sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Acerca da saudade
Continuo refletindo sobre a saudade e Borges e chama a atenção para uma perspectiva nova para este sentimento: "a música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo,ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético." (A muralha e os livros, 1950). Essa dor querida parece ser, assim, um gemido da arte para que nossa atenção se volte mais uma vez para o que ficou para trás. Mesmo tomados de emoção, exercitaríamos pela memória certo tipo de criação artística, observando agora o que poderia ter passado despercebido. Sonhando acordados, rememorando, fazemos arte.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
Ainda conversando comigo
Pensava hoje na saudade, esta nostalgia do inacessível,a ansiosa evocação de um passado querido ou daquele olhar, daquela voz de alguém que deixou sua marca em nós. É inevitável uma comparação entre o já vivido e o tempo presente. A saudade parece ser assim uma saudação àquele instante que,agora, chega à memória envolto em magia. Transportamo-nos a esse tempo outro, livre das amarras da cronologia e sonhamos que o amigo estimado não se foi e nos sorri, que aquela cidade visitada está mais uma vez de braços abertos a nos esperar.
Saudade tem isso. Alguns poetas definiram-na como aquela dor gostosa. É... é verdade. Lágrimas insistem em rolar,nem tanto de tristeza,mas de alegria também. Dor doída e querida,que faz perto o que já vai longe...
Saudade tem isso. Alguns poetas definiram-na como aquela dor gostosa. É... é verdade. Lágrimas insistem em rolar,nem tanto de tristeza,mas de alegria também. Dor doída e querida,que faz perto o que já vai longe...
terça-feira, 28 de agosto de 2012
Converso comigo
Algumas vezes imaginei roteiros para o meu dia a dia. Imaginei diálogos com conhecidos, com chefes, com familiares e amigos. Oscar Wilde disse certa vez que para vivermos uma verdade precisamos imaginar inúmeras mentiras. Não é verdade que quando queremos dizer algo importante, exercitamos as falas em nossa mente antes, para estarmos preparados para as réplicas? Vivemos a vida real e a vida que 'treinamos' em nossa imaginação. Somos forçosamente criativos. Todo o encantamento pode residir na fantasia das variadas conversações com nossas vozes interiores. Os textos nascem dali. Do que parece ser nada quando é tão parte de nós.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
Poemas para um corpo mascarado II
(parte do texto publicado no livro Faces rituais de poesia)
Ao hálito poético da Esfinge se une o
som metálico de correntes - a música incidental que embala o poema publicado em
1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das
línguas do mundo. Obra prima,
universalmente admirada, com três cores predominantes: branco, vermelho e
cinza, que acompanham os últimos dias de condenados à forca, A balada da Prisão de Reading foi
iniciado no chalé de Bourgeat em Berneval, França, em 1897, após sua saída da
prisão. De todos os poemas por ele confeccionados, mostra-se o mais comovente,
o mais carregado de experiência e de sentimento humanos.
O
compasso das palavras faz com que acompanhemos o prisioneiro-narrador e Wilde no banho de sol, nas refeições, no
árduo trabalho, na solidão de mil e uma noites sem contos, sem letras, tomadas,
por vezes, de fantásticas e sobrenaturais experiências. Os dois corpos agora são um. Diante do
espelho, os rostos podem parecer diferentes, mas a dor os iguala; dobra-se
sobre si mesmo e o embalo que conseguiu imprimir, angustia. O cumprimento da
sentença poria fim às inúmeras ‘mortes’ enfrentadas a cada dia. Os versos de um
condenado cuja perturbação está no fato de que: “(...)igual a um ano é cada
dia, ano de dias infindáveis.” (WILDE, 2003,p. 982). A rima, produz neste
ambiente um forte eco, “que no mais fundo do vale das Musas cria sua própria
voz e a ela responde; a rima, que em mãos de um verdadeiro artista é não
somente um elemento material de beleza métrica, mas um elemento espiritual de
pensamento e de paixão, porque desperta novos estados da alma, dá lugar a um
ressurgimento de idéias e abre, com sua doçura e com a sugestão de sonoridade,
portas de ouro que a própria imaginação não conseguiu abrir(...)” (WILDE, 2003,p.1114).
O chamado da Balada não segue o apelo das baladas tradicionais de rua; nela, a
voz de Wilde é angustiada e determinante para que o poema fosse recebido com
elogios.
O esteta, prisioneiro
C3.3, constata, inversamente ao bardo Shakespeare, que os homens matam a quem amam (Bassanio
pergunta a Shylock: ‘Os homens matam aquilo que não amam?’)e matou-se, ao cair
nas teias de uma justiça que desprezava, para renascer da lama e do lodo. Um
dos prisioneiros do poema matou a mulher amada e morreria – não que esse fosse
o destino de todos os criminosos no mundo, mas certamente o seu ( “já não usava
a túnica vermelha/ Pois sangue e vinho são vermelhos;/ E sangue e vinho havia
em suas mãos/ Quando co’a morta o encontraram,/ A pobre mulher morta a quem
amava/ E assassinara no seu leito(...)./Uns matam seu amor, quando são jovens,
Outros quando velhos estão(...)Uns matam a chorar, com muitas lágrimas, Outros
sem mesmo suspirar../.Mas nem todos hão de morrer(...)”- WILDE, 2003,p.
969/970) .
No mesmo ano de 1898,
após sua liberação, escreve ao diretor do Daily Chronicle “na qualidade de
homem que conhece a vida em uma prisão inglesa por experiência pessoal(...)” (WILDE,2003,p.1446)
sobre as condições e possíveis reformas no sistema presidiário, pois, uma das
coisas mais trágicas da vida na prisão é petrificar o coração human. Os sentimentos e o afeto
natural, como todos os demais, necessitam nutrir-se de algo, porque morrem
facilmente de inanição...” (WILDE, 2003,p.1449). Assim, o condenado narrador
da Balada, sucumbe ao irresistível desejo de morrer diante da aterradora
solidão, pois “(...) nunca se aproxima voz humana/ Para dizer meiga palavra;/
Os olhos que da porta nos vigiam/ São duros e sem compaixão(...)” (WILDE, 2003,p.983).
