sexta-feira, 27 de outubro de 2017
Por que ler?
Em uma das primeiras aulas com um querido professor, aprendi lição que, dentre outras tantas, merece ser lembrada: O real não é; o real e...e.... A realidade é mais do que os sentidos podem perceber e...a literatura mostra isso com maestria. A aventura do texto desloca do comum, do ordinário, convidando para a novidade constante.
quarta-feira, 25 de outubro de 2017
OSCAR
OSCAR WILDE: MÁSCARA EM MOVIMENTO
''...Nenhum grande artista vê as coisas tais como são na realidade. Se as visse, deixaria de ser um artista...''
1 Marcado por contradições, o discurso do século XIX apresentava-se, ao mesmo tempo, soberano e prisioneiro. Daí, a necessidade de, pela exploração da palavra nas suas virtualidades, elevá-la acima da pobre expressividade da comunicação cotidiana. Um novo encantamento desejava insinuar-se nas fissuras do tecido social. Havia a nostalgia de uma singularidade anterior a estereotipia. Assim, o artista, ao se deixar levar pelo sabor das paixões, recusava-se a dissimular intencionalmente com os outros, arriscando-se a perpetuar a situação presente. Esta 'loucura' ofereceria uma visão mais global, a totalidade dos segredos.O real se multiplicaria e o corpo, invadido, errante, desconstrutor, reconquistaria o equilíbrio esquecido. Houve, assim, uma autêntica reinvindicação do mistério contra o racionalismo matemático. O prazer estético surgiu como esperança de rompimento do cárcere em que se encontrava a individuação. A facilidade de desfazer-se de uma identidade no momento em que ela deixava de ser satisfatória passou a ser mais importante, já que permitia amorosa ausculta ao mundo interior, até então tempestuosamente marcado pela subserviência. Distante do poder controlador, percebeu-se que o essencial não tinha nome ou forma: era descoberta e assombro, glória e condenação. A produção artística gerada desta exigência foi de uma beleza até então desconhecida, de uma sensualidade especializada e sensações requintadas. Nesta cena, insubmisso, revolucionário, inquieto, decadente, Oscar Wilde teve a vida como conflito, incerteza, com um enredo constantemente transmutado no estuário de atitudes audaciosas e palavras cortantes em direção ao remanso da superação de uma moral que agrilhoava o espírito. Sua arte convidava o discurso a valsar. Invencível na tendência de 'agitar' sua época pelo dizer textual, de surpreendente investida e negação do creditado sistema de verdades, promoveu um mundo que, a partir do olhar, reencontraria todas as cores, tanto na alegria como no mais extremo receio (cf. BOLLON, 1993, p.170), questionando o caráter de solidez do corpo. Como esteta, amante do brilho da antigüidade e como dândi, admirador do algo novo da modernidade,Wilde combinou reconstrução e renascimento. Viu nas possibilidades de prazer oferecidas pela vida o começo da beleza e provocou confusão ao não descartar uma verdade colocando o oposto em seu lugar, mas sim, jogando com os dois sentidos ao mesmo tempo. Questionando a dualidade, ousava reescrever a História. Seu leitor é incitado a alargar o universo, não oferecer resistência à liberdade de expressão. O provisório completa, refaz, contorna, vence. Wilde encontrou o estilo adequado à pintura febril dos impulsos levando o texto literário não ao definitivo, mas à busca atormentada. Saltando-lhe na cabeça mil caprichos, promoveu um espetáculo estético perverso repleto de futuro. Supera, assim, sua época, ao opor-se frontalmente a ela. A luta do esteta pelo novo não enunciou leis. Justapondo o 'real' e o'poético', assumiu o mistério, o eternamente flutuante. Então,guia artístico na Inglaterra vitoriana , por meio do artifício auto-consciente da máscara, desestruturou a pretensa segurança que a 'compreensão das coisas' trazia. Esta nova linguagem se direcionaria para o inatingível, o inesgotável murmúrio das palavras. Este novo artista é convocado a, a partir de diferentes 'eus' e realidades a sua escolha, desacreditar a tendência de ver o mundo como uma verdade unitária. A meta não