quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Contos de um leitor voraz III


A reunião se arrastava com a sequência estatística que eu havia lido há duas semanas. Brincava com o lápis na mesa, ao mesmo tempo que lembrava das palavras de D. Maria no dia anterior:  - O senhor precisa comprar feijão. A despensa está ficando vazia. Vou fazer uma lista, mas de pronto preciso de feijão.

Feijão, ora. Sabia que precisava do feijão. Às vezes, porém, o feijão consumia-lhe as forças; exigia demais dele: toda a sua atenção. Ali estava ele, na sala de reuniões... pelo feijão. O que queria mesmo era um pouco de sonho. Só para devolver-lhe um tanto da energia de que gozava quando jovem. Alguns instantes seriam suficientes. Subitamente, o alarme de incêndio soou estridente. Meu colega cochichou-me aos ouvidos: - Não se assuste, é treinamento. A Brigada dos Bombeiros exigiu e propusemos o dia de hoje. Lá se vão trinta minutos pelo menos.

Trinta minutos. Era o suficiente. Desci as escadas apressadamente e cheguei logo à rua. Nunca aquela rua pacata parecera tão encantadora. Fechei os olhos por alguns segundos e quando os abri vi um imenso labirinto e todos os homens e mulheres da empresa passando por suas curvas como a procura de sápida. Eu, espectador, enxergava claramente o ponto de chegada e o caminho que deveria ser percorrido. Ri porque, diferente de Teseu, não precisaria do fio de Ariadne. As escolhas erradas dos indivíduos, no entanto, desesperavam-me. Comecei a gritar feito louco:

- À direita, você. Não, você de camisa azul, À direita. Não!

Não pareciam me ouvir. Na verdade, não pareciam incomodados em circular por vias que não levavam à saída. O olhar apático, passo desleixado e veloz impediam a descoberta da nova perspectiva; aquela que os tiraria do labirinto. Suspirei e puxei o caderno de notas do bolso. Escrevi: “Não preciso de mais feijão. Tenho o suficiente. Preciso do sonho: para sobreviver e ainda conservar a capacidade de deslumbramento. “ Fechei os olhos; ouvi o som da sirene do carro dos bombeiros. Abri os olhos e o Matias já me acenava para voltarmos. Lembrei-me do Lara de Orígenes Lessa e sorri. Muito bem...agora...ao feijão. Até o próximo sonho.

 

 

Um comentário:

  1. Eu consegui agora me transportar com o seu conto Stella. A dualidade entre a realidade e o sonho retratada de forma sutil. Adorei lembrar da obra que li quando era adolescente.
    bjs

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