Esperava ansioso o derradeiro véu. Haveria, assim, paz? Não sabia. O desespero
interior que o corroera por dentro só deixara brecha para esperança na morte:
“A água salobra que bebemos lenta/ Com lodo, escorre, repugnante;/ E o amargo
pão que pesam em balanças/ Está cheio de cal e gesso/ E de olhar desvairado
insone vaga/ O Sono o Tempo a implorar.” (WILDE, 2003,p.983). Indiferente a
tudo a seu redor – assim aprendera com os anos de confinamento : “E assim enferrujamos
a corrente/ Da Vida, sós e degradados;/ Alguns praguejam, outros homens choram,/
E outros nem um gemido dão(...)” (WILDE, 2003,p.983) – aguarda contrito “as
mãos sagradas que levaram/ O Bom Ladrão ao Paraíso(...)” (WILDE, 2003,p.984). O
narrador está entregue a profunda desilusão, de onde se pergunta
insistentemente se poderá renascer em
outra vida. Ele e seus companheiros, porém, “Esquecidos de que grande ou
pequeno/ Fora o mal por nós praticado, olhávamos com triste olhar de espanto/ O
homem à forca condenado/ E era estranho que o véssemos passar/ Alegre e leve a
caminhar /E era estranho que o véssemos olhando/ Tão ansioso a luz do dia,/ E era
estranho pensar que ele tivesse /Tamanha dívida a pagar.” (WILDE, 2003,p.972). O condenado, diferentemente dos outros – até
do narrador- abraçara o destino com estranha alegria; superara o sofrimento do
erro e sentia ser a morte a libertação dele que matara a quem amara. O impacto
deste comportamento do companheiro foi tão grande que tem, certa noite – que
podia ser qualquer uma ou todas - uma visão estarrecedora : a dança de
criaturas imaginadas que, moviam-se loucamente e pareciam mais vivas e reais
que ele – de corpo e alma agrilhoados e, aqui,
o efeito hipnótico da dança – marcadamente assustadora e macabra – “(...)E
rápidos passavam, deslizavam,/ Como na névoa os viajantes; /Imitavam a lua numa
dança/ De giro e curvas delicados,/ E com passo solene e graça vil /Ao sabá
chegavam as almas. /Passar vimos com careta e momos,/ Quais frágeis sombras de
mãos dadas,/ Em tropel fantasmal rodopiando/ Dançaram a sarabanda:/ Os danados
grotescos como o vento/ Na areia traçam arabescos!/ Com piruetas de marionetes/
Em pontas de pé saltitavam;/ Mas as plantas do Medo retiniam/ Naquela horrenda
mascarada/ E cantavam bem alto e longamente(...)” (WILDE, 2003,p.976). O texto,
portanto, guarda o elemento de sedução da morte tão peculiar nos decadentistas.
A idéia, no entanto, fica ainda mais significativa quando, adiante, descrevendo
o dia de trabalho, tece uma comparação: “A girar pelo pátio, lentamente,/
Éramos loucos em parada!(...)E a cabeça rapada e pés de chumbo/ Formam alegre
mascarada./ Cordas alcatroadas esfiávamos/ Com unhas roídas a sangrar;/
Esfregávamos porta, co chão limpávamos, /Púnhamos grades a luzir; /Aos grupos,
o soalho ensaboávamos,/ Chocando baldes com barulho(...)” (WILDE, 2003,p.974).
Wilde convida mais uma vez para essa manifestação artística, recurso para que
sentimentos sejam expostos. Desta vez, não marcada pela sedução que pode levar
à morte, como em Salomé, mas pela morbidez, como se o personagem experimentasse
o pesadelo anterior à fatídica visita da morte.
Enfim, este serão lúgubre chega ao fim,
o galo canta, as formas tortuosas se recolhem nos recantos das celas,
deslizarão como fantasmas. Marionetes conduzirão o hediondo mascarado e
cantarão para despertar o condenado. Enfim a sombra das barras se perfila sobre
o muro caiado; o silêncio reina; o hálito gelado da Morte enche a prisão. Não
há ofício nesse dia. Os detentos permanecem fechados até o meio-dia. Aí então,
os guardas com suas chaves abririam cada cela, os prisioneiros desceriam
pesadamente a escada de ferro. O passeio os faria notar a cal no sapato dos
guardas: o trabalho estava feito, a horrível tarefa cumprida. Na prisão de Reading
ficou o cadáver de um miserável devorado pela cal. Este túmulo de infâmia não
tem nome.
A perfeição da forma
do poema se junta às emoções sugeridas pela vida na prisão - o pavor, a
piedade, o desespero, a indignação – ali desenvolvidas com uma simplicidade
trágica.
Wilde,
condenado como o outro a morte do banimento, das profundezas de sua dor,
desejou ainda alguns passos, algumas doces palavras ainda. Os duplos se
encontram na memória do esteta. Dois condenados, o mesmo temor, a mesma
humilhação, a mesma escuridão -
diferentes? Um dia se cruzam: “(...)não na noite santa/ Mas foi no dia,
que vergonha(...)” (WILDE, 2003,p.973); havia morrido o companheiro e “(...)Um
novo muro da prisão nos circundava/ A nós dois míseros proscritos; O mundo nos
havia repelido(...)” (WILDE, 2003,p.973); o outro, porém, encontrara a paz da
morte.
Ao prisioneiro da Balada “de vermelho o
homem que lê a Lei /Deu-lhe, de vida, três semanas,/ Só três semanas para lhe
curar/ A alma da luta de sua alma,/ E limpar de qualquer mancha de sangue/ A
mão que a faca segurava.” (WILDE, 2003,p.984). A Wilde foram dados cerca de três
anos e, num colóquio nomeado Reunião em
Paris, ciclicamente conclui: “Por
muito que nos esforcemos, nunca chegaremos a alcançar, por trás das
aparências das coisas, a sua realidade. E a razão terrível de tudo isto talvez
seja a seguinte: que não existe realidade alguma nas coisas, se são separadas
de sua aparência.” (WILDE, 2003,p.1453). Se assim não fosse,
como entender um condenado tão surpreendentemente feliz com seu destino,
contemplando “(...) com tão embevecido olhar, Aquela pequenina tenda azul/ Que
os presos chamam de firmamento...” (WILDE, 2003,p.969)(...)” “ E cada nuvem
errante, que arrastava/ No ar seus desmanchados velos. /As mãos não retorcia
como fazem /Aqueles néscios que pretendem,/ Na caverna do negro Desespero/
Erguer a Esperança enganosa,/ O sol ficava a contemplar, apenas,/ Sorvendo a
brisa da manhã.” (WILDE, 2003,p.971). A tristeza da reclusão transforma-se na
alegria do fim. Richard Aldington em The
Portable Oscar Wilde cita as seguintes palavras ditas por Wilde a André
Gide acerca da leitura de livros na prisão:
“I thought, at first, that what would please me most would
be Greek
literature, so I asked for Sophocles, but I could not get a
relish for it. Then I thought of the Fathers of the Church, but I found them
equally uninteresting. And suddenly I thought of Dante. Oh! Dante. I read Dante
every day, in Italian, and all through, but neither the Purgatorio nor the Paradiso
seemed written for me. It was his Inferno
above all that I read; how could I help liking it? Cannot you guess? Hell, we
were in it – Hell, that was prison.” 7.