era a de desmistificar as ilusões humanas, e sim, encontrar nelas o testemunho mais sugestivo do espírito e imaginação humanos. Wilde, juntamente com outros representantes do movimento decadente, tinha no vago, no indistinto e no incorpóreo a contrapartida ao objeto descrito com precisão, de forma concreta e lógica . Inventando-se, criou um espetáculo, violou limites e subtraiu toda referência anterior. A imprecisão de contornos em seu corpus, aproximou o corpo percebido do corpo sonhado. A vertigem especular revelada conduz à impossibilidade qualquer imagem fixa do corpo, trazendo uma estratificação outra, identificando tempo e espaço como meros acidentes. Na 'perda' desta existência 'localizada', encontraria-se a nova consciência, que daria aos indivíduos inumeráveis enigmas. Um novo homem se molda de uma argila mais nobre, embriagada de força artística, impulsionado à surpreendente capacidade simbólica (ver NIETZSCHE, 2001, p. 35). Afinal, segundo Wilde, a verdade sobre a vida de um homem não estava no que ele havia realizado, e sim,na lenda que construísse a seu redor, podendo com ela serem "tecidas belas poesias como se fossem fios brilhantes e sedas em múltiplos desenhos, em numerosos modelos, maravilhosos e diferentes." (WILDE, 2003, p. 1260). A arte tornou-se uma operação mágica capaz de evocar uma face perdida. Como jogador, apostou na teatralidade do mundo,deslocando a proposta vitoriana para o exercício do dandismo e, postulando a amoralidade, brincou com as sombras, os reflexos, numa rede que pôs sua personalidade em questão. A ebriedade natural com que via as coisas fez de sua escrita, uma escrita de passagem: que não se acomodava à hora, mas sim, à intenção. Pela ficção, construiu-se constantemente, obtendo o que lhe faltava de fato. Sabendo que nascera incompleto, buscou a totalidade - o apolíneo e o dionisíaco -, pois sabia que a existência era movimento de criação e morte. Sua grande meta foi evitar a perplexidade diante do não vivido, da não fidelidade, do conseqüente estranhamento e mal estar produzidos pelo distanciamento de si. Reconhecendo ser forçosa a redução dos homens em heróis ou vilões, postulou ser a disciplina uma forma de amestrar indivíduos, reduzindo-os a animais mansos e 'civilizados' e através das palavras, quis 'enganar a saudade' de uma época sem esquecimento: "creio que se um homem quisesse viver a sua vida plena e completamente, se quisesse dar forma a todo sentimento seu, expressão a cada pensamento, realidade a todo sonho, acredito que o mundo receberia tal impulso novo de alegria que esqueceríamos todas as enfermidades medievais, para voltar ao ideal grego, a algo mais belo e mais rico..." (WILDE, 2003, p.69). Ao fazer conhecimento de si, pela arte, teve que pôr-se à margem, perder seu lugar junto a indivíduos ajustados ao sistema, morrer, para se encontrar num eterno presente.No contentamento desta descoberta, prenhe de possibilidades, esteve pronto para experiências reais e supra-reais. Saber que a distância entre dois corpos é enorme e não apenas um tênue interlúdio e que nela orbitam inumeráveis circunstâncias que a dicção literária pode fazer desaparecer, permitindo que se cruze este limiar foi idéia atraente para Wilde. Na senda do mestre Baudelaire, sabia que só a surpresa, o inesperado são características do belo. Do que era visto como artesanato ordinário da natureza fluiria notável novidade. Contra o reino da uniformidade e da mediocridade, a escrita-dândi de Wilde ofereceu a impertinência da nudez de uma inversão do sério e do fútil, do útil e do inútil. Acelerou, retardou, produziu tonalidades para o texto que seduziriam, convidando o leitor à regredir ao infinito. Seu desempenho altamente estilizado - cuidadosamente construído -,combina febre e paz. Sentindo a náusea da impotência do tempo diante dos inumeráveis e misteriosos caminhos, fortaleceu a vontade de mudança e, figura apolínea, fez seu caminho para o Sol, como que a convite de Nietzsche, seu contemporâneo: "Prazerosamente ouço dizer que o nosso Sol se dirige