelve es outro.” (CARRILLO, 2004, p.267) - outro porque ousara entregar-se a movimentos rápidos e inesperados. Admitiu um passo diferente à sua escrita, de retas e curvas visíveis e provocadoras, exaltando a sensibilidade plástica que se dispersa e se concentra permitindo a constatação da eternidade das coisas, percebendo como “minuto por minuto, las luces vesperales van matizando con suavidades acariciadoras los confines de las enramadas...” (CARRILLO, 2004,p.266). Entendia que os trajetos e os enredos envolviam o corpo e, por isso, não se esgotavam. Focalizou, então, o que por ele passava, enfatizando também o ‘entre-corpos’, o ‘entre-imagens’.  Fundiu consciência e inconsciência na superfície do texto. Percebe-se em Carrillo, claramente, o dito e o não-dito como forças transformadoras e eficazes na tecitura das tramas, negociando constantemente com o destino.

 A marca de ‘andante’ deu a Carrillo oportunidades únicos como em 1895 quando a Real Academia de la Lengua Española o elegeu Acadêmico Correspondente Estrangeiro pela Guatemala e 1898 quando o então Presidente do país lhe concedeu o cargo de Cônsul em Paris e depois em Hamburgo. O destaque vai para uma publicação de 1913, La sonrisa de la Esfinge, que descreve algumas impressões sobre o Egito. Carrillo acalenta a sedutora atração exercida pelo Oriente para os decadentistas ao dizer que “hay que perderse voluntariamente en el laberinto de las callejuelas estrechas. Hay que adoptar el carácter del sitio con toda su languidez voluptuosa y resignada...Y poço á poço, sin esfuerzo...mi alma se empapa en los eflúvios del extraño ambiente que me rodea...” (CARRILLO, 1913, p.25). E, ao perder-se propositalmente em percursos dedáleos, experimenta sensações das mais surpreendentes: “...nosotros, los hombres del siglo XX, que vivimos en medio de civilizaciones más infelices...con su sensualismo ingenuo y su resignación tranqüila,con su credulidad infantil y su refinamiento artístico...con su tolerancia social y su fantasia religiosa, el Egipto nos parece como el más satisfecho de los pueblos...” (CARRILLO, 1913,p.316). A conclusão deste ‘espírito livre’ não surpreende. Toda a suntuosidade e mistério resgatados da antiga Bizâncio pelos escritores decadentes são por ele aceitos e incorporados ao tecido da escrita. O Oriente se abre, assim, como complemento paradoxal para um olhar de leveza e dinamismo; um olhar que aceita o inexato. A assimilação de todos os elementos da sensualidade se resumiria numa outra perspectiva – junção das partes em um todo harmônico – acentuando a virtualidade para despertar um indivíduo reflexivo e operante: um corpo estranho. Neste mundo marcado pela estesia, tudo estaria em relação, a partir da mutabilidade e da suspensão. Assim, do que se julgava unificado, fluiria uma dança de sonhos digna de quem não aceita calar a agonia da alma amante.

Neste contexto, ganha um destaque todo especial a figura da mulher. Adornada de jóias e coloridos véus, a mulher oriental mascara inocência e malícia, sobriedade e embriaguez. De seus gestos quase infantis emana veneno suficiente para inebriar observadores, salta a bebida dionisíaca que fará entontecer a todos. Carrillo lembra Scherazade, personagem oriental de excelência e suas mil e uma noites dizendo:



                                   “Su belleza es uno de sus talismanes. La belleza, empero, no

                                               basta. Hay algo de más fuerte, un algo que no está en el cuerpo;

                                               que es inmaterial, que reside en el fondo oscuro del espíritu; un

                                               algo imponderable, indefinible, inexplicable...Es una virtud

                                               secreta hecha de fantasia...es, en suma, la Gracia...” 4.