Wilde foi libertado em
maio de 1897 e diria que se tivesse sido libertado um pouco antes teria deixado
o lugar sentindo por ele e seus funcionários um ódio amargo que teria
envenenado sua vida. Agora relembra as grandes bondades que quase todos tiveram
por ele, no último ano (o diretor havia sido trocado e fora permitido ao esteta
a leitura de jornais e uma alimentação mais diferenciada). O prisioneiro C3.3 foi a máscara de ferro que
mudou sua fisionomia, fez a cabeça tombar, mas redobrou o amor à vida. Desse
conflito chegou à harmonia da luz e da treva; ao se colocar meditativamente
acima das consideráveis conseqüências da dor, gerou mais uma vez a obra de
arte.
Em 13 de fevereiro, é publicada a
primeira edição composta de 30 exemplares ao preço de um guinéu em papel Japão
e de 800 exemplares sobre papel Holanda vendidos por meia-coroa. A dedicatória
, aqui reproduzida, foi suprimida a pedido do editor Leonard Smithers:
“Quand je sortis
de prison, certains vinret à ma rencontre avec des
vêtements et avec
des épices, Et d’autres avec de sages conseils,
Vous ,’avez
apporté votre amour.”
Em 1913, uma
importante edição em língua francesa foi precedida de um relato histórico
acerca das circunstâncias que permearam a composição e publicação do poema em
língua francesa na Coleção Autores estrangeiros de “Mercure de France”. O texto
em inglês foi colocado ao lado da tradução no volume a venda. A principal razão
seria oferecer um número de páginas razoável que justificasse o alto preço, o
que preocupou Smithers, pela concorrência A grande novidade foi ser ilustrada –
o artista deveria interpretar a expressão tragicamente simbólica do destino
humano, este canto de dor vindo das profundezas da pior miséria - e Gabriel
Daragnés foi o escolhido. Wilde havia conhecido as alegrias e o orgulho do
sucesso, o futuro lhe ofertara a miragem da celebridade, das honras e da
glória, mas chegou à imortalidade por uma estrada imprevista. Amante do
desenho, Wilde imaginara a composição, o formato, a encadernação e fazia disso
um jogo no qual os recursos de seu gosto delicado e de sua faustosa imaginação
eram infinitos. O esteta sabia que seu poema não era uma obra de circunstância,
mas inspirado por um suplício físico e moral de dois anos; por isso, estava
destinado a co-mover tantos quantos o lessem. Conta D-Dravray, o tradutor
francês, da relutância de Wilde em transpor o poema para esta língua. Ele
sentia algum embaraço para justificar sua recusa, tentando dissimular com um
sorriso contido, uma faísca no olhar; parecia não entender que D-Davray pensava
numa versão em prosa. Entendida a intenção, disse que o mérito do poema residia
em grande parte na sua forma e sem a música do verso não restaria nada. Começou
por desafiá-lo a traduzir com perfeição e esmero passagens de Keats, Racine,
Shakespeare, Coleridge, Shelley e William Morris, torturando a memória do tradutor. Continua D-Davray que Wilde
parecia escutá-lo com um ar ao mesmo tempo divertido e surpreso. O último
argumento para convencer Wilde foi fazê-lo observar que os próprios poetas ao
traduzirem poetas, haviam recorrido à prosa, por exemplo, Mallarmé com sua
versão do Corvo de Allan Poe.
Sentiram a necessidade de escapar aos entraves e às restrições da métrica. E
termina dizendo que o próprio Wilde teve a experiência, já que sua Salomé é um poema em prosa. Gargalhando,
o esteta se dá por vencido e ambos passam a trabalhar na primeira versão,
pronta em poucos dias, com cada palavra pensada, cada frase lida em voz alta,
relida, silabada, com todas as entonações possíveis. Os detalhes sobre a prisão
desconhecidos pelo tradutor eram explicados com toda boa vontade por Wilde, que
reconhecia o esforço de D-Davray, mas repetia que faltava a ele ter estado em
uma prisão, e inglesa! Até lá, não possuiria uma versão completa e a tradução
estaria imperfeita. E sobre isto, certo dia declara num tom solene estar tudo
resolvido para que D-Davray passasse uma temporada em uma cela na prisão de
Reading, por Wilde alugada. O tradutor estremece e diverte o esteta. A partir
da jocosa sugestão passa a se mostrar indulgente e bem-humorado. D-Davray
termina o relato desculpando-se por entrar em cena, mas a intenção foi evocar a
luminosa e inesquecível figura do poeta. Com a Balada, deixa de ser o Sirius
– estrela mais brilhante do céu, da constelação do Grande Cão – da
comédia irônica, atitude ensaiada em De
Profundis (ainda escrita no cárcere). Acolhe a tragédia com mais veemência.
A Balada é fruto do martírio; visa a eternidade. Diz Michel Foucault que “o
encantamento não está ligado a um segredo depositado nas dobras da linguagem
por uma mão exterior; ele nasce das formas próprias a essa linguagem quando ele
se desdobra a partir dela mesma segundo o jogo de suas possíveis nervuras.
