sábado, 26 de maio de 2012

O João do Rio I




                                






ALMA  ENCANTADORAMENTE  POÉTICA



                                                                                Stella Maria Ferreira





                                            Dedicatória



À João do Rio, leitor de olhos imaginativos cujo discurso ‘alternativo’ tornou a percepção mais extensa e intensa; que escalou o zênite de cada dia entre a aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito era o infinito, são dedicadas estas páginas de simplicidade. 









O que confere ‘nobreza’(...)é a coragem sem o desejo

                                                                     das  honras; é  um  contentamento de si  mesmo  que

                                                                     transborda e se prodigaliza aos homens e às coisas(...)”1.



Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada personagem, o que não acontece na vida.

 A força de uma vida que se renda definitivamente à Arte a ponto de confundir-se com ela parece ter sido o caminho buscado por alguns escritores de final do século XIX, que viveram sob a égide do colapso das expectativas. O texto resultante desta experiência não se caracteriza pela precisão e se diverte com uma lógica circular, já que indiferente ao avanço do tempo. As linhas escarlates e serpentinas que se seguem deslizam do papel para destacar o traçado de palavras que comporta sinuosidades desconcertantes de contraditória maestria. É texto de quem do cotidiano faz o extraordinário ao deixar-se ser arte, ou antes, deixar-se ser, pura e simplesmente. É tensão constante de quem toma o risco de inventar-se a cada dia, de desfazer-se de chaves sem descanso, sem repouso; é fruto da vertigem de quem se vê preso por querer numa teia que atrai porque assusta e surpreende.

         O deslocamento expatria este artista; sujeito e objeto se confundem em uma existência cujo fim é o de eliminar a distância entre o fazer poético e o viver poético. É escrita de quem se vê nos outros. Assim, perdido na tradução dos signos, o cronista-poeta procura um ‘lugar’, sabendo-se espectador e ator. Sua é a linguagem que remete para si mesma de maneira infinita, entreabrindo-se e sendo direcionada pela musicalidade das palavras a partir de suas sílabas.

         Joe, José Antônio José,João Coelho, Caran D’Ache, Simeão e, por fim, João Paulo Alberto Coelho Barreto  -  tendo nascido em 5 de agosto de 1881 - registra-se definitivamente na história literária de finais do século XIX como João do Rio. A cidade que mereceu seu atento olhar, sua crítica ferina e seu amor incondicional teve, afinal, a alma do artista. A ela ele se entregou e este dramático enlace rendeu aos leitores escritos atormentados, elegantes, sensuais, paradoxais, sutis e bizarros.

Palco de amores e dissabores, as ruas do Rio de Janeiro finissecular ganham nas mãos de João um colorido de sangue e o encanto da escrita é resultado da observação de amante de olhar transitivo, que reconhece por entre as montras a estranha beleza do escombro. Frente à modernidade, torna-se um pensador da cidade – um leitor de seus signos – e, desejando ir aos extremos, fugindo do corriqueiro, quer contar uma capital que acelera o seu ritmo projetando-se para o mundo.

            O fio aglutinador dos textos de João do Rio é um painel que não se curva ao cotidiano e que, pela verticalidade, preenche incontrolavelmente qualquer rigidez com leveza e alegria interior, divertindo os espíritos ansiosos por surpresas. Das cinzas que atapetavam os primeiros anos do século XIX, João manteve um espaço mágico para a eternidade de vida que desejava ganhar, procurando ocultar, sim, qualquer sentença de morte que insistisse em se introduzir no gosto de vida de seus textos, que como esconderijo, ofertava.

            Cheio de boas intenções, João lidou com a alegria e a morte, aparentemente com o mesmo ardor. Seu esforço foi em direção à uma escritura que se constituísse diferença; transgressão que apontasse para as várias máscaras refletidas no prazer instaurador de uma nova visão para o corpus. Textos destruidores da forma cristalizada, que se distinguem pelo que possuem, bem como pelo que excluem. A serviço da in-consciência, batalham pela constante interrogação acerca dos vazios. Apesar de estar inserido num conturbado momento  histórico, João não se deixou vincular ou depender, produzindo em sua escrita efeitos encantatórios sobre o que pode um corpo.

