Assim, nasceram os Contos de um leitor voraz - coletânea de instantâneos que se iniciará com o ano de 2014.
E o primeiro se apresenta.
Era um dia de
outono – desses magníficos que indenizam da ausência da alegria do verão, bem
ao gosto de Alexandre Dumas. Eu, necessitando de pausa na papelada do
escritório, rendi-me ao chamamento da brisa suave, peguei o paletó e ganhei a
rua. Que encantos me aguardariam agora que a imaginação libertara-se da tirania
do espaço? Senti-me personagem e autor (ou seria um autor-personagem? Ora, que
diferença fazia isso neste instante de liberdade? Tola digressão. Volto,
então.).
Caminho
lentamente pela frenética Avenida Rio Branco, destoando sensivelmente de todos
os companheiros transeuntes que corriam com olhar preocupado e testa franzida.
Divertia-me pensar que eu era diferente (pelo menos ali, no momento que escolhi
eternizar!). Virei na Rua do Ouvidor; as vitrines coloridas e o barulho quase
ensurdecedor dos vendedores ambulantes fizeram-me sentir o que devia sentir João
do Rio (ou Paulo Barreto) quando se decidia por escrutinar a alma humana na
rua: fascínio. Puro fascínio. Moças elegantemente vestidas paravam para
experimentar peças e acessórios – como bolsas – estendidos nas calçadas
lotadas. Distintos cavalheiros fumavam um ou dois cigarros enquanto vociferavam
para alguém do outro lado d telefone celular. Outros ainda, de pé, degustavam o
café fresquinho do bar. Busquei no bolso o caderno de notas que rapidamente
escondera antes de sair (afinal, nunca se sabe quando uma boa história poderia
surgir!). “Flanêur por um dia, percorro as ruas do centro do Rio de Janeiro em
busca destes instantâneos que, fotografados pelas ágeis mãos de um escritor ou
de um jornalista, alegram ou fazem meditar um leitor ávido de emoções.”. Bom
começo de escrita. Fecho o caderno e deixo o lápis marcando a página já sulcada
pelas letras ansiosas por aventura. À direita, um velho senhor esforçava-se com
a voz chamando a atenção para uma apetitosa seleção de frutas frescas.
Detive-me – o que o animou de pronto. Escolhi duas maçãs e uma laranja,
enquanto o homem afiançava-me da qualidade do produto que vendia. Tinha no
rosto cansado fisionomia suave, dessas que vem com a sabedoria dos anos
passados em luta. Sorri-lhe e perguntei se vinha sempre para aquele ponto.
-
Nem todo dia; as penas não permitem. Mas, o ponto é bom e à hora do almoço ou
no fim da tarde, o movimento aumenta e o lucro também. Com a patroa doente,
remédios caros, o trabalho duro oferece retorno, não é patrão?
-
O que tem sua senhora, se me permite perguntar?
-
Vai entender, patrão. Vez ou outra cai de tristeza na cama. A cabeça e os pés
doem. Chora até dormir. Fica assim por uns três dias. Depois se levanta e
enfrenta a lida como se dela não se tivesse afastado. O médico disse que é
melancolia; receitou umas pílulas que a fazem dormir mais calmamente. Olha a
fruta fresca! Bem fresca para o lanche! Desculpe, patrão. Os jovens conseguem
freguesia porque oferecem eletrônicos, brincos, colares que as moças gostam. Só
sei de frutas e elas me deram sustento até hoje. Não mudo não.
-
O senhor acha a vida de hoje melhor do que a de alguns anos atrás?
-
Difícil dizer. O progresso ajudou muito. Mas, sinto falta da camaradagem, sabe?
Não sei se o patrão entende. Aquela
prosa com os amigos. Hoje, o pessoal anda sem tempo. Um parece que não vê o
outro. Bem, patrão, coisa de velho. Liga não.
-
Gostei de conhecê-lo e espero levar mais de suas frutas num outro dia.
-
Agradecido, patrão. Sempre a seu dispor. Uma boa tarde.
Deixei
o vendedor. Peguei o caderno e escrevi: “A rua guarda em seu asfalto e em suas
calçadas almas sensíveis ao sofrimento desconhecido do outro. A dor que cada um
guarda e nem sabe foi descortinada por aquele vendedor. Ali. A dor de não ver o
semelhante como um igual.”. Distraído, olhei para o relógio. Duas horas.
Apressei o passo e me misturei na multidão.
Eu trabalho bem no Centro do Rio. Vou lembrar-me desse conto ao passar por essas ruas. Num conto assim a gente se transporta , vivendo a emoção de cada narrativa.
ResponderExcluirO centro da cidade por si só já se constitui um texto, já que a diversidade de atividades é incrível. Espero que você goste desta nova coletânea. Bjs.
ResponderExcluir