ALMA
ENCANTADORAMENTE POÉTICA
Stella
Maria Ferreira
Dedicatória
À João do Rio, leitor de olhos imaginativos cujo discurso
‘alternativo’ tornou a percepção mais extensa e intensa; que escalou o zênite
de cada dia entre a aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito
era o infinito, são dedicadas estas páginas de simplicidade.
“O que
confere ‘nobreza’(...)é a coragem sem o desejo
das honras; é
um contentamento de si mesmo
que
transborda
e se prodigaliza aos homens e às coisas(...)”1.
Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de
sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a
tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se
desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí
residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem
externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada
personagem, o que não acontece na vida.
A força de uma vida
que se renda definitivamente à Arte a ponto de confundir-se com ela parece ter
sido o caminho buscado por alguns escritores de final do século XIX, que
viveram sob a égide do colapso das expectativas. O texto resultante desta
experiência não se caracteriza pela precisão e se diverte com uma lógica
circular, já que indiferente ao avanço do tempo. As linhas escarlates e
serpentinas que se seguem deslizam do papel para destacar o traçado de palavras
que comporta sinuosidades desconcertantes de contraditória maestria. É texto de
quem do cotidiano faz o extraordinário ao deixar-se ser arte, ou antes,
deixar-se ser, pura e simplesmente. É tensão constante de quem toma o risco de
inventar-se a cada dia, de desfazer-se de chaves sem descanso, sem repouso; é
fruto da vertigem de quem se vê preso por querer numa teia que atrai porque
assusta e surpreende.
O deslocamento expatria este artista;
sujeito e objeto se confundem em uma existência cujo fim é o de eliminar a
distância entre o fazer poético e o viver poético. É escrita de quem se vê nos
outros. Assim, perdido na tradução dos signos, o cronista-poeta procura um
‘lugar’, sabendo-se espectador e ator. Sua é a linguagem que remete para si
mesma de maneira infinita, entreabrindo-se e sendo direcionada pela
musicalidade das palavras a partir de suas sílabas.
Joe,
José Antônio José,João Coelho, Caran D’Ache, Simeão e, por fim, João
Paulo Alberto Coelho Barreto - tendo nascido em 5 de agosto de 1881 -
registra-se definitivamente na história literária de finais do século XIX como João do Rio. A cidade que mereceu seu atento olhar, sua crítica ferina e
seu amor incondicional teve, afinal, a alma do artista. A ela ele se entregou e
este dramático enlace rendeu aos leitores escritos atormentados, elegantes,
sensuais, paradoxais, sutis e bizarros.
Palco de amores e dissabores, as ruas do Rio de Janeiro
finissecular ganham nas mãos de João um colorido de sangue e o encanto da
escrita é resultado da observação de amante de olhar transitivo, que reconhece
por entre as montras a estranha beleza do escombro. Frente à modernidade,
torna-se um pensador da cidade – um leitor de seus signos – e, desejando ir aos
extremos, fugindo do corriqueiro, quer contar uma capital que acelera o seu ritmo
projetando-se para o mundo.
O fio aglutinador dos
textos de João do Rio é um painel que não se curva ao cotidiano e que, pela
verticalidade, preenche incontrolavelmente qualquer rigidez com leveza e
alegria interior, divertindo os espíritos ansiosos por surpresas. Das cinzas
que atapetavam os primeiros anos do século XIX, João manteve um espaço mágico
para a eternidade de vida que desejava ganhar, procurando ocultar, sim,
qualquer sentença de morte que insistisse em se introduzir no gosto de vida de seus
textos, que como esconderijo, ofertava.
Cheio de boas intenções,
João lidou com a alegria e a morte, aparentemente com o mesmo ardor. Seu
esforço foi em direção à uma escritura que se constituísse diferença;
transgressão que apontasse para as várias máscaras refletidas no prazer
instaurador de uma nova visão para o corpus.
Textos destruidores da forma cristalizada, que se distinguem pelo que possuem,
bem como pelo que excluem. A serviço da in-consciência, batalham pela constante
interrogação acerca dos vazios. Apesar de estar inserido num conturbado
momento histórico, João não se deixou
vincular ou depender, produzindo em sua escrita efeitos encantatórios sobre o
que pode um corpo.