A jovem prisioneira preconiza a poesia de uma existência imaginativa ao desenhar um “álbum de imágenes pintorescas y galantes...” (CARRILLO, 2004, p.55), atraindo para um labirinto sem chave de saída.  Junta-se a ela Em La sonrisa de la Esginge, a sedutora figura metade humana, metade animal que, com o sorriso enigmático e uma postura inerte,  parece acompanhar o escritor em suas perambulações. O sussurro de seus lábios ao ouvido de Carrillo combina passado e presente num tempo único e eterno. Segredos são desvelados e outros mistérios se formam a cada esquina mergulhados em fortes essências de volúpia. O jovem corre não se sabe mais se com os pés, com os olhos ou só com a imaginação lugares pitorescos que fazem revolver sentimentos e desejos adormecidos. A palavra se liberta, mergulhando na impetuosidade. A realidade até então ‘segura’ viu-se transformada no caos do sonho – a arte penetra na vida prática. A respiração gélida da esfinge turva seus sentidos, o que facilita a apreensão da alma e dos costumes do povo. Mais do que pura descrição, Carrillo, no artifício de ‘carregar’ a narrativa de um colorido estupendo, aguça a curiosidade e admiração dos leitores por uma Antigüidade que se quer reaquecida. Memórias queridas, mesmo do nunca antes vivido. Então, “una sensación deliciosa de bienaventuranza, de alegria familiar, de tranquilidad de espíritu, llena el ambiente” (CARRILLO, 1913, p.22) e seu coração inquieto. Livre de qualquer empecilho ou distração, “ la voz femenina llega á nuestros oídos” e o viajante se vê absorto por estas “que  pasan, rítmicas, y cuyas túnicas ligeras y ceñidas nos permiten admirar sus cuerpos esbeltos, sus piernas esculturales, sus senos menudos. A cada instante, en efecto, uma de estas representantes de la antigua raza egípcia nos sorprende con su gracia de figulina de bronce...” (CARRILLO, 1913, p.44). O sorriso da Esfinge atrai o caminhante, que a seus pés, alça vôo desconcertante rumo ao auto-conhecimento. Tendo a frente um tapete, microcosmo do mundo, Carrillo decifra antigos enigmas e se vê emaranhado em outros. O sempre novo do insondável lhe é difícil resistir.  Os passeios em solo oriental encantam e o perfume de raros incensos se sobressai a cada página. O leitor, viajante no movimento dos olhos percorrendo as linhas da esquerda para a direita, de cima para baixo é dragado num mar de exotismo. Oscar Wilde por certo sorriria ao amigo se a ele enunciasse em conversa informal tais impressões. O esteta também já tivera um encontro com este baú de segredos em 1894 com A Esfinge. No longo poema, a bela e silenciosa figura tocaia um jovem estudante ávido por aventuras. “Através das trevas ondulantes. Intangível e quieta” (WILDE, 2003, p.958), a estranha gata, sem o menor movimento, “faz vacilar a lâmpada” (WILDE, 2003, p.964), fazendo o estudante sentir na fronte a umidade de “terríveis orvalhos da noite e da morte” (WILDE, 2003, p.964). Sonhos de vida sensual são despertados e ele, apavorado, após uma ‘viagem’ pelo tempo e espaço bem ao gosto decadentista – no pensamento – ‘expulsa’ de sua presença a influência mordaz que faz dele “aquilo que não quereria ser”(WILDE, 2003,p.965). Não há como voltar atrás: o calor de uma nova vida já o invadira. Assim como Gómez Carrillo, o viajante de fato, o estudante wildiano não poderia resistir à brisa torrencial e apaixonante desta terra. Ambos sabem, porém, que para gozar de suas delícias é necessário paciência para experimentar “el encanto de la atmósfera milenaria, el dulce encanto que nos hace vivir en la realidad como antes solo habíamos vivido con la imaginación...” (CARRILLO, 2004, p.187), pois cada passo parece guardar algo de inverossímil. “Ante las tapias que esconden los jardines y las fuentes que mi alma codicia, una Honda, una inexplicable impresión de criatura condenada al destierro que, pela última vez, contempla” (CARRILLO, 2004,p.190), aliviado, com as memórias de suas retinas o que deixara de viver pela imaginação.

