Tinha
de entregar uns papéis do último acordo do outro lado da cidade. Nunca ia lá –
não é força de expressão; nunca ia lá mesmo! O gerente insistira para que eu
usasse o caro da empresa, mas decidi pelo ônibus. As voltas que o transporte
público dá possibilitam a um curioso como eu deleitar-se nas cores e imagens
diversas. Estava quase chegando, eu pensava. Foi então que em uma das muitas
curvas, entramos numa rua em que se enfileiravam construções antigas e muito
similares aos cortiços de fins do século XIX. Dei o sinal para parada e desci,
meio fascinado pelo lugar. Parecia que eu adentrava os domínios do João Romão.
O cortiço de Aluísio Azevedo estava ali – as lavadeiras, os gritos, as risadas,
um frenético desfile de aromas e sons. Encantadora aventura. O tempo cessara de
exercitar-se em anos, horas e minutos e eu aproveitava esta dadivosa
experiência. Meninos descalços lutavam com a ‘bola’ de lata, enquanto meninas
em vestidos de chita, sentadas nos degraus dos casebres, brincavam com
desbotadas bonecas de pano. Os olhos marejaram. O ritmo que minha vida
adquirira, ou melhor, as escolhas que eu fizera deixaram no esquecimento a luta
cotidiana de tantos.
Isto
precisamente não se modificara. Algumas necessidades permaneciam as mesmas. E a
necessidade maior – a da felicidade, da realização pessoal – ainda estava lá.
Uma menina olhou-me e sorriu, tímida. Esticou-me a boneca e disse:
-
É a Didi. Pode pegar.
Recebi-a
nas mãos. Não tinha um olho, mas o semblante era incrivelmente real e
aconchegante.
-
Eu sabia que a Didi podia ajudá-lo. Está perdido?
-
Não...Acho...Talvez...Penso que sim.
Ela
sorriu, divertida.
-
Leve a Didi. Ela ajuda você a encontrar...bem, a encontrar o que você quiser.
Adeus.
Deixou-me
em carreira. Instintivamente, abracei a boneca e parti. Ganhei a rua que
parecia ser a de entrada do cortiço. Chamei um táxi. Entreguei os documentos no
endereço pretendido. A boneca causara um certo estranhamento nos colegas, mas
não me preocupei em explicar. Quando cheguei à casa, sentei-me olhando bem para
Didi. Ela existia mesmo. No trajeto de volta ainda duvidara do ocorrido naquela
tarde, mas Didi estava mesmo ali. Pensava agora nas enigmáticas palavras da
menina. No que poderia Didi me ajudar? Eu não sabia que precisava de ajuda. Ou
sabia? Olhava fixo para Didi – aquele sorriso desbotado me incomodava um pouco
agora. Ela sabia que eu não estava satisfeito no trabalho. As longas horas no
escritório e plantões nos finais de semana afastaram-me da família. Não via
minha mãe há cerca de dois anos. Que saudade daquele cheiro de sua cozinha
sempre cheia de guloseimas para quem chegasse. Havia recebido oferta de um
amigo para trabalhar em uma empresa um pouco menor, mas com um horário
atraentemente fixo. O sorriso de Didi pareceu-me mais nítido. Peguei o
telefone. A suave voz emocionou-me.
-
Mãe, sou eu.
-
Filho, sabia que você ligaria. Tive um sonho estranho com uma menina esta
noite...
-
Conte-me amanhã. Vou vê-la, certo?
-
Que bom?
Ela
chorava muito. Despedi-me. Liguei para o Carlos e marquei entrevista para
segunda-feira. Senti um alívio; estava leve mesmo. Olhei para a cadeira onde
deixara Didi. Não estava mais lá. Não me espantei.
As vezes a vida nos dá sinais que nos despertam para o que importante e que deixamos de lado. Adorei o conto
ResponderExcluirLegal, Beth. Bjs.
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