terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Como ficcionalizei minha vida

            Ao longo dos anos, a leitura nutriu em mim a vontade de multiplicar-me. Duplicar aventuras, repetir bons momentos, arquitetar uma existência marcada pela diversidade.
         Assim, nasceram os Contos de um leitor voraz - coletânea de instantâneos que se iniciará com o ano de 2014.

         E o primeiro se apresenta.


        
Era um dia de outono – desses magníficos que indenizam da ausência da alegria do verão, bem ao gosto de Alexandre Dumas. Eu, necessitando de pausa na papelada do escritório, rendi-me ao chamamento da brisa suave, peguei o paletó e ganhei a rua. Que encantos me aguardariam agora que a imaginação libertara-se da tirania do espaço? Senti-me personagem e autor (ou seria um autor-personagem? Ora, que diferença fazia isso neste instante de liberdade? Tola digressão. Volto, então.).

Caminho lentamente pela frenética Avenida Rio Branco, destoando sensivelmente de todos os companheiros transeuntes que corriam com olhar preocupado e testa franzida. Divertia-me pensar que eu era diferente (pelo menos ali, no momento que escolhi eternizar!). Virei na Rua do Ouvidor; as vitrines coloridas e o barulho quase ensurdecedor dos vendedores ambulantes fizeram-me sentir o que devia sentir João do Rio (ou Paulo Barreto) quando se decidia por escrutinar a alma humana na rua: fascínio. Puro fascínio. Moças elegantemente vestidas paravam para experimentar peças e acessórios – como bolsas – estendidos nas calçadas lotadas. Distintos cavalheiros fumavam um ou dois cigarros enquanto vociferavam para alguém do outro lado d telefone celular. Outros ainda, de pé, degustavam o café fresquinho do bar. Busquei no bolso o caderno de notas que rapidamente escondera antes de sair (afinal, nunca se sabe quando uma boa história poderia surgir!). “Flanêur por um dia, percorro as ruas do centro do Rio de Janeiro em busca destes instantâneos que, fotografados pelas ágeis mãos de um escritor ou de um jornalista, alegram ou fazem meditar um leitor ávido de emoções.”. Bom começo de escrita. Fecho o caderno e deixo o lápis marcando a página já sulcada pelas letras ansiosas por aventura. À direita, um velho senhor esforçava-se com a voz chamando a atenção para uma apetitosa seleção de frutas frescas. Detive-me – o que o animou de pronto. Escolhi duas maçãs e uma laranja, enquanto o homem afiançava-me da qualidade do produto que vendia. Tinha no rosto cansado fisionomia suave, dessas que vem com a sabedoria dos anos passados em luta. Sorri-lhe e perguntei se vinha sempre para aquele ponto.

- Nem todo dia; as penas não permitem. Mas, o ponto é bom e à hora do almoço ou no fim da tarde, o movimento aumenta e o lucro também. Com a patroa doente, remédios caros, o trabalho duro oferece retorno, não é patrão?

- O que tem sua senhora, se me permite perguntar?

- Vai entender, patrão. Vez ou outra cai de tristeza na cama. A cabeça e os pés doem. Chora até dormir. Fica assim por uns três dias. Depois se levanta e enfrenta a lida como se dela não se tivesse afastado. O médico disse que é melancolia; receitou umas pílulas que a fazem dormir mais calmamente. Olha a fruta fresca! Bem fresca para o lanche! Desculpe, patrão. Os jovens conseguem freguesia porque oferecem eletrônicos, brincos, colares que as moças gostam. Só sei de frutas e elas me deram sustento até hoje. Não mudo não.

- O senhor acha a vida de hoje melhor do que a de alguns anos atrás?

- Difícil dizer. O progresso ajudou muito. Mas, sinto falta da camaradagem, sabe? Não sei se o patrão entende.  Aquela prosa com os amigos. Hoje, o pessoal anda sem tempo. Um parece que não vê o outro. Bem, patrão, coisa de velho. Liga não.

- Gostei de conhecê-lo e espero levar mais de suas frutas num outro dia.

- Agradecido, patrão. Sempre a seu dispor. Uma boa tarde.

Deixei o vendedor. Peguei o caderno e escrevi: “A rua guarda em seu asfalto e em suas calçadas almas sensíveis ao sofrimento desconhecido do outro. A dor que cada um guarda e nem sabe foi descortinada por aquele vendedor. Ali. A dor de não ver o semelhante como um igual.”. Distraído, olhei para o relógio. Duas horas. Apressei o passo e me misturei na multidão.

 

 

 

 

2 comentários:

  1. Eu trabalho bem no Centro do Rio. Vou lembrar-me desse conto ao passar por essas ruas. Num conto assim a gente se transporta , vivendo a emoção de cada narrativa.

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  2. O centro da cidade por si só já se constitui um texto, já que a diversidade de atividades é incrível. Espero que você goste desta nova coletânea. Bjs.

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