rapidamente para a constelação de Hércules. Tenho esperanças de que o homem da Terra imite, nisso, o Sol! E nós na vanguarda, nós os bons europeus!" (NIETZSCHE, 2003, p.164). Como se arrastasse o peso de todas as vivências, ofereceu uma arte que se queria adivinhada, vestindo e revestindo as palavras, penetrando como ninguém nos labirintos do texto, não para descobrir suas saídas, mas para mostrar que o estar neles, em suas câmaras com infindas portas e janelas verticais e horizontais (ver BORGES,1998,p. 39), era o caminho a ser percorrido. Seus leitores são atirados em um mundo vasto, repleto de espelhos estrategicamente posicionados e intencionados para que a linha de Ariadne seja desnecessária. Sua escrita representa as muitas idas e vindas por lugares repletos de luz, da luz de uma visão mais ampla, para além dos estereótipos. Diz Borges: "No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas alternativas o homem deve optar por uma e elimina ou perde a outra; mas não no ambíguo tempo da arte, que se parece ao da esperança e ao esquecimento.” 2 Wilde não quis optar e deixou-nos livres também para a aventura de experimentar. Sonhou a vida e convidou ao sonho. Infiltrou-se no nada que separa o escritor e a escritura.Sabia que toda e qualquer manifestação artística traz em si o germe da criação primeira e não imitável, - forma em constante mutação. Ao desespero desta lucidez, trouxe uma 'gaia ciência' para a vida, recusando-se a descer do palco, tomando de assalto os moinhos das verdades. Porque conhecia a todos os mecanismos que poderiam agir sobre sua pessoa, perfeitamente, entregou-se aos subterfúgios, aos caminhos ocultos. Eco de Derrida: "devo em primeiro lugar ouvir-me. No solilóquio como no diálogo, falar é ouvir-se." (DERRIDA,2002, p. 119). Na intencional composição de suas personagens, encontrou seu destino. Restabeleceu contato com o mundo, a partir da sedução do ficcional. Pôs o corpo à serviço do corpus, seu texto estranho. Ladrão do fogo divino que emana das palavras, tesouro hieroglífico, ofereceu toda a poesia de uma vida dedicada ao Belo. Lapidou o sonho e deu à sua época um romance único O retrato de Dorian Gray . Obra completa e definitiva - resumo colorido de quem quis abolir os protocolos para a leitura das palavras. A permissividade de seu sim sem limite, seduz até hoje os leitores.Pacto sinistro com Wotton, Hallward e Gray. O romance analisa e disseca o prazer em todas as fases possíveis. Dorian mantém uma relação problemática com sua imagem e precisa se defender da insignificância biológica que julga insuportável: o corpo humano - insuficiente, defeituoso, limitado, efêmero. A percepção de sua fisiologia rompe com a perspectiva linear que mantinha o corpo como algo imóvel. Daí, a história ser também uma metáfora do esgotamento do cânone. Wilde introduz a idéia de que as pessoas escondiam seus estilos triviais de vida sob imagens prudentes que não denunciariam suas vidas duplas. Lorde Henry - personagem -chave - suavemente desnuda o sentimento de tédio com certeza então presente no interior de Dorian e passa a fazer com ele experiências de suas teoria morais (ou imorais?), 'abrindo os olhos' do jovem para sua própria beleza e o valor indescritível da eterna juventude, já que "...influenciar uma pessoa é transmitir-lhe nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. As virtudes não são reais para ela. Os seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em ator de um papel que não foi escrito para ela...." (WILDE, 2003,p.68). A conseqüência ao abrir os olhos foi descobrir a dor. Dorian reconhece que a mente é fragmentada e não possui as fronteiras que ele estabelecera. O jovem percebe-se, então, objeto inscrito em uma trama que não pode controlar. Encarna o conflito de todo homem civilizado que encontra dificuldade em aceitar os limites fixados por esta corporeidade e sente-se compelido a desafiá-la. A Dorian, a idéia dos traços e das rugas constituírem sinais visíveis de uma escrita que o tempo poderia destruir aterrorizava o jovem