As viagens de Alexandre Herculano
Passeiam pelos olhos de minha memória
A passos largos
Das muralhas
Dos pórticos
Dos açudes
Das colinas
Essa voz aventureira
Ouve, ausculta,
Anuncia um cenário
De luz e treva
De medos e certezas
De glória e ruína
Do humano demasiadamente humano
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Food for thought II
Oscar Wilde:
"To recognize that the soul of a man is unknowable is the ultimate achievement of Wisdom. The final
mystery is oneself. When one has weighed the sun in a balance, and measured the steps of the moon,
and mapped out the seven heavens star by star, there still remains oneself. Who can calculate the orbit
of his own soul.".
Somos adoráveis mistérios!
"To recognize that the soul of a man is unknowable is the ultimate achievement of Wisdom. The final
mystery is oneself. When one has weighed the sun in a balance, and measured the steps of the moon,
and mapped out the seven heavens star by star, there still remains oneself. Who can calculate the orbit
of his own soul.".
Somos adoráveis mistérios!
segunda-feira, 28 de maio de 2012
Guardador de existências
Guardador de existências nasceu da vontade de homenagear alguns dos escritores que marcaram minha vida. É uma coletânea de poemas em prosa e aí está mais um:
O tapete persa revela o mundo num jardim.
O todo no pouco.
Fio a fio.
A resposta em cada ponto.
Roteiro para o livro de Lorde Henry Wotton,
Palavras desafiadoras para uma vida devotada ao Belo.
Ficcionalizando-se,
Wilde caminhou por escombros,
Pés na sarjeta,
Olhos nas estrelas.
Em luta com o ordinário,
Avançando pelas fronteiras,
Desconhecendo barreiras,
Numa existência paralela,
Inútil,
Vazia de razão,
Transbordante de imaginação.
Poética
O tapete persa revela o mundo num jardim.
O todo no pouco.
Fio a fio.
A resposta em cada ponto.
Roteiro para o livro de Lorde Henry Wotton,
Palavras desafiadoras para uma vida devotada ao Belo.
Ficcionalizando-se,
Wilde caminhou por escombros,
Pés na sarjeta,
Olhos nas estrelas.
Em luta com o ordinário,
Avançando pelas fronteiras,
Desconhecendo barreiras,
Numa existência paralela,
Inútil,
Vazia de razão,
Transbordante de imaginação.
Poética
sábado, 26 de maio de 2012
O João do Rio I
ALMA
ENCANTADORAMENTE POÉTICA
Stella
Maria Ferreira
Dedicatória
À João do Rio, leitor de olhos imaginativos cujo discurso
‘alternativo’ tornou a percepção mais extensa e intensa; que escalou o zênite
de cada dia entre a aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito
era o infinito, são dedicadas estas páginas de simplicidade.
“O que
confere ‘nobreza’(...)é a coragem sem o desejo
das honras; é
um contentamento de si mesmo
que
transborda
e se prodigaliza aos homens e às coisas(...)”1.
Na vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de
sensações experimentadas, mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a
tensão de alguns músculos. Através do texto literário, o leitor pode revestir-se
desta exterioridade – que lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí
residiria a força do texto – a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem
externa de si.A luta do artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada
personagem, o que não acontece na vida.
A força de uma vida
que se renda definitivamente à Arte a ponto de confundir-se com ela parece ter
sido o caminho buscado por alguns escritores de final do século XIX, que
viveram sob a égide do colapso das expectativas. O texto resultante desta
experiência não se caracteriza pela precisão e se diverte com uma lógica
circular, já que indiferente ao avanço do tempo. As linhas escarlates e
serpentinas que se seguem deslizam do papel para destacar o traçado de palavras
que comporta sinuosidades desconcertantes de contraditória maestria. É texto de
quem do cotidiano faz o extraordinário ao deixar-se ser arte, ou antes,
deixar-se ser, pura e simplesmente. É tensão constante de quem toma o risco de
inventar-se a cada dia, de desfazer-se de chaves sem descanso, sem repouso; é
fruto da vertigem de quem se vê preso por querer numa teia que atrai porque
assusta e surpreende.
O deslocamento expatria este artista;
sujeito e objeto se confundem em uma existência cujo fim é o de eliminar a
distância entre o fazer poético e o viver poético. É escrita de quem se vê nos
outros. Assim, perdido na tradução dos signos, o cronista-poeta procura um
‘lugar’, sabendo-se espectador e ator. Sua é a linguagem que remete para si
mesma de maneira infinita, entreabrindo-se e sendo direcionada pela
musicalidade das palavras a partir de suas sílabas.
Joe,
José Antônio José,João Coelho, Caran D’Ache, Simeão e, por fim, João
Paulo Alberto Coelho Barreto - tendo nascido em 5 de agosto de 1881 -
registra-se definitivamente na história literária de finais do século XIX como João do Rio. A cidade que mereceu seu atento olhar, sua crítica ferina e
seu amor incondicional teve, afinal, a alma do artista. A ela ele se entregou e
este dramático enlace rendeu aos leitores escritos atormentados, elegantes,
sensuais, paradoxais, sutis e bizarros.
Palco de amores e dissabores, as ruas do Rio de Janeiro
finissecular ganham nas mãos de João um colorido de sangue e o encanto da
escrita é resultado da observação de amante de olhar transitivo, que reconhece
por entre as montras a estranha beleza do escombro. Frente à modernidade,
torna-se um pensador da cidade – um leitor de seus signos – e, desejando ir aos
extremos, fugindo do corriqueiro, quer contar uma capital que acelera o seu ritmo
projetando-se para o mundo.
O fio aglutinador dos
textos de João do Rio é um painel que não se curva ao cotidiano e que, pela
verticalidade, preenche incontrolavelmente qualquer rigidez com leveza e
alegria interior, divertindo os espíritos ansiosos por surpresas. Das cinzas
que atapetavam os primeiros anos do século XIX, João manteve um espaço mágico
para a eternidade de vida que desejava ganhar, procurando ocultar, sim,
qualquer sentença de morte que insistisse em se introduzir no gosto de vida de seus
textos, que como esconderijo, ofertava.
Cheio de boas intenções,
João lidou com a alegria e a morte, aparentemente com o mesmo ardor. Seu
esforço foi em direção à uma escritura que se constituísse diferença;
transgressão que apontasse para as várias máscaras refletidas no prazer
instaurador de uma nova visão para o corpus.
Textos destruidores da forma cristalizada, que se distinguem pelo que possuem,
bem como pelo que excluem. A serviço da in-consciência, batalham pela constante
interrogação acerca dos vazios. Apesar de estar inserido num conturbado
momento histórico, João não se deixou
vincular ou depender, produzindo em sua escrita efeitos encantatórios sobre o
que pode um corpo.
Paulo Barreto promoveu uma
arquitetura outra para a cidade maravilhosa em inícios do século XX. Suas
crônicas e contos reconstituiriam o charme da cidade que se buscava maquilada
em Paris. Diz Renato Cordeiro Gomes em João
do Rio – Vielas do vício, ruas da
graça :
“A cidade do Rio de Janeiro, também em metamorfose como um
palco em que se monta uma máscara – figurino de uma mistificação do moderno -,
convoca o artista para representar travestido de jornalista. Estilizando a
experiência que se atrela ao trabalho, Paulo Barreto, aliás João do Rio,
impõe-se a criação de ficções tratadas como se fossem verdadeiras, graças à
utilidade prática dessas criações, máscaras como parte indispensável da vida
(...) – ele pode falar em nome da cidade, na escrita que também é máscara.”2
Das lentes deste observador
irônico, teríamos a fotografia em perspectivas do real cotidiano carioca.
Multiplicou-se para sentir e tingir sua ação estilizada num mundo dogmatizado.
Psicólogo urbano, sua crônica poética foi subversão porque não fundada na
cronologia, mas no tempo da imaginação que é um – o do instante, o do agora. Ao
perambular pela rua em busca de histórias, exercita seu texto como movimento
circular, eternamente único; a importância originária do tempo marcado cede
lugar a uma crítica que escrutiniza o dia-a-dia, ameaçando e desestruturando a
ordem, ficcionalizando o real. Da experiência de observador, amplia a ação como
contista. Optando pela experiência do corpo como escritura, mistura-se a
indivíduos apressados e a flânerie ganha o charme e toque cariocas: “é
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada
como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente
dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente
adiadas(...)”3 .