A
escrita poética feita vida por Wilde abriu nosso olhar não só para o que fora
criado, como para tudo o que ainda poderá vir a acontecer quando a força
artística é reconhecida parte integrante e essencial da existência.
domingo, 26 de agosto de 2012
País do Espelho
Ainda visitando os lugares imaginários recolhidos por Alberto Manguel, faço uma parada no País dos Espelhos, idealizado maravilhosamente por Lewis Carroll. "A língua do país do Espelho, embora utiliza a gramática e as palavras inglesas tem regras próprias. As palavras teem o sentido que quem fala lhes dá porque seus habitantes acreditam que são eles- e não as palavras - que mandam.". Saboroso pensamento do gênio de Alice. Quantas vezes nos faltam palavras para a expressão de sentimentos? Ou ainda, as que encontramos não parecem conter em si a força, a ênfase de que precisamos para que outros nos entendam? E pior, tentamos em vão explicar-nos e somos mal entendidos. Nossa presença , nossos ideais, nossos gestos e nossas palavras, todos juntos constituem diálogo com o mundo. A escrita em nossa pele representa marca indelével no mundo. Cada um de nós é uma palavra única sussurrada por Deus e nunca repetida.
Lêonia
Personagem da vida, chamada a desempenhar vários papéis diariamente, refugio-me em Leônia, cidade da Ásia que se refaz todos os dias. De acordo com o Dicionário de lugares imaginários, de Alberto Manguel, Leônia se mede "pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Certos viajantes se perguntam se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente.". Escolhi Leônia por acreditar que nos refazemos todos os dias. Cada instante vivido, cada experiência desdobrada constitui elemento modificador, moldador de meus instantes futuros. Deixar para trás ou abraçar algo, ou ainda os dois movimentos ao mesmo tempo, intensificará meu caminho de escolhas, definindo-me mais à frente. A arte de viver na beleza de cada momento exige paciência, cautela, um passo de cada vez,sem medo do afastamento, já que logo adiante sonhos esperam.
Escolhi Leônia hoje para descanso. Nela, deixo para trás o que não fui e lanço-me ao que desejo ser.
Escolhi Leônia hoje para descanso. Nela, deixo para trás o que não fui e lanço-me ao que desejo ser.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
Converso comigo
Há um tempo, pensava em qual livro escolheria ser. Hoje quis imaginar-me uma personagem e desejei ser duas de uma vez: O Quixote de Cervantes e o Rouxinol (do conto O rouxinol e a rosa) de Wilde. Com audácia, amor, fidelidade aos princípios e ideais e... uma pitada de loucura.
mais de Wilde por ele mesmo
Em A alma do homem sob o socialismo:
"Tens uma personalidade maravilhosa. Desenvolve-a. Sê tu mesmo. Não imagines que a perfeição consista em acumular ou possuir coisas exteriores. Tua perfeição está dentro de ti mesmo. Assim que conseguires compreender isto,já não necessitas de ser rico(...)."
"Mas um mapa-múndi em que não figurasse a Utopia não valeria a pena de ser olhado,pois nele faltaria o único país em que a Humanidade desembarca diariamente.E apenas nele, olha para mais além e,divisando uma terra mais bela, torna a virar proa para ela.O progresso não é senão a realização das utopias.".
"Tens uma personalidade maravilhosa. Desenvolve-a. Sê tu mesmo. Não imagines que a perfeição consista em acumular ou possuir coisas exteriores. Tua perfeição está dentro de ti mesmo. Assim que conseguires compreender isto,já não necessitas de ser rico(...)."
"Mas um mapa-múndi em que não figurasse a Utopia não valeria a pena de ser olhado,pois nele faltaria o único país em que a Humanidade desembarca diariamente.E apenas nele, olha para mais além e,divisando uma terra mais bela, torna a virar proa para ela.O progresso não é senão a realização das utopias.".
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
especial
Coração partido
Anjo na terra retorna ao céu
Coração doído
Choro na terra, festa no céu
Das alturas vem mensagem de cura
Nos braços de Deus repousa um anjo
Para Elisabeth
segunda-feira, 20 de agosto de 2012
Converso com Maurice Blanchot
Em A parte do fogo (Rocco, 2011), Blanchot traz uma saborosa reflexão sobre a literatura:
"a literatura tem um privilégio: ela ultrapassa o lugar e o momento atuais para se colocar na periferia do mundo e como no fim dos tempos, e é dali que fala das coisas e se ocupa dos homens(...)palavras reais e uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado da realidade, e esse mundo é inacessível(...)ela não é explicação,nem pura compreensão, pois o inexplicável está nela(...).".
Este paradoxo faz da obra literária uma fascinante viagem, que amplia nossa visão de mundo e a visão de nosso interior.
"a literatura tem um privilégio: ela ultrapassa o lugar e o momento atuais para se colocar na periferia do mundo e como no fim dos tempos, e é dali que fala das coisas e se ocupa dos homens(...)palavras reais e uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado da realidade, e esse mundo é inacessível(...)ela não é explicação,nem pura compreensão, pois o inexplicável está nela(...).".
Este paradoxo faz da obra literária uma fascinante viagem, que amplia nossa visão de mundo e a visão de nosso interior.
Poemas para um corpo mascarado I
A Esfinge
(adaptação do texto publicado no livro Faces rituais da poesia- Confraria do Vento,2010)
E este é o nosso próximo capítulo...
(adaptação do texto publicado no livro Faces rituais da poesia- Confraria do Vento,2010)
A Esfinge e A
balada da Prisão de Reading – poemas
para um corpo mascarado
Stella
Maria Ferreira
“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve
Morrer também mais de uma
morte.” .
Projetando-se
como mergulhador délio, em luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou
os instantes de pouco mais de quarenta anos, Oscar Wilde fez da vida uma
experiência literária para que a eternidade estivesse ao alcance do corpo.
Operou um auto-enfeitiçamento e confundiu àqueles a quem a percepção sensorial
inibira qualquer manifestação criativa. Nesta circunvolução, como autor e
herói, exercitou venturas e desventuras e, purificado do conformismo,
encontrou-se com a dor de uma vida inteira enquanto esteve na prisão.Em sua
obra poética conciliou a improvisação, a oportunidade, a superioridade do
inconsciente em um domínio absoluto da técnica, sem abdicar, contudo, da
surpresa, reservada para o roteiro. O vigor de sua inteligência deu a seus
textos a pureza almejada pelos decadentistas.Percebeu que cada ato de vida
escolhido importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu
inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas, não sofreu pelo que não viveu. Esta
adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem
moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra: “(...) uma plena
memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem
arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética.” (WILDE,
2003, p.1413).