 Gómez Carrillo, desfilando por diversos gêneros literários – mesmo tendo sido reconhecido pelos contemporâneos como ‘Príncipe dos Cronistas’ – pinça certos temas e revela, inevitavelmente, um favoritismo pela ação sutil do instinto feminino que vence com a sedução e não com a força. A dança - manifestação artística relegada pela filosofia até então, mas re-aquecida pelos textos nietzschianos -, para ele presente nas histórias da jovem prisioneira do rei, fixa nas linhas a ternura de traçados serpentinos que, bailando pela folha de papel, saltam aos olhos, turvando os sentidos. Para acompanhar esta heroína surge o grande ícone decadentista, Salomé, exemplo de perda de fronteiras, de dualismo de atitudes, alegoria do moderno: mil em uma. A dançarina de sangue exaltada na peça em um ato escrita por Oscar Wilde em língua francesa - mereceu um belíssimo conto intitulado El triunfo de Salomé, inserido no livro Tristes idílios, publicado em 1900. Evocação de um sonho intangível de mulher, a bailarina protagonista, Marta, nas apresentações, pouco a pouco, se despojava “en apariencia, de sus velos, de su blancura, de su sonrisa, de sus joyas, de todo que había en ella, en fin, de material y de humano” (CARRILLO, 2004, p.217). O público - aturdido e seduzido – aplaudia freneticamente esta doce fatalidade. Discípula do irmão, autor das composições musicais que executava, ensaia a autoria de uma – o título do conto- que assim descreve: “es un baile que nada vale al lado de los tuyos, un puro capricho de mujer mimada...al principio a medida que lo he ido ensayando, su música se há convertido para mi en uma obsesión...no puedo escribir la partitura ni menos aún instrumentarla.” (CARRILLO, 2004,p.221). Luciano aceita se inteirar da obra da irmã e “era un laberinto caótico de notas fantasticamente descabelladas, cuyo conjunto, no obstante, contenía uma conmovedoraarmonía llena de gracia y de incoherencia.” (CARRILLO, 2004,p.221). Com um labor de jardineiro artístico- diz Carrillo- Luciano apara as flores demasiado grandes e corta as ramas inúteis, para, juntos, ao cabo de um mês, terminarem El triunfo de Salomé. Começam os ensaios e Marta, “más inspirada que nunca...bailaba..todos los dias...erguíase cual un icono de oro al estruendo metálico de los címbalos que rugían anunciado a su triunfo sanguinario... sus pies parecían desconocer la fatiga, y, siempre inquietos, marcaban sindarse punto de reposo el ritmo de la danza sagrada...” (CARRILLO, 2004, p.222/223). O tempo do texto, portanto, é marcado pela dança, com os episódios se sucedendo sem muitas margens de repouso. Alcança, assim, uma dimensão notável, já que o leitor parece adivinhar a que horas as cenas ocorrem, a que temperatura e sob que atmosfera. O toque especial da caneta do artista apresenta um esboço de pintura. A dramaticidade é intensificada pela condensação do tempo, com inúmeras emoções sugeridas e estimuladas num espaço de poucas horas, tal qual a obra do admirável esteta irlandês. A vida interna do conto assemelha-se a um sonho de efeito hipnótico. Diz Wilde na conferência Aos estudantes de arte, de 1883:



