OSCAR WILDE: MÁSCARA EM MOVIMENTO
''...Nenhum grande artista vê as coisas tais como são
na realidade. Se as visse, deixaria de ser um artista...''
1
Marcado por contradições, o discurso do século XIX apresentava-se, ao mesmo tempo,
soberano e prisioneiro. Daí, a necessidade de, pela exploração da palavra nas suas
virtualidades, elevá-la acima da pobre expressividade da comunicação cotidiana. Um
novo encantamento desejava insinuar-se nas fissuras do tecido social. Havia a
nostalgia de uma singularidade anterior a estereotipia. Assim, o artista, ao se deixar
levar pelo sabor das paixões, recusava-se a dissimular intencionalmente com os
outros, arriscando-se a perpetuar a situação presente. Esta 'loucura' ofereceria uma
visão mais global, a totalidade dos segredos.O real se multiplicaria e o corpo, invadido,
errante, desconstrutor, reconquistaria o equilíbrio esquecido.
Houve, assim, uma autêntica reinvindicação do mistério contra o racionalismo
matemático. O prazer estético surgiu como esperança de rompimento do cárcere em
que se encontrava a individuação. A facilidade de desfazer-se de uma identidade no
momento em que ela deixava de ser satisfatória passou a ser mais importante, já que
permitia amorosa ausculta ao mundo interior, até então tempestuosamente marcado
pela subserviência. Distante do poder controlador, percebeu-se que o essencial não
tinha nome ou forma: era descoberta e assombro, glória e condenação. A produção
artística gerada desta exigência foi de uma beleza até então desconhecida, de uma
sensualidade especializada e sensações requintadas.
Nesta cena, insubmisso, revolucionário, inquieto, decadente, Oscar Wilde teve a vida
como conflito, incerteza, com um enredo constantemente transmutado no estuário de
atitudes audaciosas e palavras cortantes em direção ao remanso da superação de uma
moral que agrilhoava o espírito. Sua arte convidava o discurso a valsar. Invencível na
tendência de 'agitar' sua época pelo dizer textual, de surpreendente investida e
negação do creditado sistema de verdades, promoveu um mundo que, a partir do olhar,
reencontraria todas as cores, tanto na alegria como no mais extremo receio (cf.
BOLLON, 1993, p.170), questionando o caráter de solidez do corpo. Como esteta,
amante do brilho da antigüidade e como dândi, admirador do algo novo da
modernidade,Wilde combinou reconstrução e renascimento. Viu nas possibilidades de
prazer oferecidas pela vida o começo da beleza e provocou confusão ao não descartar
uma verdade colocando o oposto em seu lugar, mas sim, jogando com os dois sentidos
ao mesmo tempo. Questionando a dualidade, ousava reescrever a História.
Seu leitor é incitado a alargar o universo, não oferecer resistência à liberdade de
expressão. O provisório completa, refaz, contorna, vence.
Wilde encontrou o estilo adequado à pintura febril dos impulsos levando o texto literário
não ao definitivo, mas à busca atormentada. Saltando-lhe na cabeça mil caprichos,
promoveu um espetáculo estético perverso repleto de futuro. Supera, assim, sua
época, ao opor-se frontalmente a ela. A luta do esteta pelo novo não enunciou leis.
Justapondo o 'real' e o'poético', assumiu o mistério, o eternamente flutuante.
Então,guia artístico na Inglaterra vitoriana , por meio do artifício auto-consciente da
máscara, desestruturou a pretensa segurança que a 'compreensão das coisas' trazia.
Esta nova linguagem se direcionaria para o inatingível, o inesgotável murmúrio das
palavras. Este novo artista é convocado a, a partir de diferentes 'eus' e realidades a
sua escolha, desacreditar a tendência de ver o mundo como uma verdade unitária. A
meta não era a de desmistificar as ilusões humanas, e sim, encontrar nelas o
testemunho mais sugestivo do espírito e imaginação humanos.