A coleção de instantâneos
coletados na rua resultou em A alma
encantadora das ruas4 e,
assim, na esteira de Wilde, perfeito dândi, oferece ao público um cenário
poético para uma cidade cheia de contrastes: “(...)nós somos irmãos, nós nos
sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque
soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une,
nivela e agremia o amor pela rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e
indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas(...)”
(p.3).*
O passeio pelas páginas
parecem corresponder à nossa memória sonhada de como Oscar Wilde, espírito
viajante, deveria se deliciar “falando aos notáveis e aos humildes com
doçura(...)conhecendo cada rua(...)cada viela, sabendo-lhe um pedaço da
história, como se sabe a história dos amigos(...)” (p.6), ou mesmo em silêncio,
pensando com os pés, como Nietzsche, afinal, “(...)a quem não fará sonhar a
rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no
cérebro das multidões(...)” (p.18). A voz deste narrador, “como o flanêur
buscando um flagrante, confere agilidade ao relato, que se desenvolve
espontaneamente em tom de conversa descontraída.” (MESSER, 2002,p.xvi).
1.1. Almas encantadoras
Das muitas visitas aos caminhantes ( mercadores de
livros, músicos ambulantes, cocheiros...), nossa atenção recai sobre as
mulheres: as Mariposas do luxo5 que, surgem no momento, “em que o
dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito,
como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia(...)” (p.101). Os
relógios batem seis horas, “na artéria estreita cai a luz acizentada das
primeiras sombras.” (p.101), e então as raparigas, operárias surgem, devagar,
“quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando(...)” (p.102).
São trabalhadoras que após horas de árdua labuta passam parecendo pássaros
assustados, “tontos de luxo, inebriados de olhar(...)” (p.102). Olham o que possivelmente nunca
chegaram a comprar, olham o que seu trabalho permite que outras mulheres vistam
e usem; “são as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca(...)e
então, todo dia, (...)haveis de vê-las passar(...)A mocidade dá-lhes a
elasticidade dos gestos, o jeito bonito de andar...os vestidos são
pobres(...)mas essa miséria é limpa(...)” (p.102). Paradoxalmente belas, donas
de direito do luxo que a outros proporcionam, têm na rua a oferta do “foco em
torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas(...)” (p.102). A
rua é seu lugar de sonho, onde as cores mais variadas quase ofuscam o olhar
curioso e ávido de vida. As montras “de rendas, montras de perfumes, montras de
toilettes, montras de flores – a
chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las(...)” (p.104). Na hora indecisa,
imprecisa em seus contornos de luz, estas mulheres experimentavam-se sedutoras:
“morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes
nega na polidez espelhante dos vidros(...)” (p.103). O brilho alucinante das
vitrines, arco-íris furta-cor, fazia o contorno de seus corpos dançarem,
cobrindo e descobrindo uma alegria quase infantil, mas com o toque essencial da
malícia de Salomé: “a alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante
dos adereços(...)” (p.104). À dançarina dos sete véus nada se negava e seu tédio
só fora aplacado diante daquele que não se deixara encantar. À estas moças,
tudo fora negado em nome do progresso e da modernidade. Seu tédio, no entanto,
se aliviava com o sonho e o desejo do mundo ‘irreal’; do mundo das impossibilidades, do mundo da pura
beleza. A noite, hora reveladora para os decadentistas, hora dos desejos
proibidos era o palco perfeito para elas, prontas para uma
cena já desenhada inúmeras vezes na mente, com as linhas
memorizadas. Mas, “um suspiro mais forte
– a coragem da que se libertou da hipnose – fá-las desapegar-se do lugar(...) A
rua delira de novo...Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito
tempo(...)” (p.105). O banhar-se no mar da imaginação traz uma alegria febril
que ‘precisa’ ser interrompida pelo movimento da consciência. Para que se
restabeleça a ‘ordem’ é preciso que elas se ‘vejam’ novamente que “a sorte as
fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano,
senão a miragem do esplendor(...)” (p.105).
O lugar do pensamento, hora ociosa, era cada vez mais sufocado pela
necessidade de produzir, de lucrar. E, João, um tanto melancólico, finaliza, “e
haveis de vê-las passar, as mariposas do Luxo, no seu passinho modesto, duas a
duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas(...)” (p.105), para um
destino que o artista gritava não ser o de ninguém. A sobrevivência dependia da
condução da vida como arte, pura e simplesmente manifestação artística. O tom
leva a marca do wildiano A alma do homem
sob o socialismo que reclamava para cada indivíduo uma situação econômica
confortável que lhe garantisse a realização de todo o seu potencial criativo.
Só numa sociedade em que os direitos e acessos fossem comuns poderia a vida se
compor como obra de arte que é. João do Rio, ao trazer “a crônica viva dos
seres que se movimentavam no centro cultural do Brasil e o habitavam nas
primeiras décadas do século XX” (MESSER, 2002,introdução-p.xxxv),
paradoxalmente desmascara e seduz, quando ressalta a vulnerabilidade do senso
comum e a arte como pungente resposta de desconstrução para que as paixões mais
íntimas pudessem ser reveladas. As moças voam por sobre um real por elas
sustentado – com o árduo trabalho – e a elas negado. Se não dispunham de tempo
para sonhar porque eram constantemente interrompidas pela culpa do desperdício,
como poderiam exercitar no pensamento uma vida mais plena. A urgência da hora
de escapar ao constrangimento de olhares acusadores prevenia as jovens de gozar
da liberdade a que foram destinadas. Escravas do lucro, elas acorrentavam os
anseios do presente em nome de um futuro que poderia nunca chegar.
Pelos
labirintos de uma escrita de delícias, João do Rio afirmava e reafirmava
continuamente a imperfeição de quem direciona sua vida pela consciência,
sepultando os instintos, condenando seu progresso pessoal. O corpo de João
também foi sulcado pela força da pena; ele também foi um condenado que
descobriu a alegria destes grilhões libertadores e, nós, os premiados leitores,
só tivemos a ganhar com sua criação que emanou de sua obra.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
COUTINHO,L.E.B;
CORRÊA, I.E.J. O labirinto finissecular e
as idéias do esteta.RJ:
7
Letras,2004.
GOMES,
R.C.João do Rio - vielas do vício, ruas da graça.RJ: Relume
Dumará, 1996.
MESSER,
O. A cidade e a modernidade: João do Rio.Campinas:
Remate de Males, 1990.
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Wilde I
Um olhar sobre De
Profundis
Carta escrita por oscar wilde na prisão
(parte de minha tese de Doutorado)
“A
desventura de hoje não é mais real que a ventura pretérita.”
No primeiro ano de reclusão, os rigores
do sistema penitenciário foram impiedosamente aplicados a Wilde. Tinha que confeccionar certa
quantidade de estopa ou suportar a punição de fazer girar com seus companheiros
a roda que alimentava de água a casa de detenção. O isolamento na cela, cruel o
bastante para conduzi-lo a um sanatório, era aliviado por um número limitado de
livros trazido por amigos, liberados certamente após censura. Os anos dourados
pareciam irremediavelmente deixados para trás. Proibido de escrever na prisão a
não ser cartas (e, mais tarde, mostra-se profundamente agradecido ao novo
diretor da prisão por permitir a ele a expressão: “para um artista, o supremo e
único modo de vida” – WILDE, 2003,p.1340), o prisioneiro da cela 3 da
plataforma 3 da galeria C pintou o gênero epistolar com cores cinzentas, que o
mundo agradeceu com profusão. O título – aparecido cinco anos após a morte do
artista – tomado de empréstimo do Salmo CXXX: “Do fundo do abismo eu grito à
ti!” é relato pungente sobre as causas e conseqüências de sua reclusão – e
exclusão -, vida de imobilidade paralisante, eternamente ou ordenada sobre um
rígido modelo. De Profundis é tocante, exercício novo uma vez mais – o abandono,
não às aventuras, mas o do paria, para quem só há uma estação: a estação da
dor.
Na solitária onde reina um eterno crepúsculo,
a falta de dias de Sol aperta o coração. Apesar disso, no decorrer do texto, a dolorosa
confissão, aparente fraqueza, se mostra em superioridade, sem receio e o branco
de uma paz alentadora invade e envolve o escrito. A extenuante viagem é
atenuada pela alegria que conduz ao profundo abismo para reerguê-lo depois.