                                               “O objetivo da arte é tanger a corda mais divina e secreta

                                                               que produz música na alma; e a cor é, na realidade por si

                                                                   mesma, uma presença mística sobre as coisas e assemelha-se a

                                                               uma espécie de sentinela...” 5



 A partir daqui, Carrillo, sob a silhueta de Wilde, faz surgir para a jovem, a própria Salomé em sonhos delirantes “para revelarla el secreteo de la gracia perdurable, diciéndola lo que había hecho, dos mil años antes, en el palácio del Tetrarca, con objeto de obtener en recompensa la cabeza recien cortada del Precursor...Bailé – murmuraba la hija de Herodiada al oído de la artista dormida – baile largamente...mi cuerpo dorado y ágil plegóse como un junco ante Herodes; luego se enderezó con un movimiento de sepiente...mis caderas se estremecieron...” (CARRILLO, 2004, p.223).Marta, embalada pela força da Princesa ‘hacía todo lo posible por saturarse de la leyenda...repitiéndole sin cesar las divinas estrofas de Mallarmé, los diálogos complicados de Oscar Wilde, las pomposas cláululas de Flaubert, las pesadas descripciones de Huysmans...” (CARRILLO, 2004, p.224). A alma de Salomé parecia ter-se desprendido do papel, colando-se a jovem a ponto de fazê-la dizer ao irmão: “Bailaré de tal modo, que los espectadores me ofrecerán sus cabezas.” (CARRILLO, 2004, p.225).  Em embriaguez dionisíaca, as forças naturais formam um elo musical criando um estado de acuidade e receptividade de todos os sentidos. A música orquestrada está nos pés de Marta e em sua mente, conduzindo o leitor ora a um movimento contemplativo, ora a excitação desta dança ansiosa e viva

Faltava a Marta, porém, a saúde – os pulmões estavam debilitados, o corpo todo lhe doía - e passados os dias, “sus pulmones se laceraban; su pulso era cada instante más rápido y más desigual.” (CARRILLO, 2004, p.227), apesar de se mostrar expressão de uma personalidade forte, pronta a não se deixar governar. O espetáculo havia sido cancelado e no dia da estréia, após um dia de intensa dor, a jovem acorda às dez, “la hora en que el público, al verla aparecer vestida de princesa de Israel, cubierta de joyas y de amuletos, debía aplaudirla...la hora de Salomé...la hora suprema...impusada por uma fuerza, Marta salió del lecho. Quería bailar...Apoyándose en los mubles, llegó hasta la venntana y la abrió...el aire de la noche, acaricio, com su soplo, mortal, los brazos frágiles...” (CARRILLO, 2004, p.229). Marta dançou vertiginosamente toda a obra  no espaço de alguns minutos e caiu, exausta, diante das estrelas. Cumprira a promessa de reviver o mito de Salomé e, assim como, a filha de Herodíades, vai de encontro à morte, impulsionada pelo desejo de superar os limites impostos ao corpo. A febre interior da jovem trazia uma inquietude que fez com que sua personalidade se desenvolvesse completamente. O caminho reserva como destino o desastre – única escolha possível. Sob a luz da Lua, esta ‘deusa’ que se mostra diferente a cada vez, Marta sofre uma transição. Tal qual a dança das fases da Lua, a jovem bailarina revela a multiplicidade de identidades de seu coração. Frágil e decidida, pura e sedutora, mansa e rebelde, exercita uma representação que exigiu dela acordes novos e ousados. É possível imaginar uma progressão de suavidade para gestos mais vigorosos e inflamados. O drama de Marta, o de Salomé, é dar um sentido outro para a existência. Até então, conduzia perfeitamente suas relações, mas não desenvolvia o jogo de fascinação que tinha em si. A grande força de independência de Salomé foi o que a todos atraía e para Marta não poderia ser de outra maneira: descobre pelo sonho a paixão pela vida.  Em sua sede, portanto, possuiu tudo. A medida da multiplicação das fantasias é a garantia de vida –  para sempre. Completa o ciclo, evitando a perplexidade diante do não-vivido, do mal-estar, do estranhamento produzido pelo distanciamento de si. O desprezo velado pelos limites levou Marta a buscar o bálsamo do escondido no vôo mais alto das idéias. Fugiu da dolorosa sensação de ceder a própria independência, sufocando a força da alma pelo poder do cotidiano, enterrando os germes da criatividade para lançar-se ao novo.