porque anularia o idealismo de beleza. Seriam representações da morte antes da morte. As palavras de Lorde Henry foram do corpo à alma , dos órgãos à conduta do jovem. A enunciação do desejo de ter seu corpo intocado pelo tempo, enquanto o retrato guardaria todas as marcas, lança Dorian em uma jornada frenética que caracteriza a busca decadentista de um mais além que não conhecia qual fosse, apenas desejando algo de novo:"quanto mais sabia, mais desejava saber. Todos os apetites furiosos, se tornavam mais vorazes à medida que os satisfazia." (WILDE,2003 p. 151). Lorde Henry conseguiu perturbar a 'obra' de Basílio. O pintor entrou com seu corpo na pintura, por isso, ao passear os olhos sobre o retrato podia reconhecer-se também; desejava fundir-se ao modelo, já que o criador acreditava ter depositado demasiado de si. O clima dramático se intensifica quando Dorian é presenteado com o 'livro amarelo': "seus olhos caíram sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. Que seria?...era o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os pecados do mundo, vestidos de maneira singular, desfilavam diante em um mudo cortejo, ao som delicado de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado confusamente se tornavam repentinamente reais para ele...era uma novela sem enredo, com um personagem, na realidade, um simples estudo psicológico de um jovem parisiense, que passava a vida tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e maneiras de pensar de todos os outros séculos, com exceção do seu, e resumir em si mesmo os estados de ânimo que experimentou..." (WILDE,2003 p. 149). Dorian tinha sido envenenado e procurava transcender as relações humanas, suspender o tempo e a História. A vida passava a ser concebida como movimento em sua atemporalidade. Wilde transmite o momento sempre presente de experiência e intensidade, quer em vinte e quatro horas ou em anos, unindo acontecimentos que formam a duração da imaginação humana. O grande prazer estaria nesta jornada em direção ao desconhecido, realidade interior que nunca poderia ser completamente apreendida. Ao buscar o múltiplo em sua personalidade, Dorian multiplica seus pecados. Ele falha, não por causa destes, mas devido à incapacidade de atingir a alta torre do desinteresse contemplativo de si e do mundo. Permanecendo prisioneiro do medo e do remorso, tentou adequar as fantasias que criara à consciência do mundo. Dorian, como corpo invadido pela loucura e pela paixão, sobreviveria eternamente, não fosse a tentação de categorizar. Para continuar 'atuando', era preciso permanecer velado pela ilusão. Foi seu derradeiro erro. O trágico fim de seu notório personagem foi também o seu. Oscar Wilde trocou a dor que pode durar a vida inteira pelo prazer que dura um instante. Ao dar de seu conhecimento para os outros, roubou algo de si mesmo e conheceu a força da dor. Sua recompensa, no entanto, foi o reconhecimento no imenso número de seguidores em todo o mundo. As inúmeras máscaras revelaram, cada uma a seu modo, pistas para uma vida completa.Não fez de seu coração um coração de pedra (como diz em Apologia ), seguindo o caminho ‘poeirento' do senso comum. Sua arte escrita seria guia da experiência para os espíritos livre que estavam por vir.
NOTAS: 1 WILDE, 2003, p.1090 2 BORGES, 1998, p.531 BIBLIOGRAFIA : BORGES, J.L. Obras completas i . São Paulo: Globo, 1998. COELHO, J.P. A letra e o leitor . Póvoa de Varzim: Portugália Editora, 1968. DANSON, L. Wilde's intentions . New York : Oxford University Press, 1997. DERRIDA, J. A escritura e a diferença . São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal . São Paulo: Martin Claret, 2003. --------------------. O nascimento da tragédia . São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RIBEIRO, J. Páginas de estética . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. WILDE, O. Obra Completa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
''...Nenhum grande artista vê as coisas tais como são na realidade. Se as visse, deixaria de ser um artista...''