Pela obra literária que foi sua vida, descobriu-se e ultrapassou-se. O
pântano da hipocrisia é vencido pela flor da regeneração. O esteta
despedaçara-se para reconstituir-se ao infinito. De Profundis torna-se, assim, um extenso monólogo afetado no estilo
pela ausência de público. O caráter confidencial, confessional, naturalmente
conferido às cartas dá um novo tom para esta obra artística: “Agora percebo
perfeitamente o que há em mim e vejo com clareza o que devo fazer. E quando
digo isto, não me refiro a nenhuma ordem nem sanção externas, inadmissíveis para
mim. Sou, mais do que nunca, individualista. Não há nada que alcance mais valor
que aquilo que sai de nós mesmos(...)” (WILDE, 2003,p.1390). Retira ou veste
uma máscara? Isto não parece importar: “o ter saudades das próprias
experiências é atalhar a evolução de si próprio. Abjurá-las é colocar uma
mentira nos lábios. É nada menos que renegar a alma(...)” (WILDE, 2003,p.1392).
Derrotado e vencedor, que veio “(...)não da obscuridade para a notoriedade
momentânea do crime, mas de uma espécie de eternidade da glória para a eterna
infâmia” (WILDE,2003, p. 1393), Wilde, num exercício catártico, produziu um
texto de beleza arrebatadora, intrigante, que transformou a esterilidade da dor
em auto-realização – “não tropeçarei com dificuldades, porque quando se deseja
amar, o amor costuma estar esperando.” (WILDE,2003, p. 1390). No deserto, refaz
o percurso ainda uma vez, registrando os caprichos e escrevendo a crônica da
prolongada dor para quem o tempo não progride, é circulo de angústia: “lá fora,
o dia pode ser azul e ouro; mas a claridade que se filtra através do vidro
embaciado da janela gradeada sob a qual estamos sentados é cinzenta e mísera”.
(WILDE, 2003,p.1380). Esta estranha palpitação, no entanto, foi resposta das
mais suaves, tornou-se “ folha de ouro” que registrou forças invisíveis que o
fizeram superar o período de profundo contrangimento.
Das profundezas dessa dor, cor esmaecida do
uniforme de detento, dos olhos marejados, dos cabelos mal-tratados não evitou
que se entrevisse a luminosidade de sua figura. Apolo traz o equilíbrio
silencioso para Dionísio. O deus intempestivo abraça o deus da temperança,
inundando o espírito do esteta de uma calma diferente. O drama se desenrola na
ausência de platéia, o que dá um tom bem diverso de ‘conversação’. Wilde fala
consigo mesmo; fala, diretamente com suas máscaras, sem a interferência do
público. As diversas vozes travam um combate que deveria durar pelo menos dois
anos. De Profundis é processo doloroso, mas de preclara lucidez;
suscinto e denso. Diz ele: “os homens cujo desejo consiste unicamente em
realizarem-se a si mesmos não sabem nunca aonde vão. Nem podem sabê-lo(...)reconhecer
que a alma humana é desconhecida é a suprema realização da sabedoria. O
mistério final reside na gente mesmo. Quando se pesou o sol na balança, quando
se mediram os passos da lua e desenhou o mapa dos sete céus, estrela por
estrela, ainda resta o nosso próprio ser. Quem pode calcular a órbita de sua
alma?(...)” (WILDE, 2003,p.1411). Esta ‘descoberta’ faria toda a diferença e
facilitaria a aceitação de Tudo. Em luta contra a insaciabilidade, do prazer
que durou os instantes de mais ou menos quarenta anos, passou a experimentar a
dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão: “não há verdade comparável
com a dor e há momentos em que penso que a dor é a única verdade possível...da
dor surgiram os mundos e sempre houve sofrimento ao nascer uma criança ou uma
estrela(...)” (WILDE, 2003,p. 1396). “O supremo vício é a estreiteza de
espírito” (WILDE, 2003,p.1344), por isso, analisa ao longo de todo texto as
brechas que deixou e que vieram facilitar interferências em sua caminhada pelas
linhas da imaginação: “A debilidade é nada menos que um crime, quando essa
debilidade é a que paralisa a imaginação.” (WILDE, 2003,p.1346). A chave para a
filosofia a que se propunha, brilhante, encantadora, trivial, fora posta de lado e os ouvidos se fecharam a voz
das sereias e os olhos perderam o colorido da visão, passando a acompanhá-lo
uma sombra diferente no instante em que se volta à sociedade que tanto
criticara, forçando-se a entabular um processo contra o Marquês Queensberry. E
“a linguagem deve ser afinada como um violino e assim como uma vibração
excessiva, demasiado débil, na voz do cantor, ou o tremor das cordas fazem que
o tom não seja de todo puro, de igual modo um excesso, uma falta de palavras
altera aquilo que a gente quer exprimir(...)” (WILDE, 2003,p.1426).
Entretanto, refuta a
renúncia ao mundo que conquistara; a liberdade viria de outra constatação: ‘o
amor, qualquer que seja sua categoria(...)”(WILDE, 2003,p. 1397). Compreendeu
que “a única coisa que poderia fazer era aceitar tudo. Desde então, por
estranho que pareça, tenho sido mais feliz(...)” (WILDE, 2003,p.1402). Esta
adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem
moderno e fez com que acreditasse que algo se introduziria em sua obra: “uma
plena memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem
arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” Notório
o impacto do pessimismo e o surpreendente ultrapassamento. De costas para a
acomodação, é auxiliado pela música questionadora que insiste em envolver o
indivíduo. A dor foi grande, mas fez um pacto com as auroras.
O
texto que fala de morte, para a morte e contra ela, busca, se não detê-la,
dominá-la, fazendo prevalecer um novo som que se reduplica ininterruptamente.
Chegando até o extremo da dor pelo relato do passado, colocando cuidadosamente
todas as configurações eventuais, abre caminho novo.
Escrevendo sobre seus infortúnios, Wilde caminha se endereçando para a morte,
mas a ‘inquebrantável’ sofre duro golpe: o extravasamento de vida faz desfalecer a inimiga. O ruído crescente e
inevitável da morte é abafado pela literatura. Reconhece, porém, que a nova entrada no mundo, após
cumprimento da pena não será mais festiva; passará de uma prisão para outra,
como comenta com Robert Ross (em uma carta de 1897, enviada juntamente com a Epistola in Carcere et Vinculis) e
também nas derradeiras palavras da Epistola: “A sociedade, tal como a
construímos, não terá lugar para mim, nem tem lugar nenhum para oferecer-me...”
(WILDE, 2003,p.1435). Nutre, no entanto, esperança que o sofrimento não pôde
apagar: “Não temas o passado. Se as pessoas te disserem que é irrevogável, não
o creias. O passado, o presente e o futuro são tão-somente um momento aos olhos
de Deus(...)O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão são unicamente simples
condições acidentais do pensamento(...)” (WILDE, 2003,p.1437). De onde se
percebe uma obstrução, a força da inconsciência tem poder de afetar e produzir
uma outra fala. Ainda em uma carta de 1897 a Ross, exprime a gratidão ao
Diretor da prisão por tê-lo concedido expressar-se, “(...)Durante quase dois
anos tive dentro de mim um fardo crescente de amargura, do qual me desembaracei
agora em grande parte. Do outro lado do muro da prisão há umas pobres árvores,
enegrecidas pela fuligem, que estão agora cobrindo-se de brotos de um verde
quase gritante. Sei perfeitamente o que lhes sucede: encontram sua expressão.” (WILDE,
2003,p.1340). Esculpe sobre essa nova pele a reconciliação entre o externo e o
interno, combinação para um homem de gênio: “Costumavam dizer que eu era
demasiado individualista. Agora mais do que nunca, terei de sê-lo. Devo extrair
de mim mesmo mais do que até agora retirei e exigi do mundo, menos do que nunca
lhe pedi. Na realidade, minha ruína não se deveu a um excessivo individualismo,
mas a demasiado pouco(...)” (WILDE, 2003,p.1415).