Wilde, juntamente com outros representantes do movimento decadente, tinha no vago,
no indistinto e no incorpóreo a contrapartida ao objeto descrito com precisão, de forma
concreta e lógica . Inventando-se, criou um espetáculo, violou limites e subtraiu toda
referência anterior. A imprecisão de contornos em seu corpus, aproximou o corpo
percebido do corpo sonhado. A vertigem especular revelada conduz à impossibilidade
qualquer imagem fixa do corpo, trazendo uma estratificação outra, identificando tempo
e espaço como meros acidentes. Na 'perda' desta existência 'localizada', encontraria-se
a nova consciência, que daria aos indivíduos inumeráveis enigmas. Um novo homem
se molda de uma argila mais nobre, embriagada de força artística, impulsionado à
surpreendente capacidade simbólica (ver NIETZSCHE, 2001, p. 35). Afinal, segundo
Wilde, a verdade sobre a vida de um homem não estava no que ele havia realizado, e
sim,na lenda que construísse a seu redor, podendo com ela serem "tecidas belas
poesias como se fossem fios brilhantes e sedas em múltiplos desenhos, em numerosos
modelos, maravilhosos e diferentes." (WILDE, 2003, p. 1260). A arte tornou-se uma
operação mágica capaz de evocar uma face perdida. Como jogador, apostou na
teatralidade do mundo,deslocando a proposta vitoriana para o exercício do dandismo e,
postulando a amoralidade, brincou com as sombras, os reflexos, numa rede que pôs
sua personalidade em questão. A ebriedade natural com que via as coisas fez de sua
escrita, uma escrita de passagem: que não se acomodava à hora, mas sim, à intenção.
Pela ficção, construiu-se constantemente, obtendo o que lhe faltava de fato. Sabendo
que nascera incompleto, buscou a totalidade - o apolíneo e o dionisíaco -, pois sabia
que a existência era movimento de criação e morte. Sua grande meta foi evitar a
perplexidade diante do não vivido, da não fidelidade, do conseqüente estranhamento e
mal estar produzidos pelo distanciamento de si. Reconhecendo ser forçosa a redução
dos homens em heróis ou vilões, postulou ser a disciplina uma forma de amestrar
indivíduos, reduzindo-os a animais mansos e 'civilizados' e através das palavras, quis
'enganar a saudade' de uma época sem esquecimento: "creio que se um homem
quisesse viver a sua vida plena e completamente, se quisesse dar forma a todo
sentimento seu, expressão a cada pensamento, realidade a todo sonho, acredito que o
mundo receberia tal impulso novo de alegria que esqueceríamos todas as
enfermidades medievais, para voltar ao ideal grego, a algo mais belo e mais rico..."
(WILDE, 2003, p.69).
Ao fazer conhecimento de si, pela arte, teve que pôr-se à margem, perder seu lugar
junto a indivíduos ajustados ao sistema, morrer, para se encontrar num eterno
presente.No contentamento desta descoberta, prenhe de possibilidades, esteve pronto
para experiências reais e supra-reais. Saber que a distância entre dois corpos é
enorme e não apenas um tênue interlúdio e que nela orbitam inumeráveis
circunstâncias que a dicção literária pode fazer desaparecer, permitindo que se cruze
este limiar foi idéia atraente para Wilde. Na senda do mestre Baudelaire, sabia que só a
surpresa, o inesperado são características do belo. Do que era visto como artesanato
ordinário da natureza fluiria notável novidade.
Contra o reino da uniformidade e da mediocridade, a escrita-dândi de Wilde ofereceu a
impertinência da nudez de uma inversão do sério e do fútil, do útil e do inútil. Acelerou,
retardou, produziu tonalidades para o texto que seduziriam, convidando o leitor à
regredir ao infinito. Seu desempenho altamente estilizado - cuidadosamente construído
-,combina febre e paz. Sentindo a náusea da impotência do tempo diante dos
inumeráveis e misteriosos caminhos, fortaleceu a vontade de mudança e, figura
apolínea, fez seu caminho para o Sol, como que a convite de Nietzsche, seu
contemporâneo: "Prazerosamente ouço dizer que o nosso Sol se dirige rapidamente
para a constelação de Hércules. Tenho esperanças de que o homem da Terra imite,
nisso, o Sol! E nós na vanguarda, nós os bons europeus!" (NIETZSCHE, 2003, p.164).