1 Marcado por contradições, o discurso do século XIX apresentava-se, ao mesmo tempo, soberano e prisioneiro. Daí, a necessidade de, pela exploração da palavra nas suas virtualidades, elevá-la acima da pobre expressividade da comunicação cotidiana. Um novo encantamento desejava insinuar-se nas fissuras do tecido social. Havia a nostalgia de uma singularidade anterior a estereotipia. Assim, o artista, ao se deixar levar pelo sabor das paixões, recusava-se a dissimular intencionalmente com os outros, arriscando-se a perpetuar a situação presente. Esta 'loucura' ofereceria uma visão mais global, a totalidade dos segredos.O real se multiplicaria e o corpo, invadido, errante, desconstrutor, reconquistaria o equilíbrio esquecido. Houve, assim, uma autêntica reinvindicação do mistério contra o racionalismo matemático. O prazer estético surgiu como esperança de rompimento do cárcere em que se encontrava a individuação. A facilidade de desfazer-se de uma identidade no momento em que ela deixava de ser satisfatória passou a ser mais importante, já que permitia amorosa ausculta ao mundo interior, até então tempestuosamente marcado pela subserviência. Distante do poder controlador, percebeu-se que o essencial não tinha nome ou forma: era descoberta e assombro, glória e condenação. A produção artística gerada desta exigência foi de uma beleza até então desconhecida, de uma sensualidade especializada e sensações requintadas. Nesta cena, insubmisso, revolucionário, inquieto, decadente, Oscar Wilde teve a vida como conflito, incerteza, com um enredo constantemente transmutado no estuário de atitudes audaciosas e palavras cortantes em direção ao remanso da superação de uma moral que agrilhoava o espírito. Sua arte convidava o discurso a valsar. Invencível na tendência de 'agitar' sua época pelo dizer textual, de surpreendente investida e negação do creditado sistema de verdades, promoveu um mundo que, a partir do olhar, reencontraria todas as cores, tanto na alegria como no mais extremo receio (cf. BOLLON, 1993, p.170), questionando o caráter de solidez do corpo. Como esteta, amante do brilho da antigüidade e como dândi, admirador do algo novo da modernidade,Wilde combinou reconstrução e renascimento. Viu nas possibilidades de prazer oferecidas pela vida o começo da beleza e provocou confusão ao não descartar uma verdade colocando o oposto em seu lugar, mas sim, jogando com os dois sentidos ao mesmo tempo. Questionando a dualidade, ousava reescrever a História. Seu leitor é incitado a alargar o universo, não oferecer resistência à liberdade de expressão. O provisório completa, refaz, contorna, vence. Wilde encontrou o estilo adequado à pintura febril dos impulsos levando o texto literário não ao definitivo, mas à busca atormentada. Saltando-lhe na cabeça mil caprichos, promoveu um espetáculo estético perverso repleto de futuro. Supera, assim, sua época, ao opor-se frontalmente a ela. A luta do esteta pelo novo não enunciou leis. Justapondo o 'real' e o'poético', assumiu o mistério, o eternamente flutuante. Então,guia artístico na Inglaterra vitoriana , por meio do artifício auto-consciente da máscara, desestruturou a pretensa segurança que a 'compreensão das coisas' trazia. Esta nova linguagem se direcionaria para o inatingível, o inesgotável murmúrio das palavras. Este novo artista é convocado a, a partir de diferentes 'eus' e realidades a sua escolha, desacreditar a tendência de ver o mundo como uma verdade unitária. A meta não era a de desmistificar as ilusões humanas, e sim, encontrar nelas o testemunho mais sugestivo do espírito e imaginação humanos. Wilde, juntamente com outros representantes do movimento decadente, tinha no vago, no indistinto e no incorpóreo a contrapartida ao objeto descrito com precisão, de forma concreta e lógica . Inventando-se, criou um espetáculo, violou limites e subtraiu toda referência anterior. A imprecisão de contornos em seu corpus, aproximou o corpo percebido do corpo sonhado. A vertigem especular revelada conduz à impossibilidade qualquer imagem fixa do corpo, trazendo uma estratificação outra, identificando tempo e espaço como meros acidentes. Na 'perda' desta existência 'localizada', encontraria-se a nova consciência, que daria aos indivíduos