As
inúmeras viagens que fizera levaram-no a um certo conhecimento de si que foi
sedimentado com a prisão. Olhos fixos nas paredes nuas da cela, pôde vagar
pelas câmaras da mente, experimentando na solidão a intensidade da vida. Chegar
ao limiar da loucura foi o que precisara para solidificar sua lucidez e ao
entender isto destaca Hamlet: “no
drama nada conheço de comparável, do ponto de vista da arte(...)que o desenho
que traça Shakespeare de Rosencratz e Guildenstern. São amigos de escola de
Hamlet, guardam consigo a lembrança dos deliciosos dias que passaram juntos. No
momento em que, na peça, se encontram com Hamlet, cambaleia este sob o peso de
um fardo insuportável para um homem de seu temperamento. O morto saiu armado de
seu sepulcro para impor-lhe uma missão que é, ao mesmo tempo, demasiado grande
e demasiado mesquinha para ele. É um sonhador e se arrasta para a ação.Possui o
temperamento de um poeta e se lhe pede que lute(...)coisa absolutamente por ele
ignorada(...)Não tem idéia do que deve fazer e sua loucura consiste em simular
a loucura(...)mas a loucura de Hamlet é uma simples máscara para dissimular sua
debilidade(...)Obstina-se em brincar com a ação, como o artista com a teoria É
o espião de seus próprios atos e escutando suas próprias palavras...em vez de
tentar ser o herói de sua própria história, tenta ser o espectador de sua
própria tragédia(...)Nada disto compreendem Rosencratz e Guildenstern(...)” (WILDE,
2003,p.1429). Perguntamo-nos aqui se a loucura de Nietzsche e de Wilde, preso,
não seria a máscara de que se serviram para a volta às “forças elementais” (WILDE,
2003,p.1435).
A dor levara-lhe ao
fundo e de lá só poderia sair fortalecido. Vivenciara, por fim, a
‘profundidade’ do trágico.
Suas lágrimas
encontraram caminho por entre as paredes rochosas da prisão e a Epistola in Carcere et Vinculis é exemplo
incondicional de exercício estético.
Renomeia-se. Torna-se
andarilho: nova forma de escrita o aguarda, agora com os pés. Percorreria
antigos caminhos com olhos e ouvidos novos. A novidade é a mesmo: “(...)também
eu terei de prescindir desse outro nome que tão harmoniosamente soava antes nos
lábios da fama. Quão mesquinho, quão limitado este século nosso, quão pouco de
acordo com seus próprios vícios! Ao triunfo erige um palácio de pórfiro, mas
não tem sequer uma cabana para a vergonha e para a dor. Tudo quanto possa fazer
em meu favor é permitir-me mudar de nome, quando a própria Idade Média me teria
oferecido o capuz de monge ou a máscara do leproso, com os quais teria eu
podido viver em paz(...)” (WILDE, 2003,p.1436).
Louis
Thomas em seu L’Esprit D’Oscar Wilde
traça o longo relato do carcereiro de Wilde – que não quis se identificar, mas
deixou registrado as impressões do ilustre prisioneiro. Diz ele que Wilde
preferia a solidão da cela, mesmo quando a debilitada saúde – dores de
estômago, câimbras - exigia ida à enfermaria. Lá, poderia, em voz alta,
exprimir seus pensamentos sem os comentários indelicados dos espíritos mais
estreitos. Certa vez, parecia realmente doente, mas sorria, dizendo que só
precisaria de algo quente. Não era hora de refeição alguma, “aussi décidai-je
de trouver quelque chose à lui Donner d’ici là. Je sortis vivement, fis
chauffer du bouillon de boef, le versai dans une bouteille, placais la boteille
sous ma tunique et retornai vers as cellule. Pendant que je montais l’escalier,
la boutelleglissa entre ma chemise et ma peau. Elle êtait três chaude. Je
as vais qu’il y avait une cellule inoccupée à l’étage au-des-sus, et je résolus
d’yaller pour retirer la bouteille de cette position douloureuse, mais à ce
moment une voix ,’appela, venant du hall cantral en dessous. Je regardai en
bas, et vis le gardien en chef. Il me
fir signe d’aller le trouver. Je redescendis. Il voulait me parler d’une
réclamation notée au rapport de la nuit precedente(...)Mon angoisse était
effroyable(...)La bouitelle chaude me brûlait le ventre comme du plomb
bouillant(...)je me tordais et me contorsionnais en tous sens, dans l’espoir de
m’affranchir de l’objet infernal(...)Et le plus étrange était que plus le temps
s’avançait plus elle devenait chaude. Lê chef me considérait curieusement. Je
crois qu’il pensaque j’avais bu(...)Je
montai quatre à quatre les marches de fer de l’escalier, entrai em coup de
bombe dans la cellule du poete(...)Le poète souriait tandis que je debitais mon
histoire, puis il rit réellement.Je fus froissé parce qu’il riait. Je lui dis
que c’était une pauvre recompense pour tout ce que j’avais subi(...)” .
Oscar o presenteou com um texto intitulado Uma
desculpa, escrito com a marca
original, pessoal, cheia do charme dos antigos epigramas e um estilo tão
amoroso que cativou o novo amigo para sempre. Aquele que fizera votos de nunca
mais rir – dedicando a vida inteiramente à tragédia - num momento de espírito
quase infantil, riu-se a valer e registrou para o guarda a promessa quebrada.
Relata ainda o carcereiro que durante o dia, parecia um homem comum, mas a
noite operava-se uma transfiguração. Quando as portas eram fechadas, o gás tremeluzia,
as sobras tombavam, quando tudo era calma e um silêncio regular e terrível
habitava as celas e o ar: em todo círculo dos sepulcros vivos, nenhum quadro
mais doloroso como aquele. Ele com suas musas, andando de um lado para o outro
– três passos de cada vez, minúsculo era o espaço -, suas mãos para trás, olhos
cravados no chão, como a ultrapassar as profundezas, olhando assim, o infinito.
E sorria. Sua poderosa imaginação, com certeza, trabalhava, embora o corpo
permanecesse acorrentado. Parecia escapar acima dos outros homens e mulheres,
e, de repente, suspira, balbucia o nome da mãe, verte uma lágrima, voltara às
barras da cela, como trazido por um relâmpago.
Em
De Profundis, como em Dorian Gray, as palavras têm uma
flexibilidade admirável. Quando Wilde expõe o resultado de suas meditações
solitárias ou narra um acontecimento emprega pequenas e breves frases, fortes
na cena, carregadas de ‘pensamento’, simples e claras – bem ao estilo
nietzschiano. Alvin Readman em seu The
wit and humour of Oscar Wilde, destaca que Wilde só recebia uma folha de
papel por dia em Reading Gaol e que, após preenchê-la por completo, esta lhe
era retirada pelo guarda e não mais vista. No dia seguinte, outra folha em
branco lhe chegava às mãos. Mesmo assim, ele conseguiu com uma destreza
surpreendente manter o fluxo de pensamento, mesmo sem retornar ao texto para
possíveis correções: “it is amazing that even in his state of mental torment he
was able to call upon that clarity of mind and fluent use of language which
were such salient features of his discourse(...)” .
Quando relata os horrores e tristezas da hora presente, sua frase se
alonga, mostra-se rica em música, sonora como os versos dos grandes poetas,
deixando a impressão imediata da dilatação das emoções. Não há mais lar, nem
dinheiro, nem nome: sua aventura não será mais um fim, mas um começo.
Sabia que um término se aproximava.
Mais uma vez, assim como quando entrou
em Oxford pela primeira vez, podia ser o que quisesse. A sociedade pensando
tirar-lhe, deu, sim, a ele a chance de ser ainda outro. Mais um dentre tantos
que ele fora durante a vida de notoriedade. Deram a ele a única coisa de que
precisava: mais uma máscara. A última, que seria essencial para o exercício
pelo qual deveria passar – a saída às ruas. Viveu seu sonho, sem fechar os
olhos, por isso, mesmo de seus carrascos recebeu o presente de mais uma entrada
no palco. Entrada diferente desta vez; pelos bastidores, sem pompa, mas com a
alegre música dos que se sentem únicos, artistas, afinal. Prescinde do nome que
soara tão harmoniosamente nos palácios da fama e assume mudança radical de mais
um disfarce, na saída da prisão.
Uma pausa. Nossos olhos e os de Wilde se entrecruzam e somos invadidos
por uma estranha alegria. O passeio por sua escrita, circularmente elaborada
para se chegar à ideia de que necessário
não é o real. Por isso,
entendemos que ao sofrimento vivido só restou-lhe uma calma extasiante. Nossa alegria é a de fazer parte do grupo de leitores de sua inesquecível obra.
quarta-feira, 23 de maio de 2012
Caminheiro
Sonho que caminho com Pessoa
Nas ruas alegres e sóbrias de Lisboa
As ruas têm alma, sussurra o João do Rio
O passo ritmado me angustia
O poeta acostumado à dor, sorri.