Paulo Barreto promoveu uma
arquitetura outra para a cidade maravilhosa em inícios do século XX. Suas
crônicas e contos reconstituiriam o charme da cidade que se buscava maquilada
em Paris. Diz Renato Cordeiro Gomes em João
do Rio – Vielas do vício, ruas da
graça :
“A cidade do Rio de Janeiro, também em metamorfose como um
palco em que se monta uma máscara – figurino de uma mistificação do moderno -,
convoca o artista para representar travestido de jornalista. Estilizando a
experiência que se atrela ao trabalho, Paulo Barreto, aliás João do Rio,
impõe-se a criação de ficções tratadas como se fossem verdadeiras, graças à
utilidade prática dessas criações, máscaras como parte indispensável da vida
(...) – ele pode falar em nome da cidade, na escrita que também é máscara.”2
Das lentes deste observador
irônico, teríamos a fotografia em perspectivas do real cotidiano carioca.
Multiplicou-se para sentir e tingir sua ação estilizada num mundo dogmatizado.
Psicólogo urbano, sua crônica poética foi subversão porque não fundada na
cronologia, mas no tempo da imaginação que é um – o do instante, o do agora. Ao
perambular pela rua em busca de histórias, exercita seu texto como movimento
circular, eternamente único; a importância originária do tempo marcado cede
lugar a uma crítica que escrutiniza o dia-a-dia, ameaçando e desestruturando a
ordem, ficcionalizando o real. Da experiência de observador, amplia a ação como
contista. Optando pela experiência do corpo como escritura, mistura-se a
indivíduos apressados e a flânerie ganha o charme e toque cariocas: “é
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada
como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente
dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente
adiadas(...)”3 .
A coleção de instantâneos
coletados na rua resultou em A alma
encantadora das ruas4 e,
assim, na esteira de Wilde, perfeito dândi, oferece ao público um cenário
poético para uma cidade cheia de contrastes: “(...)nós somos irmãos, nós nos
sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque
soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une,
nivela e agremia o amor pela rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e
indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas(...)”
(p.3).*
O passeio pelas páginas
parecem corresponder à nossa memória sonhada de como Oscar Wilde, espírito
viajante, deveria se deliciar “falando aos notáveis e aos humildes com
doçura(...)conhecendo cada rua(...)cada viela, sabendo-lhe um pedaço da
história, como se sabe a história dos amigos(...)” (p.6), ou mesmo em silêncio,
pensando com os pés, como Nietzsche, afinal, “(...)a quem não fará sonhar a
rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no
cérebro das multidões(...)” (p.18). A voz deste narrador, “como o flanêur
buscando um flagrante, confere agilidade ao relato, que se desenvolve
espontaneamente em tom de conversa descontraída.” (MESSER, 2002,p.xvi).
1.1. Almas encantadoras
Das muitas visitas aos caminhantes ( mercadores de
livros, músicos ambulantes, cocheiros...), nossa atenção recai sobre as
mulheres: as Mariposas do luxo5 que, surgem no momento, “em que o
dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito,
como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia(...)” (p.101). Os
relógios batem seis horas, “na artéria estreita cai a luz acizentada das
primeiras sombras.” (p.101), e então as raparigas, operárias surgem, devagar,
“quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando(...)” (p.102).