inumeráveis enigmas. Um novo homem se molda de uma argila mais nobre, embriagada de força artística, impulsionado à surpreendente capacidade simbólica (ver NIETZSCHE, 2001, p. 35). Afinal, segundo Wilde, a verdade sobre a vida de um homem não estava no que ele havia realizado, e sim,na lenda que construísse a seu redor, podendo com ela serem "tecidas belas poesias como se fossem fios brilhantes e sedas em múltiplos desenhos, em numerosos modelos, maravilhosos e diferentes." (WILDE, 2003, p. 1260). A arte tornou-se uma operação mágica capaz de evocar uma face perdida. Como jogador, apostou na teatralidade do mundo,deslocando a proposta vitoriana para o exercício do dandismo e, postulando a amoralidade, brincou com as sombras, os reflexos, numa rede que pôs sua personalidade em questão. A ebriedade natural com que via as coisas fez de sua escrita, uma escrita de passagem: que não se acomodava à hora, mas sim, à intenção. Pela ficção, construiu-se constantemente, obtendo o que lhe faltava de fato. Sabendo que nascera incompleto, buscou a totalidade - o apolíneo e o dionisíaco -, pois sabia que a existência era movimento de criação e morte. Sua grande meta foi evitar a perplexidade diante do não vivido, da não fidelidade, do conseqüente estranhamento e mal estar produzidos pelo distanciamento de si. Reconhecendo ser forçosa a redução dos homens em heróis ou vilões, postulou ser a disciplina uma forma de amestrar indivíduos, reduzindo-os a animais mansos e 'civilizados' e através das palavras, quis 'enganar a saudade' de uma época sem esquecimento: "creio que se um homem quisesse viver a sua vida plena e completamente, se quisesse dar forma a todo sentimento seu, expressão a cada pensamento, realidade a todo sonho, acredito que o mundo receberia tal impulso novo de alegria que esqueceríamos todas as enfermidades medievais, para voltar ao ideal grego, a algo mais belo e mais rico..." (WILDE, 2003, p.69). Ao fazer conhecimento de si, pela arte, teve que pôr-se à margem, perder seu lugar junto a indivíduos ajustados ao sistema, morrer, para se encontrar num eterno presente.No contentamento desta descoberta, prenhe de possibilidades, esteve pronto para experiências reais e supra-reais. Saber que a distância entre dois corpos é enorme e não apenas um tênue interlúdio e que nela orbitam inumeráveis circunstâncias que a dicção literária pode fazer desaparecer, permitindo que se cruze este limiar foi idéia atraente para Wilde. Na senda do mestre Baudelaire, sabia que só a surpresa, o inesperado são características do belo. Do que era visto como artesanato ordinário da natureza fluiria notável novidade. Contra o reino da uniformidade e da mediocridade, a escrita-dândi de Wilde ofereceu a impertinência da nudez de uma inversão do sério e do fútil, do útil e do inútil. Acelerou, retardou, produziu tonalidades para o texto que seduziriam, convidando o leitor à regredir ao infinito. Seu desempenho altamente estilizado - cuidadosamente construído -,combina febre e paz. Sentindo a náusea da impotência do tempo diante dos inumeráveis e misteriosos caminhos, fortaleceu a vontade de mudança e, figura apolínea, fez seu caminho para o Sol, como que a convite de Nietzsche, seu contemporâneo: "Prazerosamente ouço dizer que o nosso Sol se dirige rapidamente para a constelação de Hércules. Tenho esperanças de que o homem da Terra imite, nisso, o Sol! E nós na vanguarda, nós os bons europeus!" (NIETZSCHE, 2003, p.164). Como se arrastasse o peso de todas as vivências, ofereceu uma arte que se queria adivinhada, vestindo e revestindo as palavras, penetrando como ninguém nos labirintos do texto, não para descobrir suas saídas, mas para mostrar que o estar neles, em suas câmaras com infindas portas e janelas verticais e horizontais (ver BORGES,1998,p. 39), era o caminho a ser percorrido. Seus leitores são atirados em um mundo vasto, repleto de espelhos estrategicamente posicionados e intencionados para que a linha de Ariadne seja desnecessária. Sua escrita representa as muitas idas e vindas por lugares repletos de luz, da luz de uma visão mais ampla, para além dos estereótipos. Diz Borges: "No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas alternativas o homem deve optar por uma e elimina ou perde a outra; mas não no ambíguo tempo da arte, que se parece ao da esperança e ao esquecimento.” 