domingo, 24 de agosto de 2014

Uma alegria!

Conto de um leitor viajante – Stella Maria Ferreira


PLC-2014-PROSA / 1º lugar – contos avulsos
Conto de um leitor viajante
As férias chegaram. De tão cansado, não planejara absolutamente nenhuma atividade. A ideia do deslocamento, no entanto, me perseguia há cerca de uma semana. Lembrei de Baudelaire e de sua visceral necessidade de estar onde não estava, de viajar para os lugares mais distantes, de geograficamente esquivar-se de pensamentos que naquele instante de repouso pareciam ameaçadores. Estava inquieto. Não que isso fosse estranho. Eu era naturalmente inquieto. Seriam os livros que sempre tinha à mão? Era o que a mãe repetira por toda a minha adolescência. Dizia que estava sempre ‘no mundo da lua’. Eu me irritava e gritava que era poeta das idas e vindas; era artista. Ela ficava ainda mais nervosa. Era o feijão…e eu, o sonho. E sonho ‘não se colocava na mesa’, dizia. É…hoje trabalho num escritório de advocacia e a poesia ficou de lado. Momentos de inquietação como os desta manhã, porém, lembravam-me de mim. Antes. Quando tudo era poesia e eu me deslocava om facilidade para onde queria em minha mente. Peguei o caderno de anotações que estava na cabeceira e escrevi: “Escapar para me encontrar. Viajar para saber de mim.”.
Troquei de roupa. `A saída, o porteiro me perguntou algo sobre meu retorno – haveria manutenção do sistema de gás naquela tarde. Desculpei-me dizendo ser difícil marcar o horário da volta. Pediria uma outra visita para o apartamento se houvesse desencontro. Como saberia da volta se não sabia para onde iria? Queria a poesia da incerteza, a rima do desengano, o verso do talvez. Não sentia receio algum. Queria respirar aquele ar amorosamente artístico uma vez mais.
Era um barzinho simpático. Pedi café e biscoitos enquanto lia algumas dezenas de prospectos de viagens, passeios e produtos à venda colecionados ao longo do ano. A ilha parecia convidativa. Sorri ao lembrar de Alan de Botton e a descrição de suas férias numa ilha paradisíaca em A arte de viajar. Não seria uma má ideia fugir para outros ares. O aroma do café fez com que eu fechasse os olhos e, então, lá estava eu chegando na ilha. As malas sendo trazidas para o imenso quarto.
Uma porta dava saída direto para uma linda praia. Sentei-me na areia morna. O som alto das gaivotas, que pareciam brincar, era encantador e repousante. O vento assobiava o texto que eu ansiava escrever. “A nota da vida incompleta aguarda o acorde na dependência do próximo passo. A força de ousar. Sem a escolha de parar. Sem o medo no olhar. A carne na pena. O sangue na tinta. Poesia pronta.”.
Abri os olhos e o caderno de notas estava na minha frente, sobre a mesa do barzinho e as palavras que eu ouvira na ilha do panfleto ali escritas. A arte me encontrara. A procura durara anos e ela foi perseverante e fiel.
Fui para casa. O porteiro perguntou-me se o passeio fora bom e eu disse ter sido a melhor viagem da minha vida. O Des Esseintes de Huysmans sentado num café viajou para Londres. E eu, para uma ilha. Pares na arte. Pares na vida.
Síntese biográfica:
Stella Maria Ferreira é Mestre e Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ. Conta com cinco artigos publicados em livros; uma resenha publicada na Revista ‘Poesia Sempre’ da Fundação Biblioteca Nacional e um livro recentemente publicado, intitulado ‘Café literário com Wilde e Nietzsche’. Atua como professora de Inglês na Rede Municipal do Rio de Janeiro.

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