O inconsciente ditava rapidamente e a trilha se tornava cada vez mais
iluminada e já não havia nada a temer. A cada volta, Wilde sabia que subiam,
ele e o leitor, um degrau de cada vez. Ele fez de todos, cúmplices de uma trama
desconhecida para ambos. Agarrou-lhes a mão para puxá-los – e também a si – em
direção ao centro dos sonhos mais secretos, aos desejos inconfessáveis.
Revelação dura demais; veredicto unânime: condenado por apontar o papel
estético desempenhado por todos. Na prisão, as vozes não silenciam, a mão
parece cansada, mas a narrativa não pára. Dois anos depois, na saída, pinga as
reticências de um fim que quer ser começo com uma balada. Sai de cena. Os
leitores, no entanto, não deixam que as cortinas sejam cerradas. Saíra mesmo de
cena? Não, multiplicara-se pelos pontos deixados na página.
O poema A esfinge foi por ele iniciado na época de Oxford e terminado em
Paris em 1883 (tendo a publicação apenas
em 1894). O poema traz o embrionário sentimento do efeito avassalador que teria
mais tarde Á Rebours de Huysmans. Oscar Wilde tinha
um forte sentimento por esfinges e, como a vida imita a arte, Wilde conheceria
mais tarde, Mrs Ernest Leverson, “a young woman who hid intelligence and a
tender heart under a frivolous manner(...), a link with the world of Proust:
her sister and brother-in-law(...)were great friends of Proust(...)her wit
conditioned her ideally to respond to Wilde’s light-heartedness, his particular
form of gaiety iluminated by genius” (JULLIAN,1971,p.169). De Ada – e para ela
-, diz Wilde: “ You are one of those who, in art, are always, by intuition,
behind the scenes, so you see how natural art is(...)” (JULLIAN,1971,p.169)
. E ela diz dele: “I had been told that he was rather like a giant with the
wings of a Brazilian butterfly and was not disappointed. But I thought him far
more like a Roman Emperor who should have lived at the Pavillion at Brighton
with George IV.” (JULLIAN,1971,p.170)
A trama se insinua no ritmo do nictêmero
(unidade indicativa de 24h), com a ‘presença’ de dois personagens. Meio humana,
meio animal – dotada da faculdade de pensar (JULIAN, 1971, p.165) “Intangível e
quieta não se ergue nem faz o menor movimento” (WILDE, 2003,p.958), mas vem ,
porém, aninhar-se junto a um estudante. Envolto no profundo e convulsivo
silêncio da noite, o jovem é enfeitiçado pelo olhar – de fantásticos luares -,
o sorriso enigmático e a fisionomia irradiando tranqüilidade. Inebriado, ele faz o convite: “Aproxima-te, encantadora
e lânguida Esfinge minha, vem colocar tua cabeça sobre meu peito e deixa-me
passar uma mão acariciadora por teu peito e examinar teu corpo mosqueado como o
de um lince.” (WILDE, 2003,p. 958). Com a implícita promessa de um ideal –
penetrar o desconhecido -, ávido por decifrar segredos, experimentar mais do
que ‘conhecer’, o jovem é devorado por dentro pela criatura: “(...)vem
estirar-te a meus pés, Esfinge fantástica, e conta-me tuas recordações(...)” (WILDE,
2003,p.959), e é levado a lugares distantes em tempos remotos: “mil séculos
lentos te pertencem quando eu, em troca, vi apenas vinte estios despojarem-se
de sua verde libré para vestir a libré multicolorida do outono...” (WILDE,
2003,p.958).
A cabeça feminina num corpo felino com
garras que prendem e ferem cruelmente levam o protagonista a uma ‘viagem’ interior
– sem movimento externo (bem a gosto de Des Esseintes) – doce martírio. Só o
medo e o terror poderiam, com ela, produzir o prazer que o jovem estava por
experimentar. Horror e deleite. O paradoxo se instala. A excepcional ação dos
órgãos dos sentidos permitiu que ele interagisse com outros mundos e um
excepcional aperfeiçoamento virá ainda. O jovem é outros. E se assim é, o
leitor de A Esfinge é também ‘arrastado’ para essa vida ‘mais verdadeira’ que
Wilde com tal facilidade verbal propõe.
O jovem ansiava por tornar-se decifrador
da linguagem secreta do universo. Que tivesse ele as
respostas agora! O pacto é silencioso, mas ele sabe que ao chamar a figura
alada, estaria a ela entregando algo de si. Aceita, sem delongas. A peregrinação virtual o leva a lugares e
tempos remotos: “(...)Fala-me do labirinto que servia de estábulo ao touro de
dupla forma(...)” (WILDE, 2003,p.959). O sutil sorriso da figura instiga a
curiosidade do jovem quanto a seus amores. Teria a figura amado ou só existira
para provocar fortes e devastadoras paixões? Teria esperado que todos os véus
deixassem de ser para ela mistério para que dominasse os segredos dos homens? O
silêncio aterrador leva o protagonista a um clímax: “(...)Vai-te daqui; estou
cansado de teus gestos de languidez, cansado de teu olhar sempre fixo de tua
sonolenta magnificência...” (WILDE, 2003,p.964). Julgando fazer o percurso
dela, na verdade, enreda-se nas teias de sua mente.
As
indagações do jovem vão, assim, da fascinação (“Como é sutil teu sorriso! Será
que não amaste a ninguém?”-WILDE, 2003, p.961) até o súbito terror (porque se
chegasse a decifrar os segredos da esfinge um fim trágico poderia encontrá-lo).
Declara-se farto do hálito “pesado e horrível”, dos olhos que são “como luas
fantásticas que tremem em um lago de águas paradas”, da língua que “ é como uma
serpente escarlate que baila ao som de árias fantasmais(...)”, sente o pulso deste ser que “ bate em
melodias envenenadas” e vê na negra boca “ o buraco que deixa uma tocha ou umas
brasas sobre uns tapetes sarracenos(...)Vai-te daqui, repugnante mistério(...)”
(WILDE, 2003,p. 964/965). A presença feminina, a rigor, exaspera. De início
encantadora, capaz de enlouquecer com um olhar: “(...)Sua face era como o mosto
que enche uma cuba de vinho novo. Os mares nada poderiam acrescentar à
perfeição de seus olhos de safira(...)” (WILDE, 2003,p.961); mostra-se
fatal, cujo prazer não se encontra na
morte dos amantes, mas no domínio sobre suas vidas: “Bem sei que teus amantes
não morreram. Voltaram a levantar-se. Ouvirão tua voz. Agitarão ruidosamente
seus címbalos. Regozijar-se-ão(...)” (WILDE, 2003,p.963). O súbito temor de se
ver para sempre coberto por suas asas e inebriado por seu perfume o desespera.