2 Wilde não quis optar e deixou-nos livres também para a aventura de experimentar. Sonhou a vida e convidou ao sonho. Infiltrou-se no nada que separa o escritor e a escritura.Sabia que toda e qualquer manifestação artística traz em si o germe da criação primeira e não imitável, - forma em constante mutação. Ao desespero desta lucidez, trouxe uma 'gaia ciência' para a vida, recusando-se a descer do palco, tomando de assalto os moinhos das verdades. Porque conhecia a todos os mecanismos que poderiam agir sobre sua pessoa, perfeitamente, entregou-se aos subterfúgios, aos caminhos ocultos. Eco de Derrida: "devo em primeiro lugar ouvir-me. No solilóquio como no diálogo, falar é ouvir-se." (DERRIDA,2002, p. 119). Na intencional composição de suas personagens, encontrou seu destino. Restabeleceu contato com o mundo, a partir da sedução do ficcional. Pôs o corpo à serviço do corpus, seu texto estranho. Ladrão do fogo divino que emana das palavras, tesouro hieroglífico, ofereceu toda a poesia de uma vida dedicada ao Belo. Lapidou o sonho e deu à sua época um romance único O retrato de Dorian Gray . Obra completa e definitiva - resumo colorido de quem quis abolir os protocolos para a leitura das palavras. A permissividade de seu sim sem limite, seduz até hoje os leitores.Pacto sinistro com Wotton, Hallward e Gray. O romance analisa e disseca o prazer em todas as fases possíveis. Dorian mantém uma relação problemática com sua imagem e precisa se defender da insignificância biológica que julga insuportável: o corpo humano - insuficiente, defeituoso, limitado, efêmero. A percepção de sua fisiologia rompe com a perspectiva linear que mantinha o corpo como algo imóvel. Daí, a história ser também uma metáfora do esgotamento do cânone. Wilde introduz a idéia de que as pessoas escondiam seus estilos triviais de vida sob imagens prudentes que não denunciariam suas vidas duplas. Lorde Henry - personagem -chave - suavemente desnuda o sentimento de tédio com certeza então presente no interior de Dorian e passa a fazer com ele experiências de suas teoria morais (ou imorais?), 'abrindo os olhos' do jovem para sua própria beleza e o valor indescritível da eterna juventude, já que "...influenciar uma pessoa é transmitir-lhe nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. As virtudes não são reais para ela. Os seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em ator de um papel que não foi escrito para ela...." (WILDE, 2003,p.68). A conseqüência ao abrir os olhos foi descobrir a dor. Dorian reconhece que a mente é fragmentada e não possui as fronteiras que ele estabelecera. O jovem percebe-se, então, objeto inscrito em uma trama que não pode controlar. Encarna o conflito de todo homem civilizado que encontra dificuldade em aceitar os limites fixados por esta corporeidade e sente-se compelido a desafiá-la. A Dorian, a idéia dos traços e das rugas constituírem sinais visíveis de uma escrita que o tempo poderia destruir aterrorizava o jovem porque anularia o idealismo de beleza. Seriam representações da morte antes da morte. As palavras de Lorde Henry foram do corpo à alma , dos órgãos à conduta do jovem. A enunciação do desejo de ter seu corpo intocado pelo tempo, enquanto o retrato guardaria todas as marcas, lança Dorian em uma jornada frenética que caracteriza a busca decadentista de um mais além que não conhecia qual fosse, apenas desejando algo de novo:"quanto mais sabia, mais desejava saber. Todos os apetites furiosos, se tornavam mais vorazes à medida que os satisfazia." (WILDE,2003 p. 151). Lorde Henry conseguiu perturbar a 'obra' de Basílio. O pintor entrou com seu corpo na pintura, por isso, ao passear os olhos sobre o retrato podia reconhecer-se também; desejava fundir-se ao modelo, já que o criador acreditava ter depositado demasiado de si. O clima dramático se intensifica quando Dorian é presenteado com o 'livro amarelo': "seus olhos caíram sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. Que seria?...era o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os pecados do mundo, vestidos de maneira singular, desfilavam diante em um mudo cortejo, ao som