O efeito conseguido por Carrillo é devastador.A intensidade é grande e o leitor acompanha o destino de Marta, discípula de Salomé, que, em vertigem, culminará com a queda que de antemão era tida como iminente. A exatidão de detalhes produz a ilusão perfeita, lição wildiana em A verdade das máscaras, de 1885. Adjetivando este mundo exótico onde mergulha o leitor, Carrillo provoca sua curiosidade e o conquista definitivamente.  O final não surpreende, já que, se trata de alguém que toca a eternidade. Tornando-se cega, surda e muda para um real insatisfatório que tolhia sua liberdade, Marta, cabeça erguida,  digere a vida. Salomé continua charada sem solução. Esta nova linguagem deveria ser amada e não afetada por uma consciência que limita; era linguagem que desejava fugir ao óbvio para lançar o indivíduo num redemoinho de onde sairia renovado, pleno de vigor.  Assim foi com Marta: Salomé dançou em sua mente uma vez por todas. Assim foi com Wilde. Enamorado da vida, ao enxergar toda a sua beleza, quebra o pacto com a consciência que o amarraria ao ordinário e abraça a ficção como única alternativa para realizar toda a potencialidade individual. Com este conto, Carrillo, além de homenagear o amigo, fazendo com que sua personagem experimentasse o real e o ficcional, exalta esta escolha. Ao se perder para o mundo, Marta encontra o seu lugar. A regulação para o corpo não mais existia. A jovem figura a sede por coisas impossíveis. Mesmo repudiado e aviltado pelos vitorianos, Wilde, recusando-se a descer do palco, não desiste da vida como arte e, com isso, se torna uma escrita eterna. Seguiu as palavras do filósofo alemão Nietzsche – mesmo sem tê-lo conhecido, colocando um pouco de arte nos sentimentos, preferindo ousar fazer uma tentativa com o artificial , da mesma forma como fazem os verdadeiros artistas da vida (ver NIETZSCHE, 2003, p.68).

Gómez Carrillo, igualmente consegue, com sua profunda pesquisa da mente humana, que as palavras tenham sistema nervoso, formando um espetáculo de claridade, de pureza e de simplicidade. Em seu compromisso com a vida e seu amor pela literatura diz:

                                   “El idioma literario es único e invariable...en su forma está toda

                                               la retórica, toda la gramática, todo el ritmo. Todo el ritmo, si, pues

                                               no basta saberlo comprender y con saberlo leer. Hay, además, que

                                               saberlo salmodiar...” 7.



Foi um transeunte da vida, “no era fisicamente bello, conforme al cânon apolíneo, a pesar de sus ojos somadores, fascinantes, y su cabellera...pero fue hermoso con aquella hermosura que preconizo Wilde: hermosura del pensamiento y del alma, que ilumina el rostro...” (ESPINOZA, 2007, p.xv). Admiradores, biógrafos e leitores o têm como um vencedor, para quem nada faltou para triunfar porque viveu na e para a sensação. Em 1927, faleceu em Paris para figurar desde então no quadro dos grandes escritores viajantes de fina agudez visual e simpatia sem par.                                                    

 Eleito em vida por Wilde para o círculo literário que desejava montado, Carrillo é ainda hoje figura de referência para os estudos finisseculares e propiciador de um prazer inigualável com palavras dançantes.





























REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Martin Claret, 2002.



CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004.

______________. La sonrisa de la Esfinge. Madrid: Renacimiento, 1913.



ESPINOZA, E.T. Enrique Gómez Carrillo, el cronista errante. Guatemala: F&G

     Editores, 2007.



NIETZSCHE, F. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.

_____________. Para além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2003.



WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.























1              CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.73.
2              CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.271.
3              WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1093.
4              CARRILLO,E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter, 2004, p.56.
5              WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1044
7              CARRILLO, E.G. La sonrisa de la Esfinge. Madrid: Renacimiento, 1913, p.97.

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