'Desassossegado
Sê inteiro, eis o segredo'.
As luzes da noite evidenciam e dissimulam minha ribalta
Pertenço ao poema
Ri-se Pessoa
Doces grilhões - que venha o exílio!
'Pária'
Colo meus passos nos do mestre português
'Aceitaste a embriaguez do desvio', diz
A letra extrai luz do obscuro
'Teu tempo é de aflição, refugia-te nas encruzilhadas.'
A voz fenece.
Abro os olhos.
Começo o caminho.
Nas ruas alegres e sóbrias de Lisboa
As ruas têm alma, sussurra o João do Rio
O passo ritmado me angustia
O poeta acostumado à dor, sorri.
'Desassossegado
Sê inteiro, eis o segredo'.
As luzes da noite evidenciam e dissimulam minha ribalta
Pertenço ao poema
Ri-se Pessoa
Doces grilhões - que venha o exílio!
'Pária'
Colo meus passos nos do mestre português
'Aceitaste a embriaguez do desvio', diz
A letra extrai luz do obscuro
'Teu tempo é de aflição, refugia-te nas encruzilhadas.'
A voz fenece.
Abro os olhos.
Começo o caminho.
O olhar outro
Considerações
bakhtinianas sobre o incomum na literatura
“Saber que o outro pode ver-me
determina radicalmente a minha condição.”
( Bakhtin em Estética da criação verbal)
A
intrigante constatação de Mikhail Bakhtin em seu Estética da criação verbal aposta no leitor como o incomum no jogo da literatura. Como?
Na
vida ordinária, cada indivíduo só tem imagens internas de sensações experimentadas,
mas não tem acesso a expressões em seu rosto ou a tensão de alguns músculos.
Através do texto literário, o leitor pode revestir-se desta exterioridade – que
lhe falta na vida comum – a partir da personagem. Aí residiria a força do texto
– a possibilidade oferecida ao leitor de uma imagem externa de si.A luta do
artista é a de imprimir um todo de personalidade a cada personagem, o que não acontece na
vida; “na vida não nos interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus
atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de
outra(...)já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da
personagem se baseia numa resposta única ao todo do personagem, cujas
manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo
como elemento da obra” (p.4, do livro citado acima). Este ‘excedente’ de informação garantirá ao
leitor uma identificação mais imediata; ele poderá ‘ver-se’ estilisticamente,
conhecendo um pouco mais de si. O discurso literário, assim, constituiria esta
ponte lançada entre duas pessoas: o autor e o leitor. Nesta relação dialógica,
o primeiro se torna um todo a partir do olhar deste último. O leitor é
constitutivo do autor. Se a obra de arte é reminiscência e antecipação de
discursos passados e futuros, os dois – autor e leitor – estão entrelaçados num
perpétuo jogo: um como complemento do outro.
No
filme Into the wild, dirigido
por Sean Penn (baseado na história real
de Christopher McCandless), o personagem se lança na aventura de chegar ao
Alasca. Diante de um futuro escrito pelos pais, após sua formatura, decide-se
por partir com o dinheiro poupado, algumas roupas e livros de seus autores
favoritos para o Alasca, lugar recôndito
que parece simbolizar seu interior. No caminho, encontra-se com várias pessoas,
que lhe oferecem trabalho e estadia. Ele, ao aceitar, condiciona sempre sua
permanência à necessidade de provisões para a viagem, que é seu destino; deixa
claro a todo instante que escolhera a solidão. Sua personalidade cativante
acaba por ajudar a mudar a vida de muitos que convivem com ele. Seu desejo por este
lugar – Alasca –,no entanto, o impede de se
enxergar neles. A busca por si, pelo auto-conhecimento a que se propusera já
estava em andamento. O périplo se adiantava e ele preocupava-se por demais em
não criar laços. Queria estar livre. Recusava o olhar destes outros que já o
definiam. Pelos amigos que fez, o espectador já delineia um rosto. Quando
afinal chega ao ‘destino’, a alegria dura alguns bons meses. Tem fome e decide
retornar, mais uma vez somente para obter provisões A cheia de um rio, muda a geografia
do local demarcado e ele não tem como
seguir. Próxima a morte, escreve com dificuldade nas páginas do livro querido
que a felicidade tem que ser compartilhada; a vida é partilha incessante.
Não
é difícil para o espectador se ver neste jovem. O ser humano, diante das
inúmeras dificuldades, sente uma urgência de fuga. Ele foge (geograficamente,
se assim pode ser posto), mas leva
consigo seus livros. E, nos meses de solidão, as letras fizeram com que se
confrontasse com cada pessoa que deixara para trás. Em cada uma delas ele se
viu, assim como o espectador se viu nele.
A
arte tem este poder de abarcar-nos, abraçar-nos.
terça-feira, 22 de maio de 2012
Food for thought
A little of Oscar Wilde's wit:
" Art is not something which you can take or leave. It is a necesity of human life."
" That is the mission of true art - to make us pause and look at a thing a second time."
" The true artist is a man who believes absolutely in himself, because he is absolutely
himself."
Somos todos artistas da vida; acreditar-se obra de arte torna o trabalho, as relações
sociais,o lazer,muito mais encantadores.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
a vida como texto
Acordei pensando o corpo como leitura e pergunto se você fosse um livro, qual seria.
Eu, definitivamente, seria algum do século XIX - época para mim com as produções mais atraentes.
Dê seu comentário.
Eu, definitivamente, seria algum do século XIX - época para mim com as produções mais atraentes.
Dê seu comentário.
domingo, 20 de maio de 2012
Conversa comigo
A memória finge falhar. Cenas parecem ir e vir.O desassossego está em saber que
está tudo aí. Nas estrias e curvas do corpo: a infância, a juventude e a maturidade. Como um
registro do qual não se pode fugir. Coladas ao olhar interior as idas e vindas da existência
recompensam o corpo cansado com uma centelha de sabedoria.A esperança reafirma a vida.
Chá literário
A
CIRCUNFERÊNCIA DA GENIALIDADE DE ENRIQUE GÓMEZ CARRILLO NA PARCERIA COM OSCAR
WILDE
Stella
Maria Ferreira
Doutora em Ciência da
Literatura-UFRJ
“Los
artistas que no se creen más grandes que el resto
del
mundo, no producen nunca una obra maestra...”1
A força de uma obra artística está na eterna
novidade de seu alcance. Mesmo inserida em determinado contexto histórico,
pulsa em suas entrelinhas um alívio de eternidade permitindo a pluralidade de
possibilidades, tornando os alicerces, cambiantes.
No prefácio para seu
primoroso retrato, Oscar Wilde diz que a vida imita a arte, instalando a
surpresa de um novo olhar sobre a cumplicidade que, até então, só promovia uma
utilidade para as manifestações artísticas atendendo às exigências de condições
do ordinário. A entrada da arte no círculo da vida permite que não só o corpus, mas o corpo seja ‘contaminado’
pelo desejo do infinito. A Musa seduz e domina de tal maneira o artífice que
passa a ser-lhe indesejável tudo que antecedeu o vislumbre da beleza.
Intoxicado, resiste à existência cotidiana e se rende ao mundo dos sonhos, com
seus matizes e suas formas inusitados. Os traços desta escrita já se tornariam
reflexo da liberdade interior experimentada. Os grilhões seriam então doces
porque o prenderiam somente a ele mesmo e ao infinito poder criativo; as
amarras, leves, trariam o gozo de um destino incerto: a alegria de desejar
ardentemente fechar-se em um labirinto; o contentamento de, sabendo-se único,
adotar um estilo de vida que trouxesse à tona a graça do irrepetível. Para Wilde, este artista deixa que os
sentidos o guiem, sem contestar. As coisas são também como deveriam ser e não
somente como parecem quando apreendidas pelo olfato, pelo tato ou pelos
ouvidos. Os olhos escolhem não ver apenas o que está imediatamente à frente,
mas o que jaz guardado na imaginação. O
tempo e o espaço se diluem para que a força imaginativa tome um lugar de
destaque, por isso, não há repouso ou descanso. O cansaço, porém, não se
apodera deste peregrino, a quem não é garantida glória perpétua, pois este amor
pela arte aponta, por vezes, o escombro. Ao entregar-se a ela, o artista sabe
que pode compor-se como quiser, pode potencializar todas as ações, por isso,
não há temor. A obra que perdura é a que chega a ser escrita com sangue.
