segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Contos de um leitor voraz V


Tinha de entregar uns papéis do último acordo do outro lado da cidade. Nunca ia lá – não é força de expressão; nunca ia lá mesmo! O gerente insistira para que eu usasse o caro da empresa, mas decidi pelo ônibus. As voltas que o transporte público dá possibilitam a um curioso como eu deleitar-se nas cores e imagens diversas. Estava quase chegando, eu pensava. Foi então que em uma das muitas curvas, entramos numa rua em que se enfileiravam construções antigas e muito similares aos cortiços de fins do século XIX. Dei o sinal para parada e desci, meio fascinado pelo lugar. Parecia que eu adentrava os domínios do João Romão. O cortiço de Aluísio Azevedo estava ali – as lavadeiras, os gritos, as risadas, um frenético desfile de aromas e sons. Encantadora aventura. O tempo cessara de exercitar-se em anos, horas e minutos e eu aproveitava esta dadivosa experiência. Meninos descalços lutavam com a ‘bola’ de lata, enquanto meninas em vestidos de chita, sentadas nos degraus dos casebres, brincavam com desbotadas bonecas de pano. Os olhos marejaram. O ritmo que minha vida adquirira, ou melhor, as escolhas que eu fizera deixaram no esquecimento a luta cotidiana de tantos.

Isto precisamente não se modificara. Algumas necessidades permaneciam as mesmas. E a necessidade maior – a da felicidade, da realização pessoal – ainda estava lá. Uma menina olhou-me e sorriu, tímida. Esticou-me a boneca e disse:

- É a Didi. Pode pegar.

Recebi-a nas mãos. Não tinha um olho, mas o semblante era incrivelmente real e aconchegante.

- Eu sabia que a Didi podia ajudá-lo. Está perdido?

- Não...Acho...Talvez...Penso que sim.

Ela sorriu, divertida.

- Leve a Didi. Ela ajuda você a encontrar...bem, a encontrar o que você quiser. Adeus.

Deixou-me em carreira. Instintivamente, abracei a boneca e parti. Ganhei a rua que parecia ser a de entrada do cortiço. Chamei um táxi. Entreguei os documentos no endereço pretendido. A boneca causara um certo estranhamento nos colegas, mas não me preocupei em explicar. Quando cheguei à casa, sentei-me olhando bem para Didi. Ela existia mesmo. No trajeto de volta ainda duvidara do ocorrido naquela tarde, mas Didi estava mesmo ali. Pensava agora nas enigmáticas palavras da menina. No que poderia Didi me ajudar? Eu não sabia que precisava de ajuda. Ou sabia? Olhava fixo para Didi – aquele sorriso desbotado me incomodava um pouco agora. Ela sabia que eu não estava satisfeito no trabalho. As longas horas no escritório e plantões nos finais de semana afastaram-me da família. Não via minha mãe há cerca de dois anos. Que saudade daquele cheiro de sua cozinha sempre cheia de guloseimas para quem chegasse. Havia recebido oferta de um amigo para trabalhar em uma empresa um pouco menor, mas com um horário atraentemente fixo. O sorriso de Didi pareceu-me mais nítido. Peguei o telefone. A suave voz emocionou-me.

- Mãe, sou eu.

- Filho, sabia que você ligaria. Tive um sonho estranho com uma menina esta noite...

- Conte-me amanhã. Vou vê-la, certo?

- Que bom?

Ela chorava muito. Despedi-me. Liguei para o Carlos e marquei entrevista para segunda-feira. Senti um alívio; estava leve mesmo. Olhei para a cadeira onde deixara Didi. Não estava mais lá. Não me espantei.

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