São trabalhadoras que após horas de árdua labuta passam parecendo pássaros
assustados, “tontos de luxo, inebriados de olhar(...)” (p.102). Olham o que possivelmente nunca
chegaram a comprar, olham o que seu trabalho permite que outras mulheres vistam
e usem; “são as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca(...)e
então, todo dia, (...)haveis de vê-las passar(...)A mocidade dá-lhes a
elasticidade dos gestos, o jeito bonito de andar...os vestidos são
pobres(...)mas essa miséria é limpa(...)” (p.102). Paradoxalmente belas, donas
de direito do luxo que a outros proporcionam, têm na rua a oferta do “foco em
torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas(...)” (p.102). A
rua é seu lugar de sonho, onde as cores mais variadas quase ofuscam o olhar
curioso e ávido de vida. As montras “de rendas, montras de perfumes, montras de
toilettes, montras de flores – a
chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las(...)” (p.104). Na hora indecisa,
imprecisa em seus contornos de luz, estas mulheres experimentavam-se sedutoras:
“morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes
nega na polidez espelhante dos vidros(...)” (p.103). O brilho alucinante das
vitrines, arco-íris furta-cor, fazia o contorno de seus corpos dançarem,
cobrindo e descobrindo uma alegria quase infantil, mas com o toque essencial da
malícia de Salomé: “a alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante
dos adereços(...)” (p.104). À dançarina dos sete véus nada se negava e seu tédio
só fora aplacado diante daquele que não se deixara encantar. À estas moças,
tudo fora negado em nome do progresso e da modernidade. Seu tédio, no entanto,
se aliviava com o sonho e o desejo do mundo ‘irreal’; do mundo das impossibilidades, do mundo da pura
beleza. A noite, hora reveladora para os decadentistas, hora dos desejos
proibidos era o palco perfeito para elas, prontas para uma
cena já desenhada inúmeras vezes na mente, com as linhas
memorizadas. Mas, “um suspiro mais forte
– a coragem da que se libertou da hipnose – fá-las desapegar-se do lugar(...) A
rua delira de novo...Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito
tempo(...)” (p.105). O banhar-se no mar da imaginação traz uma alegria febril
que ‘precisa’ ser interrompida pelo movimento da consciência. Para que se
restabeleça a ‘ordem’ é preciso que elas se ‘vejam’ novamente que “a sorte as
fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano,
senão a miragem do esplendor(...)” (p.105).
O lugar do pensamento, hora ociosa, era cada vez mais sufocado pela
necessidade de produzir, de lucrar. E, João, um tanto melancólico, finaliza, “e
haveis de vê-las passar, as mariposas do Luxo, no seu passinho modesto, duas a
duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas(...)” (p.105), para um
destino que o artista gritava não ser o de ninguém. A sobrevivência dependia da
condução da vida como arte, pura e simplesmente manifestação artística. O tom
leva a marca do wildiano A alma do homem
sob o socialismo que reclamava para cada indivíduo uma situação econômica
confortável que lhe garantisse a realização de todo o seu potencial criativo.
Só numa sociedade em que os direitos e acessos fossem comuns poderia a vida se
compor como obra de arte que é. João do Rio, ao trazer “a crônica viva dos
seres que se movimentavam no centro cultural do Brasil e o habitavam nas
primeiras décadas do século XX” (MESSER, 2002,introdução-p.xxxv),
paradoxalmente desmascara e seduz, quando ressalta a vulnerabilidade do senso
comum e a arte como pungente resposta de desconstrução para que as paixões mais
íntimas pudessem ser reveladas. As moças voam por sobre um real por elas
sustentado – com o árduo trabalho – e a elas negado. Se não dispunham de tempo
para sonhar porque eram constantemente interrompidas pela culpa do desperdício,
como poderiam exercitar no pensamento uma vida mais plena. A urgência da hora
de escapar ao constrangimento de olhares acusadores prevenia as jovens de gozar
da liberdade a que foram destinadas. Escravas do lucro, elas acorrentavam os
anseios do presente em nome de um futuro que poderia nunca chegar.
Pelos
labirintos de uma escrita de delícias, João do Rio afirmava e reafirmava
continuamente a imperfeição de quem direciona sua vida pela consciência,
sepultando os instintos, condenando seu progresso pessoal. O corpo de João
também foi sulcado pela força da pena; ele também foi um condenado que
descobriu a alegria destes grilhões libertadores e, nós, os premiados leitores,
só tivemos a ganhar com sua criação que emanou de sua obra.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
COUTINHO,L.E.B;
CORRÊA, I.E.J. O labirinto finissecular e
as idéias do esteta.RJ:
7
Letras,2004.
GOMES,
R.C.João do Rio - vielas do vício, ruas da graça.RJ: Relume
Dumará, 1996.
MESSER,
O. A cidade e a modernidade: João do Rio.Campinas:
Remate de Males, 1990.
João do Rio, escritor singular do nosso país, que desmascara e desnuda a alma encantadora das ruas do RJ.
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