Tendo nascido em 1873
filho de um historiador, o guatemalteco Enrique Gómez Carrillo - crítico,
ensaísta, contista – marca presença no meio literário com uma escrita de
concordância cromática e fecundidade varonil. Deixando-se levar pela vida,
vestiu-se de mudança para conclamar o repúdio à adequação. Abraçando a ousadia do fim de século XIX,
busca ressaltar em seus textos uma luminosidade de incerteza: “ la gran luz que
ciega, que matiza de tonos de incendio, que une objetos, que da movimiento,
vida y violência al espacio...” (CARRILLO, 2004,p.61). Destaca esta luz que
sabe não poder prescindir de sua
companheira inseparável, a treva, para ele fonte inesgotável de surpresas e
encantamento. Carrillo trabalha as duas de mãos dadas, permitindo que desvelem
ou ocultem detalhes dos objetos num jogo de sedução que repudia o senso
comum. Destaca no ensaio La critica y los críticos en Paris :
“...muchas veces no conocemos bien
una calle o un barrio sino cuando lo hemos visto vivir su vida
nocturna...cunado las luces se encienden, dijérase que una existencia cominenza
más brillante, más febril, más seductora que la del dia...No son solo Paris,
Barcelona, Milan, Buenos Aires y las demás Metrópolis noctâmbulas las que merecen
ser observadas a la claridad de las lámpadas. En pueblos muy tranquilos, en
villas viejas y casi muertas de países muy lejanos, cuando la sombra invade la
calle e cuando los interiores revelan algo de su mistério...” 2.
Assim, consegue que do corpo das palavras emane uma brincadeira em que se
diluem sons e aromas. Instigantes e incômodos, seus escritos impelem ao
movimento: a alguns indivíduos emprestando passadas largas e decididas, a
outros, passos leves e tímidos. Inaugura para este seleto grupo de ‘eleitos’ a
possibilidade de um rumo ao sempre
desconhecido, frisando a graça deste caminho escuro em que a única luz que
brilha é a da arte. Tomado pelo sentido
de plasticidade, valorizou a impressão da realidade como propiciadora de emoção
única, buscando nesta singularidade a porta para grandes e ilimitadas
realizações. O contemporâneo Wilde assim
resume:
“A Arte...tem uma vida independente,
como a tem o Pensamento, e
se desenrola
simplesmente em um sentido que lhe é peculiar...
Longe de ser uma
criação de seu tempo, está geralmente em oposição
direta a ele...Por
vezes volta sobre seus passos e ressuscita alguma forma
antiga, como sucedeu
no movimento arcaico da última arte grega e no
movimento
pré-rafaelita contemporâneo. Outras vezes adianta-se
absolutamente à sua
época e produz uma obra que outro século posterior
compreenderá,
apreciará e gozará...” 3
A forte ressonância impressionista que busca uma
negociação com as diferenças, traz vibrações ao ar desta escrita, “...mezclando
o sobreponiendo en el lienzo los tonos más variados, las notas más
incoherentes, y haciendo brotar del conjunto transparencias policromas tales
cual las que en la vida nos sorprenden y nos encantan....”, diz em El impresionismo, crítica de arte de
1921(CARRILLO, 2004). Trabalhando a frase com meticuloso carinho, a exemplo de
Wilde e seus famosos epigramas, revela cores para as vogais e consoantes: umas
lhe parecem claras, outras morenas, todas, porém, a serviço da pureza de uma
arte de descoberta. Esculpe, esmalta, grava, pinta as palavras como gemas
preciosas prontas a adivinhar o insólito e atestar o caráter de insubordinação
que queria o artista para a literatura. No triunfo destes detalhes, a impressão
estética ganha corpo e forma a custa de paciência e dedicação, cujo prêmio é o
atrevimento próprio da escrita avassaladora característica do movimento
decadente. Escrita como a wildiana em que “la nota triunfante de su
singularidad es la extremidad en las medias tintas.”( CARRILLO, 2004,p.74).
Como o notório
irlandês – seu amigo pessoal - Carrilo foi um amante da viagem cujas noites que
definia como o instante em que “no conocemos aún a nadie; esas noches en las
que nos encontramos solos con nosotros mismos...”(CARRILLO, 2004, p.268). A
opção por uma vida errante proporcionou a Carrillo uma aplicação singular e
imprevista à eternidade em que está mergulhada a letra. Com frases ‘viajantes’,
exercita e dá a exercício o pensamento e todas as suas pulsações, tendo a arte
como guia e mestre. Em passos de hipnose, esta paixão inquietante revela uma
incessante busca por algo “ más frívolo, más sutil, más pitoresco, más poético
y más positivo: la sensación” (CARRILLO, 2004, p.265). Na diversidade de pontos
captados pela retina, “cada hora del dia, cada capricho del sol, cada cambio de
la atmósfera, modifica radicalmente el paisaje. La Naturaleza es sensible y
variable como una mujer.” (CARRILLO, 2004, p.266), pode-se perceber o olhar
irrequieto e aguçado. Chegar não era o objetivo primordial, o prazer estava na
viagem em si, pois, “el que se va no vuelve nunca. Quien vuelve es outro.”
(CARRILLO, 2004, p.267) - outro porque ousara entregar-se a movimentos rápidos
e inesperados. Admitiu um passo diferente à sua escrita, de retas e curvas
visíveis e provocadoras, exaltando a sensibilidade plástica que se dispersa e
se concentra permitindo a constatação da eternidade das coisas, percebendo como
“minuto por minuto, las luces vesperales van matizando con suavidades
acariciadoras los confines de las enramadas...” (CARRILLO, 2004,p.266).
Entendia que os trajetos e os enredos envolviam o corpo e, por isso, não se
esgotavam. Focalizou, então, o que por ele passava, enfatizando também o
‘entre-corpos’, o ‘entre-imagens’.
Fundiu consciência e inconsciência na superfície do texto. Percebe-se em
Carrillo, claramente, o dito e o não-dito como forças transformadoras e
eficazes na tecitura das tramas, negociando constantemente com o destino.
A marca de
‘andante’ deu a Carrillo oportunidades únicos como em 1895 quando a Real Academia
de la Lengua Española o elegeu Acadêmico Correspondente Estrangeiro pela
Guatemala e 1898 quando o então Presidente do país lhe concedeu o cargo de
Cônsul em Paris e depois em Hamburgo. O destaque vai para uma publicação de
1913, La sonrisa de la Esfinge, que
descreve algumas impressões sobre o Egito. Carrillo acalenta a sedutora atração
exercida pelo Oriente para os decadentistas ao dizer que “hay que perderse
voluntariamente en el laberinto de las callejuelas estrechas. Hay que adoptar
el carácter del sitio con toda su languidez voluptuosa y resignada...Y poço á
poço, sin esfuerzo...mi alma se empapa en los eflúvios del extraño ambiente que
me rodea...” (CARRILLO, 1913, p.25). E, ao perder-se propositalmente em
percursos dedáleos, experimenta sensações das mais surpreendentes:
“...nosotros, los hombres del siglo XX, que vivimos en medio de civilizaciones
más infelices...con su sensualismo ingenuo y su resignación tranqüila,con su
credulidad infantil y su refinamiento artístico...con su tolerancia social y su
fantasia religiosa, el Egipto nos parece como el más satisfecho de los
pueblos...” (CARRILLO, 1913,p.316). A conclusão deste ‘espírito livre’ não
surpreende. Toda a suntuosidade e mistério resgatados da antiga Bizâncio pelos
escritores decadentes são por ele aceitos e incorporados ao tecido da escrita.
O Oriente se abre, assim, como complemento paradoxal para um olhar de leveza e
dinamismo; um olhar que aceita o inexato. A assimilação de todos os elementos
da sensualidade se resumiria numa outra perspectiva – junção das partes em um
todo harmônico – acentuando a virtualidade para despertar um indivíduo
reflexivo e operante: um corpo estranho. Neste mundo marcado pela estesia, tudo
estaria em relação, a partir da mutabilidade e da suspensão. Assim, do que se
julgava unificado, fluiria uma dança de sonhos digna de quem não aceita calar a
agonia da alma amante.