delicado de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado confusamente se tornavam repentinamente reais para ele...era uma novela sem enredo, com um personagem, na realidade, um simples estudo psicológico de um jovem parisiense, que passava a vida tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e maneiras de pensar de todos os outros séculos, com exceção do seu, e resumir em si mesmo os estados de ânimo que experimentou..." (WILDE,2003 p. 149). Dorian tinha sido envenenado e procurava transcender as relações humanas, suspender o tempo e a História. A vida passava a ser concebida como movimento em sua atemporalidade. Wilde transmite o momento sempre presente de experiência e intensidade, quer em vinte e quatro horas ou em anos, unindo acontecimentos que formam a duração da imaginação humana. O grande prazer estaria nesta jornada em direção ao desconhecido, realidade interior que nunca poderia ser completamente apreendida. Ao buscar o múltiplo em sua personalidade, Dorian multiplica seus pecados. Ele falha, não por causa destes, mas devido à incapacidade de atingir a alta torre do desinteresse contemplativo de si e do mundo. Permanecendo prisioneiro do medo e do remorso, tentou adequar as fantasias que criara à consciência do mundo. Dorian, como corpo invadido pela loucura e pela paixão, sobreviveria eternamente, não fosse a tentação de categorizar. Para continuar 'atuando', era preciso permanecer velado pela ilusão. Foi seu derradeiro erro. O trágico fim de seu notório personagem foi também o seu. Oscar Wilde trocou a dor que pode durar a vida inteira pelo prazer que dura um instante. Ao dar de seu conhecimento para os outros, roubou algo de si mesmo e conheceu a força da dor. Sua recompensa, no entanto, foi o reconhecimento no imenso número de seguidores em todo o mundo. As inúmeras máscaras revelaram, cada uma a seu modo, pistas para uma vida completa.Não fez de seu coração um coração de pedra (como diz em Apologia ), seguindo o caminho ‘poeirento' do senso comum. Sua arte escrita seria guia da experiência para os espíritos livre que estavam por vir.
NOTAS: 1 WILDE, 2003, p.1090 2 BORGES, 1998, p.531 BIBLIOGRAFIA : BORGES, J.L. Obras completas i . São Paulo: Globo, 1998. COELHO, J.P. A letra e o leitor . Póvoa de Varzim: Portugália Editora, 1968. DANSON, L. Wilde's intentions . New York : Oxford University Press, 1997. DERRIDA, J. A escritura e a diferença . São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal . São Paulo: Martin Claret, 2003. --------------------. O nascimento da tragédia . São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RIBEIRO, J. Páginas de estética . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. WILDE, O. Obra Completa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
domingo, 8 de outubro de 2017
Refletindo...
Os contos de fadas exercem uma influência muito benéfica na formação da personalidade porque, por meio da assimilação dos conteúdos da estória, as crianças aprendem que é possível vencer obstáculos e saírem-se vitoriosas, especialmente quando o herói vence no final. Isso ocorre porque, durante o desenrolar da trama, a criança se identifica com as personagens e “vive” o drama que ali é apresentado de uma forma geralmente simples, porém impactante. Conflitos internos importantes, inerentes ao ser humano, como a inevitabilidade da morte, o envelhecimento, a luta entre o bem e o mal, a inveja, etc. são tratados nos contos de fadas de modo a oferecer desfechos otimistas. Desta forma, oferece à criança uma referência para elaborar os terríveis elementos ansiógenos que habitam seu imaginário, como seus medos, desejos, amores, ódios etc., que na sua imatura e concreta perspectiva apresentam-se amedrontadores e insolúveis. Esse aprendizado é captado pela criança de uma forma intuitiva (por estarem os elementos sempre carregados de simbolismo) tornando-se muito mais abrangente do que seria possível se fosse feito pela compreensão meramente intelectual. Acredita-se que o efeito integrador que os contos de fadas têm sobre a personalidade seja o fator responsável pelo fato de terem resistido à passagem do tempo e terem se universalizado.
Mariuza Pregnolato
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