O
sábado estava quente e não parecia convidativo para atividades esportivas ao ar
livre (ou assim eu desejava, já que os amigos esperavam para uma partida de
futebol). Liguei para o Haroldo e disse ter uma dor de cabeça – poderia ser a
gripe que deixara ouros colegas de licença no trabalho. Pesaroso, Haroldo disse
que eu deveria estar na cama. Livre do compromisso, pus-me a pensar no que
faria. Ficar em casa, não queria. Troquei a camisa, peguei uma bolsa e sem
saber bem o porquê, meti a câmera fotográfica e o caderno de notas lá.
Quando
ganhei a rua, uma estranha sensação me tomou ao avistar um pássaro negro.
Passou a milímetros de meu rosto, fazendo-me cambalear. Seria o corvo de Edgar
Allan Poe? Tolice! Não há corvos aqui. Mas, e se fosse? Nevermore. Bom presságio ou mau agouro? Ora, o dia era meu e o
roteiro também. Seria bom presságio para um dia de aventura.
Cruzando
a esquina, rapidamente peguei a máquina para captar a imagem da inspiração que
surpreendera. Mas, o estranho ser já fugira das vistas. Virando-me de relance,
vi uma jovem, olhos fixos no chão, à beira da calçada oposta. Não era bonita,
ou assim não parecia, pois não podia ver-lhe as feições. Eu, ali parado,
aguardava o próximo passo. Possivelmente atraída pela insistência do meu olhar,
a moça levantou o rosto e os mais lindos olhos negros me fitaram, cobertos de
lágrimas. Sorri-lhe e acenei, como se faz ao encontro de um velho conhecido.
Como sua única atitude fora a de descer da calçada para o asfalto, fui tomado
de súbito terror e passei a acenar-lhe com frenético movimento. Podia ter-me
como louco, mas ela parecia em perigo e eu, sua chance de resgate. Eu era o
Quixote; ela, Dulcineia. Os carros e ônibus passavam a toda velocidade e ela,
disposta ao próximo passo. A câmera ainda na mão pareceu-me, então, a arma que
salvaria a donzela. Bati a foto e ela como que acordou de um sonho. Olhou para
os lados, aflita. Atravessei a rua com as mãos erguidas, indiferente às buzinas
e aos gritos ofensivos dos motoristas. Tomei sua mão e levei-a a um banco da
praça próxima. Caminhamos em silêncio de mãos dadas. Notei então que vestia-se
de preto – vestido e sapatos. Sentamo-nos. De repente, beijou-me a mão e sorriu
balbuciando um tímido ‘obrigada’. Levantou-se, deixando-me ali, meio atordoado.
Tirei da bolsa o caderno de notas e escrevi: “Bom presságio. Na escuridão do
pensamento entristecido pelas tribulações que a vida apresenta, a doce visão de
uma reluzente armadura traz inexplicável luz que anima o próximo passo. Miguel
de Cervantes fez do Quixote o flash
da câmera que acordaria gerações de homens e mulheres, ajudando-os na esperança de dias melhores.
Literatura é isso: materializar através da escrita o que se forma na mente imaginativa
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