Neste contexto, ganha um destaque todo especial a
figura da mulher. Adornada de jóias e coloridos véus, a mulher oriental mascara
inocência e malícia, sobriedade e embriaguez. De seus gestos quase infantis
emana veneno suficiente para inebriar observadores, salta a bebida dionisíaca
que fará entontecer a todos. Carrillo lembra Scherazade, personagem oriental de
excelência e suas mil e uma noites dizendo:
“Su belleza es uno de sus talismanes.
La belleza, empero, no
basta.
Hay algo de más fuerte, un algo que no está en el cuerpo;
que
es inmaterial, que reside en el fondo oscuro del espíritu; un
algo
imponderable, indefinible, inexplicable...Es una virtud
secreta
hecha de fantasia...es, en suma, la Gracia...” 4.
A jovem prisioneira preconiza a poesia de uma existência imaginativa ao
desenhar um “álbum de imágenes pintorescas y galantes...” (CARRILLO, 2004,
p.55), atraindo para um labirinto sem chave de saída. Junta-se a ela Em La sonrisa de la Esginge, a sedutora figura metade humana, metade
animal que, com o sorriso enigmático e uma postura inerte, parece acompanhar o escritor em suas
perambulações. O sussurro de seus lábios ao ouvido de Carrillo combina passado
e presente num tempo único e eterno. Segredos são desvelados e outros mistérios
se formam a cada esquina mergulhados em fortes essências de volúpia. O jovem
corre não se sabe mais se com os pés, com os olhos ou só com a imaginação
lugares pitorescos que fazem revolver sentimentos e desejos adormecidos. A
palavra se liberta, mergulhando na impetuosidade. A realidade até então
‘segura’ viu-se transformada no caos do sonho – a arte penetra na vida prática.
A respiração gélida da esfinge turva seus sentidos, o que facilita a apreensão
da alma e dos costumes do povo. Mais do que pura descrição, Carrillo, no
artifício de ‘carregar’ a narrativa de um colorido estupendo, aguça a
curiosidade e admiração dos leitores por uma Antigüidade que se quer
reaquecida. Memórias queridas, mesmo do nunca antes vivido. Então, “una
sensación deliciosa de bienaventuranza, de alegria familiar, de tranquilidad de
espíritu, llena el ambiente” (CARRILLO, 1913, p.22) e seu coração inquieto.
Livre de qualquer empecilho ou distração, “ la voz femenina llega á nuestros
oídos” e o viajante se vê absorto por estas “que pasan, rítmicas, y cuyas túnicas ligeras y
ceñidas nos permiten admirar sus cuerpos esbeltos, sus piernas esculturales,
sus senos menudos. A cada instante, en efecto, uma de estas representantes de
la antigua raza egípcia nos sorprende con su gracia de figulina de bronce...”
(CARRILLO, 1913, p.44). O sorriso da Esfinge atrai o caminhante, que a seus
pés, alça vôo desconcertante rumo ao auto-conhecimento. Tendo a frente um
tapete, microcosmo do mundo, Carrillo decifra antigos enigmas e se vê
emaranhado em outros. O sempre novo do insondável lhe é difícil resistir. Os passeios em solo oriental encantam e o perfume
de raros incensos se sobressai a cada página. O leitor, viajante no movimento
dos olhos percorrendo as linhas da esquerda para a direita, de cima para baixo
é dragado num mar de exotismo. Oscar Wilde por certo sorriria ao amigo se a ele
enunciasse em conversa informal tais impressões. O esteta também já tivera um
encontro com este baú de segredos em 1894 com A Esfinge. No longo poema, a bela e silenciosa figura tocaia um
jovem estudante ávido por aventuras. “Através das trevas ondulantes. Intangível
e quieta” (WILDE, 2003, p.958), a estranha gata, sem o menor movimento, “faz
vacilar a lâmpada” (WILDE, 2003, p.964), fazendo o estudante sentir na fronte a
umidade de “terríveis orvalhos da noite e da morte” (WILDE, 2003, p.964).
Sonhos de vida sensual são despertados e ele, apavorado, após uma ‘viagem’ pelo
tempo e espaço bem ao gosto decadentista – no pensamento – ‘expulsa’ de sua
presença a influência mordaz que faz dele “aquilo que não quereria ser”(WILDE,
2003,p.965). Não há como voltar atrás: o calor de uma nova vida já o invadira.
Assim como Gómez Carrillo, o viajante de fato, o estudante wildiano não poderia
resistir à brisa torrencial e apaixonante desta terra. Ambos sabem, porém, que
para gozar de suas delícias é necessário paciência para experimentar “el
encanto de la atmósfera milenaria, el dulce encanto que nos hace vivir en la
realidad como antes solo habíamos vivido con la imaginación...” (CARRILLO,
2004, p.187), pois cada passo parece guardar algo de inverossímil. “Ante las
tapias que esconden los jardines y las fuentes que mi alma codicia, una Honda,
una inexplicable impresión de criatura condenada al destierro que, pela última
vez, contempla” (CARRILLO, 2004,p.190), aliviado, com as memórias de suas
retinas o que deixara de viver pela imaginação.
Gómez Carrillo,
desfilando por diversos gêneros literários – mesmo tendo sido reconhecido pelos
contemporâneos como ‘Príncipe dos Cronistas’ – pinça certos temas e revela,
inevitavelmente, um favoritismo pela ação sutil do instinto feminino que vence
com a sedução e não com a força. A dança - manifestação artística relegada pela
filosofia até então, mas re-aquecida pelos textos nietzschianos -, para ele
presente nas histórias da jovem prisioneira do rei, fixa nas linhas a ternura
de traçados serpentinos que, bailando pela folha de papel, saltam aos olhos,
turvando os sentidos. Para acompanhar esta heroína surge o grande ícone
decadentista, Salomé, exemplo de perda de fronteiras, de dualismo de atitudes,
alegoria do moderno: mil em uma. A dançarina de sangue exaltada na peça em um
ato escrita por Oscar Wilde em língua francesa - mereceu um belíssimo conto
intitulado El triunfo de Salomé,
inserido no livro Tristes idílios,
publicado em 1900. Evocação de um sonho intangível de mulher, a bailarina
protagonista, Marta, nas apresentações, pouco a pouco, se despojava “en
apariencia, de sus velos, de su blancura, de su sonrisa, de sus joyas, de todo
que había en ella, en fin, de material y de humano” (CARRILLO, 2004, p.217). O
público - aturdido e seduzido – aplaudia freneticamente esta doce fatalidade.
Discípula do irmão, autor das composições musicais que executava, ensaia a
autoria de uma – o título do conto- que assim descreve: “es un baile que nada
vale al lado de los tuyos, un puro capricho de mujer mimada...al principio a
medida que lo he ido ensayando, su música se há convertido para mi en uma
obsesión...no puedo escribir la partitura ni menos aún instrumentarla.”
(CARRILLO, 2004,p.221). Luciano aceita se inteirar da obra da irmã e “era un
laberinto caótico de notas fantasticamente descabelladas, cuyo conjunto, no
obstante, contenía uma conmovedoraarmonía llena de gracia y de incoherencia.”
(CARRILLO, 2004,p.221). Com um labor de jardineiro artístico- diz Carrillo-
Luciano apara as flores demasiado grandes e corta as ramas inúteis, para,
juntos, ao cabo de um mês, terminarem El
triunfo de Salomé. Começam os ensaios e Marta, “más inspirada que
nunca...bailaba..todos los dias...erguíase cual un icono de oro al estruendo
metálico de los címbalos que rugían anunciado a su triunfo sanguinario... sus
pies parecían desconocer la fatiga, y, siempre inquietos, marcaban sindarse
punto de reposo el ritmo de la danza sagrada...” (CARRILLO, 2004, p.222/223). O
tempo do texto, portanto, é marcado pela dança, com os episódios se sucedendo
sem muitas margens de repouso. Alcança, assim, uma dimensão notável, já que o
leitor parece adivinhar a que horas as cenas ocorrem, a que temperatura e sob
que atmosfera. O toque especial da caneta do artista apresenta um esboço de
pintura. A dramaticidade é intensificada pela condensação do tempo, com
inúmeras emoções sugeridas e estimuladas num espaço de poucas horas, tal qual a
obra do admirável esteta irlandês. A vida interna do conto assemelha-se a um
sonho de efeito hipnótico. Diz Wilde na conferência Aos estudantes de arte, de 1883:
“O objetivo da arte é tanger a corda
mais divina e secreta
que
produz música na alma; e a cor é, na realidade por si
mesma, uma presença mística sobre as coisas e assemelha-se a
uma
espécie de sentinela...” 5
A partir daqui,
Carrillo, sob a silhueta de Wilde, faz surgir para a jovem, a própria Salomé em
sonhos delirantes “para revelarla el secreteo de la gracia perdurable,
diciéndola lo que había hecho, dos mil años antes, en el palácio del Tetrarca,
con objeto de obtener en recompensa la cabeza recien cortada del
Precursor...Bailé – murmuraba la hija de Herodiada al oído de la artista
dormida – baile largamente...mi cuerpo dorado y ágil plegóse como un junco ante
Herodes; luego se enderezó con un movimiento de sepiente...mis caderas se
estremecieron...” (CARRILLO, 2004, p.223).Marta, embalada pela força da
Princesa ‘hacía todo lo posible por saturarse de la leyenda...repitiéndole sin
cesar las divinas estrofas de Mallarmé, los diálogos complicados de Oscar
Wilde, las pomposas cláululas de Flaubert, las pesadas descripciones de
Huysmans...” (CARRILLO, 2004, p.224). A alma de Salomé parecia ter-se
desprendido do papel, colando-se a jovem a ponto de fazê-la dizer ao irmão:
“Bailaré de tal modo, que los espectadores me ofrecerán sus cabezas.”