O poema traz a adormecida Salomé
decadentista. O jovem parece enfastiado do real, quer sentir mais do que
conhecer e à dama do crepúsculo interessa sobremaneira este verde coração. A
força feminina, que mergulha sem temor neste mundo dominado pela razão
masculina, impulsiona o jovem. A Esfinge
apresenta a lição ensinada ao filho de Dédalo: o desafio por si só, a tentativa
de desprender-se de um corpo limitado no espaço e no tempo é a força motriz do
indivíduo. A idéia lançada no ar é mais uma vez feminina. O estudante não sabe
se trazida pela fugidia “Fúria de cabeleira de serpentes, recém saída do
Inferno” (WILDE, 2003,p.964), ou por um fantasma criminoso;e ainda mais adiante:
“Tornas aquilo em que creio uma estúpida fraude, despertas obscenos sonhos de
vida sensual(...)” (WILDE, 2003,p.965). Impacto revelador da escuta de um não
canto, de uma não voz desta serpente para quem ele se dirige assim, “despertas em mim bestiais sensações, fazes
de mim aquilo que eu não quereria ser.” (WILDE, 2003,p.965). Semelhança com o
jovem Dorian Gray encantado pela voz de Lorde Henry e rendido a sua voz
interior. Contagem de anos não cronológica
que faria dele, daí em diante, um indivíduo diferente. O ‘encontro’ com seus
desejos ocultos fez com que envelhecesse, tal qual o retrato – só que não por
fora, mas por dentro.
A experiência
enriquecedora faz com o que o jovem respire o ar robusto de que nos fala
Nietzsche em Why I am so wise:
“He who knows how to breathe the air of my writings knows
that it is an air of the heights, a robust air. One has to be made for it,
otherwise there is no small danger one will catch a cold. The ice is near, the
solitude is terrible – but how peacefully all things lie in the light! How
freely one breathes! How much one feels beneath one!”.
O calor evocado pela figura do deserto
contrasta com o gelo aterrador da vivência solitária dos muitos mundos.
A visão que se tem a partir do poema é a da confusão do infinito labirinto sem
muros: o deserto, de onde nunca sairá, tão logo o olfato absorva o odor dessa
desconfortável liberdade. A princípio parece-lhe retirada a paz, perceberá,
certamente, mais tarde, que a inquietude será de agora em diante sua fiel
companheira e a única que fará com que sua personalidade se desenvolva.
Mais
uma vez o sombrio apresenta-se como esperança de revelação. A nebulosidade, a
incerteza trazidas pela figura da Esfinge é traduzida como descoberta e o
estudante libera seus ‘outros’, permitindo-se uma vivência mais completa, mesmo
no espaço reduzido de seu quarto . A treva que é luz seria importante mote
decadentista, assim como os temas exóticos. A estranha gata achava-se estendida
sobre um tapete chinês e leva o estudante, como pelo ar, a visitas pelas terras
orientais, observando faraós, deuses assírios,
sacerdotes em templos ricamente decorados, mercadores em navios
multicoloridos, beduínos, caravanas errante de negros de ar solene. Mundos são
desvelados para ele e nele.
Fica-nos
a dúvida sobre o real efeito propiciador das divagações do estudante: haveria
mesmo esta figura ali com ele, estátua, imóvel, ou já isto também seria
resultado das leituras noturnas que fazia? Se considerássemos esta última
opção, Wilde estaria mais uma vez atestando o valor da leitura para a
imaginação e a figura alada seria mera projeção do desejo de liberdade do
jovem. Teria mesmo tal figura participado do episódio ou seria semente da musa
decadentista, provocadora de loucos amores, sedutora que enfeitiça duros
ouvidos e reconstrói companheiros despedaçados, despertando paixões até em
pedras insensíveis (cf.WILDE, 2003, p.963) . A movimentação interna
é tal que se sobrepõe à imobilidade externa. Mais uma vez, lembramos À Rebours com Des Esseintes ‘viajando’
para Londres, sentado em um café à espera do trem. Tamanha experimentação
anulou sua efetiva ida a capital inglesa; seu desejo estava satisfeito, por
isso, pode retornar à casa. Esta virtualidade já atestaria a opção pela
imobilidade ao invés da ação. O movimento do corpo estava associado por demais
a produção, ao lucro e isso só se mostrava prejudicial ao exercício do
pensamento, que precisava do ócio. A esfinge, assim, deitada, preguiçosa,
poderia ser símbolo propulsor de que necessitava o estudante para ser o que
queria.
O
resultado da intensa noite para o estudante não foi de tranqüilidade. Havia
agora a iminência de tomada de atitude. Não poderia ignorar a descoberta das
insatisfações de sua vida. Seu inconsciente balançara as correntes da
consciência reguladora. Teria que fazer agora sua escolha, a aurora já
despontava “em torno dos campanários cinzentos que ostentam um quadrante
dourado, e a chuva corre sobre cada vitral talhado como um diamante, e suas
lágrimas empanam o dia já descolorido.” (WILDE, 2003,p.964). A ação é sempre a
opção mais fácil por ser a mais contínua dizia Wilde em O crítico como artista; é refúgio das pessoas submetidas; é
cegueira que está em desacordo com a finalidade primeira da vida; por fim, é a
base da falta de imaginação. As muitas vozes silenciam de súbito, era hora da
oferta final – uma existência modificada, pronta para a ação desmedida dos
sentidos.
No
final, a ação da consciência parece retrai-lo. Acreditamos, no entanto, que a
experiência sensorial foi de tamanha intensidade que deixara marcas doloridas
em seu corpo, até então intocado pela força artística. A ‘viagem’por estes
mundos de um passado que parecia ser seu presente, da vida de outros que não
era mais do que a sua vida não vivida, emboscada no inconsciente exigiam uma
resposta. Como a esfinge, ele viveria eternamente. A questão era : viveria
repetido sentimento de remorso ou repetido gozo pela realização de toda uma
existência de sonho. O temor deste novo era
normal. A serenidade da acomodação ainda exercia fascínio. No entanto, o
poder do texto já invadira definitivamente sua alma. A imaginação exigia uma
entrega e ele sabia que não poderia voltar atrás. Não porque lhe seria
proibido, mas porque lhe seria impossível, após experimentar tal liberdade .