Como se arrastasse o peso de todas as vivências, ofereceu uma arte que se queria
adivinhada, vestindo e revestindo as palavras, penetrando como ninguém nos labirintos
do texto, não para descobrir suas saídas, mas para mostrar que o estar neles, em suas
câmaras com infindas portas e janelas verticais e horizontais (ver BORGES,1998,p.
39), era o caminho a ser percorrido. Seus leitores são atirados em um mundo vasto,
repleto de espelhos estrategicamente posicionados e intencionados para que a linha de
Ariadne seja desnecessária. Sua escrita representa as muitas idas e vindas por lugares
repletos de luz, da luz de uma visão mais ampla, para além dos estereótipos. Diz
Borges:
"No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas
alternativas o homem deve optar por uma e elimina ou perde a
outra; mas não no ambíguo tempo da arte, que se parece ao da
esperança e ao esquecimento.” 2
Wilde não quis optar e deixou-nos livres também para a aventura de experimentar.
Sonhou a vida e convidou ao sonho. Infiltrou-se no nada que separa o escritor e a
escritura.Sabia que toda e qualquer manifestação artística traz em si o germe da
criação primeira e não imitável, - forma em constante mutação. Ao desespero desta
lucidez, trouxe uma 'gaia ciência' para a vida, recusando-se a descer do palco,
tomando de assalto os moinhos das verdades. Porque conhecia a todos os
mecanismos que poderiam agir sobre sua pessoa, perfeitamente, entregou-se aos
subterfúgios, aos caminhos ocultos. Eco de Derrida: "devo em primeiro lugar ouvir-me.
No solilóquio como no diálogo, falar é ouvir-se." (DERRIDA,2002, p. 119).
Na intencional composição de suas personagens, encontrou seu destino. Restabeleceu
contato com o mundo, a partir da sedução do ficcional. Pôs o corpo à serviço do
corpus, seu texto estranho. Ladrão do fogo divino que emana das palavras, tesouro
hieroglífico, ofereceu toda a poesia de uma vida dedicada ao Belo. Lapidou o sonho e
deu à sua época um romance único O retrato de Dorian Gray . Obra completa e
definitiva - resumo colorido de quem quis abolir os protocolos para a leitura das
palavras. A permissividade de seu sim sem limite, seduz até hoje os leitores.Pacto
sinistro com Wotton, Hallward e Gray.
O romance analisa e disseca o prazer em todas as fases possíveis. Dorian mantém
uma relação problemática com sua imagem e precisa se defender da insignificância
biológica que julga insuportável: o corpo humano - insuficiente, defeituoso, limitado,
efêmero. A percepção de sua fisiologia rompe com a perspectiva linear que mantinha o
corpo como algo imóvel. Daí, a história ser também uma metáfora do esgotamento do
cânone. Wilde introduz a idéia de que as pessoas escondiam seus estilos triviais de
vida sob imagens prudentes que não denunciariam suas vidas duplas. Lorde Henry -
personagem -chave - suavemente desnuda o sentimento de tédio com certeza então
presente no interior de Dorian e passa a fazer com ele experiências de suas teoria
morais (ou imorais?), 'abrindo os olhos' do jovem para sua própria beleza e o valor
indescritível da eterna juventude, já que "...influenciar uma pessoa é transmitir-lhe
nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com
suas paixões naturais. As virtudes não são reais para ela. Os seus pecados, se é que
existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em
ator de um papel que não foi escrito para ela...." (WILDE, 2003,p.68). A conseqüência
ao abrir os olhos foi descobrir a dor. Dorian reconhece que a mente é fragmentada e
não possui as fronteiras que ele estabelecera. O jovem percebe-se, então, objeto
inscrito em uma trama que não pode controlar. Encarna o conflito de todo homem
civilizado que encontra dificuldade em aceitar os limites fixados por esta corporeidade e
sente-se compelido a desafiá-la. A Dorian, a idéia dos traços e das rugas constituírem
sinais visíveis de uma escrita que o tempo poderia destruir aterrorizava o jovem porque
anularia o idealismo de beleza. Seriam representações da morte antes da morte. As
palavras de Lorde Henry foram do corpo à alma , dos órgãos à conduta do jovem. A
enunciação do desejo de ter seu corpo intocado pelo tempo, enquanto o retrato
guardaria todas as marcas, lança Dorian em uma jornada frenética que caracteriza a
busca decadentista de um mais além que não conhecia qual fosse, apenas desejando
algo de novo:"quanto mais sabia, mais desejava saber. Todos os apetites furiosos, se
tornavam mais vorazes à medida que os satisfazia." (WILDE,2003 p. 151).