(CARRILLO, 2004, p.225). Em embriaguez
dionisíaca, as forças naturais formam um elo musical criando um estado de
acuidade e receptividade de todos os sentidos. A música orquestrada está nos
pés de Marta e em sua mente, conduzindo o leitor ora a um movimento
contemplativo, ora a excitação desta dança ansiosa e viva
Faltava a Marta, porém, a saúde – os pulmões estavam
debilitados, o corpo todo lhe doía - e passados os dias, “sus pulmones se
laceraban; su pulso era cada instante más rápido y más desigual.” (CARRILLO,
2004, p.227), apesar de se mostrar expressão de uma personalidade forte, pronta
a não se deixar governar. O espetáculo havia sido cancelado e no dia da
estréia, após um dia de intensa dor, a jovem acorda às dez, “la hora en que el
público, al verla aparecer vestida de princesa de Israel, cubierta de joyas y
de amuletos, debía aplaudirla...la hora de Salomé...la hora suprema...impusada
por uma fuerza, Marta salió del lecho. Quería bailar...Apoyándose en los
mubles, llegó hasta la venntana y la abrió...el aire de la noche, acaricio, com
su soplo, mortal, los brazos frágiles...” (CARRILLO, 2004, p.229). Marta dançou
vertiginosamente toda a obra no espaço
de alguns minutos e caiu, exausta, diante das estrelas. Cumprira a promessa de
reviver o mito de Salomé e, assim como, a filha de Herodíades, vai de encontro
à morte, impulsionada pelo desejo de superar os limites impostos ao corpo. A
febre interior da jovem trazia uma inquietude que fez com que sua personalidade
se desenvolvesse completamente. O caminho reserva como destino o desastre –
única escolha possível. Sob a luz da Lua, esta ‘deusa’ que se mostra diferente
a cada vez, Marta sofre uma transição. Tal qual a dança das fases da Lua, a
jovem bailarina revela a multiplicidade de identidades de seu coração. Frágil e
decidida, pura e sedutora, mansa e rebelde, exercita uma representação que
exigiu dela acordes novos e ousados. É possível imaginar uma progressão de
suavidade para gestos mais vigorosos e inflamados. O drama de Marta, o de
Salomé, é dar um sentido outro para a existência. Até então, conduzia
perfeitamente suas relações, mas não desenvolvia o jogo de fascinação que tinha
em si. A grande força de independência de Salomé foi o que a todos atraía e
para Marta não poderia ser de outra maneira: descobre pelo sonho a paixão pela
vida. Em sua sede, portanto, possuiu
tudo. A medida da multiplicação das fantasias é a garantia de vida – para sempre. Completa o ciclo, evitando a perplexidade
diante do não-vivido, do mal-estar, do estranhamento produzido pelo
distanciamento de si. O desprezo velado pelos limites levou Marta a buscar o
bálsamo do escondido no vôo mais alto das idéias. Fugiu da dolorosa sensação de
ceder a própria independência, sufocando a força da alma pelo poder do
cotidiano, enterrando os germes da criatividade para lançar-se ao novo.
O efeito conseguido por Carrillo é devastador.A
intensidade é grande e o leitor acompanha o destino de Marta, discípula de
Salomé, que, em vertigem, culminará com a queda que de antemão era tida como
iminente. A exatidão de detalhes produz a ilusão perfeita, lição wildiana em A verdade das máscaras, de 1885.
Adjetivando este mundo exótico onde mergulha o leitor, Carrillo provoca sua curiosidade
e o conquista definitivamente. O final
não surpreende, já que, se trata de alguém que toca a eternidade. Tornando-se
cega, surda e muda para um real insatisfatório que tolhia sua liberdade, Marta,
cabeça erguida, digere a vida. Salomé
continua charada sem solução. Esta nova linguagem deveria ser amada e não
afetada por uma consciência que limita; era linguagem que desejava fugir ao
óbvio para lançar o indivíduo num redemoinho de onde sairia renovado, pleno de
vigor. Assim foi com Marta: Salomé
dançou em sua mente uma vez por todas. Assim foi com Wilde. Enamorado da vida,
ao enxergar toda a sua beleza, quebra o pacto com a consciência que o amarraria
ao ordinário e abraça a ficção como única alternativa para realizar toda a
potencialidade individual. Com este conto, Carrillo, além de homenagear o
amigo, fazendo com que sua personagem experimentasse o real e o ficcional,
exalta esta escolha. Ao se perder para o mundo, Marta encontra o seu lugar. A
regulação para o corpo não mais existia. A jovem figura a sede por coisas
impossíveis. Mesmo repudiado e aviltado pelos vitorianos, Wilde, recusando-se a
descer do palco, não desiste da vida como arte e, com isso, se torna uma
escrita eterna. Seguiu as palavras do filósofo alemão Nietzsche – mesmo sem tê-lo
conhecido, colocando um pouco de arte nos sentimentos, preferindo ousar fazer
uma tentativa com o artificial , da mesma forma como fazem os verdadeiros
artistas da vida (ver NIETZSCHE, 2003, p.68).
Gómez Carrillo, igualmente consegue, com sua profunda
pesquisa da mente humana, que as palavras tenham sistema nervoso, formando um
espetáculo de claridade, de pureza e de simplicidade. Em seu compromisso com a
vida e seu amor pela literatura diz:
“El idioma literario es único e
invariable...en su forma está toda
la
retórica, toda la gramática, todo el ritmo. Todo el ritmo, si, pues
no
basta saberlo comprender y con saberlo leer. Hay, además, que
saberlo
salmodiar...” 7.
Foi um transeunte da vida, “no era fisicamente bello, conforme al cânon
apolíneo, a pesar de sus ojos somadores, fascinantes, y su cabellera...pero fue
hermoso con aquella hermosura que preconizo Wilde: hermosura del pensamiento y
del alma, que ilumina el rostro...” (ESPINOZA, 2007, p.xv). Admiradores,
biógrafos e leitores o têm como um vencedor, para quem nada faltou para
triunfar porque viveu na e para a sensação. Em 1927, faleceu em
Paris para figurar desde então no quadro dos grandes escritores viajantes de
fina agudez visual e simpatia sem par.
Eleito em vida
por Wilde para o círculo literário que desejava montado, Carrillo é ainda hoje
figura de referência para os estudos finisseculares e propiciador de um prazer
inigualável com palavras dançantes.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
BAUDELAIRE,
C. As flores do mal. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
CARRILLO,
E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis
Edinter, 2004.
______________.
La sonrisa de la Esfinge. Madrid:
Renacimiento, 1913.
ESPINOZA,
E.T. Enrique Gómez Carrillo, el cronista
errante. Guatemala: F&G
Editores, 2007.
NIETZSCHE,
F. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.
_____________.
Para além do bem e do mal. São Paulo:
Martin Claret, 2003.
WILDE,
O. Obra Completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.
1 CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.73.
2 CARRILLO, E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.271.
3 WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1093.
4 CARRILLO,E.G. Antologia. Guatemala: Ártemis Edinter,
2004, p.56.
5 WILDE, O. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.1044
7 CARRILLO, E.G. La sonrisa de la Esfinge. Madrid:
Renacimiento, 1913, p.97.
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