Descolara-se das asas da esfinge, caíra no abismo para alçar o próprio vôo.
Disse Wilde em Uma mulher sem importância
que em uma mulher que revela sua idade, nunca se deveria confiar porque seria
capaz de contar-lhe qualquer coisa. Pois bem, ao perambular com o estudante por
todas as suas idades, revela a ele o contra-senso, a rebeldia. O ‘bom-senso’
era ‘privilégio’ do mundo masculino. A escolha do jovem já fora feita.
Tornara-se cego, surdo e mudo para este real insatisfatório e estrangeiro,
cabeça perdida, digere a vida como a um livro.
Ao
hálito poético da Esfinge se une o som metálico de correntes - a música
incidental que embala o poema publicado em 1898 – e que não parou desde então
de ser reimpresso e traduzido na maioria das línguas do mundo.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
Na minha escrivaninha
Alberto Manguel destaca em Á mesa com o Chapeleiro Maluco a observação de Chesterton de que "estão enterradas em cada livro comum as cinco ou seis palavras a partir das quais realmente todo o restante será escrito" e completa dizendo que o leitor pode encontrá-las nos livros que ama.
A curiosa afirmativa levou-me a alguns dos textos favoritos enfileirados sobre a escrivaninha. Audaciosamente diria as palavras wildianas de O retrato de Dorian Gray - escombro, modernidade, máscara, juventude, inconsciência. Em Persuasão, de Jane Austen - preconceito, ilusão, superação, amor, fidelidade. No Quixote de Cervantes - sonho, ficção, plenitude, ousadia, lealdade.
A curiosa afirmativa levou-me a alguns dos textos favoritos enfileirados sobre a escrivaninha. Audaciosamente diria as palavras wildianas de O retrato de Dorian Gray - escombro, modernidade, máscara, juventude, inconsciência. Em Persuasão, de Jane Austen - preconceito, ilusão, superação, amor, fidelidade. No Quixote de Cervantes - sonho, ficção, plenitude, ousadia, lealdade.
terça-feira, 14 de agosto de 2012
Converso com Shakespeare
"WHAT'S IN A NAME? A ROSE BY ANY OTHER NAME WOULD SMELL
AS SWEET." (in Romeo and Juliet by William Shakespeare)
O que há em um nome? Acaso uma rosa se outro nome tivesse teria perfume menos doce?
Os títulos, posições, cargos, o que significam senão serviço; meio pelo qual o ser humano possa crescer e desenvolver todas as suas potencialidades?
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Carta para quem ainda não sou
Prezado (não sei como nomear-te se ainda não és).
Venho por meio desta chamar-te à ação. Ora,o que estás a pensar? O tempo urge. A arte espera, ansiosa. Tens tanto a oferecer e ficas a oprimir teu espírito com medos e inseguranças. Parta agora. Vista a capa da inspiração; calça as sandálias da imaginação; abra os olhos para a irrealidade que cerca os que,com a coragem de que foram dotados em sua essência,correm celeremente ao encontro de sua vocação. És artista. Não tens escolha.Teu destino aí está, esperando teu abraço carinhoso e tua aceitação resignada. Corra em direção ao canto das sereias e deixa-te seduzir. Descansa. Tens negado durante tempo longo demais alegria a teu espírito cansado. Não seria um alívio fechar-se à intolerância, à tristeza que, por vezes, te cerca e abrir-se definitivamente à vida artística a que foste chamado? O mundo, por certo, obteria proveito e vantagem do brilho que poderias imprimir. Escreva. Não te prives do infinito.
Aguardo as cintilações de tua próxima cena. A cortina se abre para ti mais vez.
Aproveite.
Aguardo seu contra senso,
Teu amigo fiel (teu eu)
sábado, 11 de agosto de 2012
A minha leitura
"(...)imprimir o texto (na expressão de Cícero que Santo Agostinho gostava de citar)"nas tabuletas de cera da memória". Ao recordar o texto,ao trazer à mente um livro que um dia teve nas mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele e os outros podem ler.". (Uma história da leitura, de Alberto Manguel-p. 75)
O exercício da leitura,o passo dos olhos, sendo reeditado na mente pela memória torna o meu corpo escrita que se quer também eterna. Cada curva, cada traço, cada ruga ditados pelas regras da arte.
O exercício da leitura,o passo dos olhos, sendo reeditado na mente pela memória torna o meu corpo escrita que se quer também eterna. Cada curva, cada traço, cada ruga ditados pelas regras da arte.
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
nas ruas do Porto V
Desço a Rua Mouzinho Silveira e,entrando na Rua Infante D. Henrique, abre-se à vista a Praça da Ribeira - região colorida e festeira. O passo é fluido; a maciez do solo, com o Rio Douro como cenário, torna a caminhada imensamente prazerosa. é grande o ir e vir de pessoas.
Sento-me à mesa de um dos inúmeros restaurantes. O espírito receptivo favorece uma pausa no tempo. No meu tempo. O som das gaivotas, meus pés assentados num chão quase flutuante,os olhos fechados. Uma alegria serena me invade: tudo realmente vale a pena se alma não é pequena.
Sento-me à mesa de um dos inúmeros restaurantes. O espírito receptivo favorece uma pausa no tempo. No meu tempo. O som das gaivotas, meus pés assentados num chão quase flutuante,os olhos fechados. Uma alegria serena me invade: tudo realmente vale a pena se alma não é pequena.
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
Wilde,leitor
O DESAFIO DO CAMINHO : no jogo da
leitura a tecitura da trama
Máscara
ainda a ser explorada: a de Wilde leitor. A partir da leitura dos clássicos,
banqueteando-se de sua poesia, percebeu, ouviu com arte (hear with art) – usou do coração (HEART) nas letras, estas partes
desmembradas do seu e de outros corpos a serem decifrados .
Procuramos nos inserir na biblioteca wildiana – para nós um espaço imaginário.