 Paulo Barreto promoveu uma arquitetura outra para a cidade maravilhosa em inícios do século XX. Suas crônicas e contos reconstituiriam o charme da cidade que se buscava maquilada em Paris. Diz Renato Cordeiro Gomes em João do Rio – Vielas do vício, ruas da graça :



       A cidade do Rio de Janeiro, também em metamorfose como um palco em que se monta uma máscara – figurino de uma mistificação do moderno -, convoca o artista para representar travestido de jornalista. Estilizando a experiência que se atrela ao trabalho, Paulo Barreto, aliás João do Rio, impõe-se a criação de ficções tratadas como se fossem verdadeiras, graças à utilidade prática dessas criações, máscaras como parte indispensável da vida (...) – ele pode falar em nome da cidade, na escrita que também é máscara.”2



 Das lentes deste observador irônico, teríamos a fotografia em perspectivas do real cotidiano carioca. Multiplicou-se para sentir e tingir sua ação estilizada num mundo dogmatizado. Psicólogo urbano, sua crônica poética foi subversão porque não fundada na cronologia, mas no tempo da imaginação que é um – o do instante, o do agora. Ao perambular pela rua em busca de histórias, exercita seu texto como movimento circular, eternamente único; a importância originária do tempo marcado cede lugar a uma crítica que escrutiniza o dia-a-dia, ameaçando e desestruturando a ordem, ficcionalizando o real. Da experiência de observador, amplia a ação como contista. Optando pela experiência do corpo como escritura, mistura-se a indivíduos apressados e a flânerie ganha o charme e toque cariocas: “é vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas(...)”3 .

         A coleção de instantâneos coletados na rua resultou em A alma encantadora das ruas4 e, assim, na esteira de Wilde, perfeito dândi, oferece ao público um cenário poético para uma cidade cheia de contrastes: “(...)nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor pela rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas(...)” (p.3).*

         O passeio pelas páginas parecem corresponder à nossa memória sonhada de como Oscar Wilde, espírito viajante, deveria se deliciar “falando aos notáveis e aos humildes com doçura(...)conhecendo cada rua(...)cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos(...)” (p.6), ou mesmo em silêncio, pensando com os pés, como Nietzsche, afinal, “(...)a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões(...)” (p.18). A voz deste narrador, “como o flanêur buscando um flagrante, confere agilidade ao relato, que se desenvolve espontaneamente em tom de conversa descontraída.” (MESSER, 2002,p.xvi).

            1.1. Almas  encantadoras



Das muitas visitas aos caminhantes ( mercadores de livros, músicos ambulantes, cocheiros...), nossa atenção recai sobre as mulheres: as Mariposas do luxo5 que, surgem no momento, “em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia(...)” (p.101). Os relógios batem seis horas, “na artéria estreita cai a luz acizentada das primeiras sombras.” (p.101), e então as raparigas, operárias surgem, devagar, “quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando(...)” (p.102). São trabalhadoras que após horas de árdua labuta passam parecendo pássaros assustados, “tontos de luxo, inebriados de olhar(...)” (p.102). Olham o que possivelmente nunca chegaram a comprar, olham o que seu trabalho permite que outras mulheres vistam e usem; “são as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca(...)e então, todo dia, (...)haveis de vê-las passar(...)A mocidade dá-lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito de andar...os vestidos são pobres(...)mas essa miséria é limpa(...)” (p.102). Paradoxalmente belas, donas de direito do luxo que a outros proporcionam, têm na rua a oferta do “foco em torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas(...)” (p.102). A rua é seu lugar de sonho, onde as cores mais variadas quase ofuscam o olhar curioso e ávido de vida. As montras “de rendas, montras de perfumes, montras de toilettes, montras de flores – a chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las(...)” (p.104). Na hora indecisa, imprecisa em seus contornos de luz, estas mulheres experimentavam-se sedutoras: “morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes nega na polidez espelhante dos vidros(...)” (p.103). O brilho alucinante das vitrines, arco-íris furta-cor, fazia o contorno de seus corpos dançarem, cobrindo e descobrindo uma alegria quase infantil, mas com o toque essencial da malícia de Salomé: “a alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante dos adereços(...)” (p.104). À dançarina dos sete véus nada se negava e seu tédio só fora aplacado diante daquele que não se deixara encantar. À estas moças, tudo fora negado em nome do progresso e da modernidade. Seu tédio, no entanto, se aliviava com o sonho e o desejo do mundo ‘irreal’; do  mundo das impossibilidades, do mundo da pura beleza. A noite, hora reveladora para os decadentistas, hora dos desejos proibidos era o palco perfeito para elas, prontas para uma