Lorde Henry conseguiu perturbar a 'obra' de Basílio. O pintor entrou com seu corpo na
pintura, por isso, ao passear os olhos sobre o retrato podia reconhecer-se também;
desejava fundir-se ao modelo, já que o criador acreditava ter depositado demasiado de
si. O clima dramático se intensifica quando Dorian é presenteado com o 'livro amarelo':
"seus olhos caíram sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. Que seria?...era
o livro mais estranho que tinha lido. Teve a impressão de que os pecados do mundo,
vestidos de maneira singular, desfilavam diante em um mudo cortejo, ao som delicado
de algumas flautas. Coisas com que tinha sonhado confusamente se tornavam
repentinamente reais para ele...era uma novela sem enredo, com um personagem, na
realidade, um simples estudo psicológico de um jovem parisiense, que passava a vida
tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e maneiras de pensar de todos
os outros séculos, com exceção do seu, e resumir em si mesmo os estados de ânimo
que experimentou..." (WILDE,2003 p. 149). Dorian tinha sido envenenado e procurava
transcender as relações humanas, suspender o tempo e a História. A vida passava a
ser concebida como movimento em sua atemporalidade. Wilde transmite o momento
sempre presente de experiência e intensidade, quer em vinte e quatro horas ou em
anos, unindo acontecimentos que formam a duração da imaginação humana. O grande
prazer estaria nesta jornada em direção ao desconhecido, realidade interior que nunca
poderia ser completamente apreendida.
Ao buscar o múltiplo em sua personalidade, Dorian multiplica seus pecados. Ele falha,
não por causa destes, mas devido à incapacidade de atingir a alta torre do
desinteresse contemplativo de si e do mundo. Permanecendo prisioneiro do medo e do
remorso, tentou adequar as fantasias que criara à consciência do mundo. Dorian, como
corpo invadido pela loucura e pela paixão, sobreviveria eternamente, não fosse a
tentação de categorizar. Para continuar 'atuando', era preciso permanecer velado pela
ilusão. Foi seu derradeiro erro.
O trágico fim de seu notório personagem foi também o seu. Oscar Wilde trocou a dor
que pode durar a vida inteira pelo prazer que dura um instante. Ao dar de seu
conhecimento para os outros, roubou algo de si mesmo e conheceu a força da dor. Sua
recompensa, no entanto, foi o reconhecimento no imenso número de seguidores em
todo o mundo. As inúmeras máscaras revelaram, cada uma a seu modo, pistas para
uma vida completa.Não fez de seu coração um coração de pedra (como diz em
Apologia ), seguindo o caminho ‘poeirento' do senso comum. Sua arte escrita seria guia
da experiência para os espíritos livre que estavam por vir.
NOTAS:
1 WILDE, 2003, p.1090
2 BORGES, 1998, p.531
BIBLIOGRAFIA :
BORGES, J.L. Obras completas i . São Paulo: Globo, 1998.
COELHO, J.P. A letra e o leitor . Póvoa de Varzim: Portugália Editora, 1968.
DANSON, L. Wilde's intentions . New York : Oxford University Press, 1997.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença . São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal . São Paulo: Martin Claret, 2003.
--------------------. O nascimento da tragédia . São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RIBEIRO, J. Páginas de estética . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.
WILDE, O. Obra Completa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
quarta-feira, 25 de outubro de 2017
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Qual sua personagem favorita? II
O Rouxinol... O Rouxinol e a Rosa é um adorável conto infantil do querido Oscar Wilde. O pássaro tão cantado pelos poetas personifica um ve...
-
O silêncio celebrado no filme O artista , de Michel Hazanavicius, reaqueceu a lembrança de um ...
-
Guardamos memórias em fotos, cartas, objetos, mas, o tempo, este inexorável amigo, corrói, deteriora. As retinas, no entanto, vêm em socorro...
-
"O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo...
Nenhum comentário:
Postar um comentário