quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Contos de um leitor voraz II


O sábado estava quente e não parecia convidativo para atividades esportivas ao ar livre (ou assim eu desejava, já que os amigos esperavam para uma partida de futebol). Liguei para o Haroldo e disse ter uma dor de cabeça – poderia ser a gripe que deixara ouros colegas de licença no trabalho. Pesaroso, Haroldo disse que eu deveria estar na cama. Livre do compromisso, pus-me a pensar no que faria. Ficar em casa, não queria. Troquei a camisa, peguei uma bolsa e sem saber bem o porquê, meti a câmera fotográfica e o caderno de notas lá.

Quando ganhei a rua, uma estranha sensação me tomou ao avistar um pássaro negro. Passou a milímetros de meu rosto, fazendo-me cambalear. Seria o corvo de Edgar Allan Poe? Tolice! Não há corvos aqui. Mas, e se fosse? Nevermore. Bom presságio ou mau agouro? Ora, o dia era meu e o roteiro também. Seria bom presságio para um dia de aventura.

Cruzando a esquina, rapidamente peguei a máquina para captar a imagem da inspiração que surpreendera. Mas, o estranho ser já fugira das vistas. Virando-me de relance, vi uma jovem, olhos fixos no chão, à beira da calçada oposta. Não era bonita, ou assim não parecia, pois não podia ver-lhe as feições. Eu, ali parado, aguardava o próximo passo. Possivelmente atraída pela insistência do meu olhar, a moça levantou o rosto e os mais lindos olhos negros me fitaram, cobertos de lágrimas. Sorri-lhe e acenei, como se faz ao encontro de um velho conhecido. Como sua única atitude fora a de descer da calçada para o asfalto, fui tomado de súbito terror e passei a acenar-lhe com frenético movimento. Podia ter-me como louco, mas ela parecia em perigo e eu, sua chance de resgate. Eu era o Quixote; ela, Dulcineia. Os carros e ônibus passavam a toda velocidade e ela, disposta ao próximo passo. A câmera ainda na mão pareceu-me, então, a arma que salvaria a donzela. Bati a foto e ela como que acordou de um sonho. Olhou para os lados, aflita. Atravessei a rua com as mãos erguidas, indiferente às buzinas e aos gritos ofensivos dos motoristas. Tomei sua mão e levei-a a um banco da praça próxima. Caminhamos em silêncio de mãos dadas. Notei então que vestia-se de preto – vestido e sapatos. Sentamo-nos. De repente, beijou-me a mão e sorriu balbuciando um tímido ‘obrigada’. Levantou-se, deixando-me ali, meio atordoado. Tirei da bolsa o caderno de notas e escrevi: “Bom presságio. Na escuridão do pensamento entristecido pelas tribulações que a vida apresenta, a doce visão de uma reluzente armadura traz inexplicável luz que anima o próximo passo. Miguel de Cervantes fez do Quixote o flash da câmera que acordaria gerações de homens e mulheres, ajudando-os  na esperança de dias melhores.

 

Um comentário:

  1. Literatura é isso: materializar através da escrita o que se forma na mente imaginativa

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