cena já desenhada inúmeras vezes na mente, com as linhas memorizadas.  Mas, “um suspiro mais forte – a coragem da que se libertou da hipnose – fá-las desapegar-se do lugar(...) A rua delira de novo...Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito tempo(...)” (p.105). O banhar-se no mar da imaginação traz uma alegria febril que ‘precisa’ ser interrompida pelo movimento da consciência. Para que se restabeleça a ‘ordem’ é preciso que elas se ‘vejam’ novamente que “a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano, senão a miragem do esplendor(...)” (p.105). O lugar do pensamento, hora ociosa, era cada vez mais sufocado pela necessidade de produzir, de lucrar. E, João, um tanto melancólico, finaliza, “e haveis de vê-las passar, as mariposas do Luxo, no seu passinho modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas(...)” (p.105), para um destino que o artista gritava não ser o de ninguém. A sobrevivência dependia da condução da vida como arte, pura e simplesmente manifestação artística. O tom leva a marca do wildiano A alma do homem sob o socialismo que reclamava para cada indivíduo uma situação econômica confortável que lhe garantisse a realização de todo o seu potencial criativo. Só numa sociedade em que os direitos e acessos fossem comuns poderia a vida se compor como obra de arte que é. João do Rio, ao trazer “a crônica viva dos seres que se movimentavam no centro cultural do Brasil e o habitavam nas primeiras décadas do século XX” (MESSER, 2002,introdução-p.xxxv), paradoxalmente desmascara e seduz, quando ressalta a vulnerabilidade do senso comum e a arte como pungente resposta de desconstrução para que as paixões mais íntimas pudessem ser reveladas. As moças voam por sobre um real por elas sustentado – com o árduo trabalho – e a elas negado. Se não dispunham de tempo para sonhar porque eram constantemente interrompidas pela culpa do desperdício, como poderiam exercitar no pensamento uma vida mais plena. A urgência da hora de escapar ao constrangimento de olhares acusadores prevenia as jovens de gozar da liberdade a que foram destinadas. Escravas do lucro, elas acorrentavam os anseios do presente em nome de um futuro que poderia nunca chegar.

         Pelos labirintos de uma escrita de delícias, João do Rio afirmava e reafirmava continuamente a imperfeição de quem direciona sua vida pela consciência, sepultando os instintos, condenando seu progresso pessoal. O corpo de João também foi sulcado pela força da pena; ele também foi um condenado que descobriu a alegria destes grilhões libertadores e, nós, os premiados leitores, só tivemos a ganhar com sua criação que emanou de sua obra.















                                 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



COUTINHO,L.E.B; CORRÊA, I.E.J. O labirinto finissecular e as idéias do esteta.RJ:

7 Letras,2004.



GOMES, R.C.João do Rio -  vielas do vício, ruas da graça.RJ: Relume Dumará, 1996.



MESSER, O. A cidade e a modernidade: João do Rio.Campinas: Remate de Males, 1990.


RIO,J.do. A alma encantadora das ruas. RJ: Secretaria Municipal de Cultura, 1987.


1 NIETZSCHE, 2004, p.70- aforismo 55
2 GOMES, R.C., 1996,p.49
3 RIO,J. do, 1987, p.5.
4 Ibidem.
* Todas as páginas apresentadas entre parênteses a seguir são parte de A alma encantadora das ruas.
5 Em ibidem.

Um comentário:

  1. João do Rio, escritor singular do nosso país, que desmascara e desnuda a alma encantadora das ruas do RJ.

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