Desde criança exposto a tradição irlandesa dos contadores de histórias, jovem
participando das reuniões intelectuais promovidas por sua mãe – poetisa
reconhecida e extremamente respeitada -, até a recusa das brincadeiras com
outras crianças, na escola, para se
deliciar com as páginas de um livro, ousamos desenhar a força que a escolha já
operava em sua vida. Criando e recriando sentidos e direções, Wilde
destacava-se dos outros da mesma idade, o que fez com que a mãe por várias
vezes ao comentar sobre os filhos dissesse que Will era ótimo, mas Oscar estava
definitivamente destinado ao sucesso.
A máscara de leitor da qual haveria de se
servir prescindiria até do livro em si. Por meio dela, por trás dela,
‘brincaria’ de um jogo que aos poucos se tornaria perigoso – o de se ver nas
páginas, ou como páginas.
Como nas reproduções
dos antigos, Wilde foi flagrado inúmeras vezes com um livro em mãos. Fixou a
idéia de que cada livro continha também a história do leitor e buscou
vorazmente interpretar o mundo à sua volta. Cada livro que leu o pressupôs;
cada página virada remetia-o circularmente à primeira página lembrando- o de
que nunca deveria parar de fazer perguntas, já que não poderia haver a última
palavra em leitura. A textura do papel, seu odor, tudo eram vozes que o faziam
recordar-se “com memória alheia”, como diz Ricardo Piglia em seu Borges: a arte de narrar (SCHWARTZ,2001,
p.33). Duplica
o mistério, entrega-se à trilha da leitura. . Reconheceu o caráter provisório da leitura, sempre a
completar-se, sempre a refazer-se. Cada ‘ponto final’ era para ele uma vírgula
– pausa breve, rápido movimento de expiração para que retornasse à inspiração.
Parece-nos ver o cuidado com que passava as folhas de cada livro, meditando,
ruminando sobre o lido, como que adivinhando tramas e desenlaces e,
possivelmente, sintetizando uns, estendendo outros. Fácil imaginar o vôo de seu
pensamento ao ser apresentado a cada personagem, a cada nova idéia, a cada
proposta para um modo de vida; demorando-se na página, acariciando e sendo
acariciado.
A palavra plot, em inglês enredo, é também terra destinada à sepultura.
Ora, o enredo para uma história não se poderia deixar sepultar em um final,
pois deveria ser continuação para outras tantas. Ainda assim, é sempre morte, assim como evidente vida, para o
leitor. Algumas histórias são morte para uma vida acomodada e perspectiva de
existência renovada. Ficam as cinzas, como sementes para um corpo novo. Wilde,
no entanto, parecia já ir ainda mais além: o enredo perfeito que buscava
sepultaria sua presença como veiculador da mensagem artística, para uma vida
que era obra e só obra.
Plácido, como um inglês,
impulsivo e imaginativo, como um irlandês, sublinhou em cada passagem, plena de
força poética, o drama musicado da existência, externando o incontrolável poder
das palavras, sempre em vigília, em zelo. Como os olhos
no movimento da leitura – da esquerda para a direita, da direita para a
esquerda, de baixo para cima – sujeito nômade, na intimidade com as entranhas
de outros costumes anexou o passado e o futuro ao presente, sempre em movimento. Acreditando no ato de caminhar como condição
essencial para o desenvolvimento do pensamento, Wilde andou por diversos
lugares, esculpindo, arquitetando um discurso que, atrelado ao passo, seria
trunfo para um triunfo estético. Do apaixonado trabalho com os textos, tomando das obras o que ofereciam, produziu o
efeito concreto e visível da acuidade singular de uma prosa artesanal.
Esculturas ainda invisíveis aos olhos se produziam em sua mente e a cada toque
imaginário a forma se tornava mais ‘real’.
E assim, distingue-se na cabeça curvada
ou no corpo arqueado sobre a folha, o impulso do corredor. Havia muito a apreender,
a ruminar para o fim que era a apropriação deste corpo que era escrita também e
só.A
silhueta se modificava e o efeito de camuflagem começava a invadir o meio em
que circulava.
Considerado
o melhor helenista de sua geração, tinha todos os atributos que poderiam gerar
atenção: cultura, entusiasmo e um vocabulário invejável. Do lente de Brasenose
College, Walter Pater, Wilde recebeu
lancinante influência. As palavras acenando para uma vida vivida no espírito da
arte
tocaram fundo o jovem, que deixou-se envolver nesse encantado contato com o
antigo professor de Oxford.
Pater
foi leitor dos filósofos românticos alemães e grande admirador de Goethe,
acreditando que o artista deveria trabalhar para tornar-se uma personalidade
completa e rica para daí fazer de sua obra uma inevitável expressão de si; trabalharia,
assim, de dentro para fora trazendo à luz sua individualidade . Sua
apreciação incomum da beleza sensual na arte e na natureza resultara em uma
notável habilidade de transmitir estas impressões na própria escrita.
Conseguiu, então, uma ‘elasticidade’ para princípios inflexíveis que o
estimulariam a distinções cada vez mais peculiares em busca do sonho maior:
“one should construct for oneself an imaginative world – the ‘type’, or
purified, ‘rectified’ essence of the real world, a ‘vision’ of the ideal – and
live in it.”6. Para o estudioso, este sonho era consolador, mas não
o suficiente para mobilizá-lo; não comungava do lado social e humanitário do
movimento estético, diferentemente do contemporâneo John Ruskin –
emblematicamente falecido também em 1900 -, que proferiu conferências em Oxford
entre 1861 e 1878, e ulteriormente, em 1883 e 1884, e de quem Wilde tornou-se
fiel discípulo. Ruskin admitia a vida a serviço da beleza como vida a serviço
da humanidade. Diz Philippe Julian em Oscar
Wilde:
“Many aspects of
Victorian England owed their origins to the influence
of Ruskin. For
example, at Oxford, buildings such as the Union and the
Museum bear traces of his form of
mysticism(...)” .
O eminente professor, em análise sobre
sistemas arquitetônicos, apontava o ornamental revolucionário como aquele que
não admitiria inferioridade em sua constituição. A arquitetura mostraria-se
exortação desta forma. A recorrência da arquitetura para exemplificação –
ou materialização - do movimento da literatura será marcante. Daí a menção
constante de Nietzsche acerca da construção do pensamento, das curvas e
modulações, das nuances e combinações. O esforço, porém, para uma grande
edificação intelectual não era grande para Ruskin. Diz ele que uma grande coisa
só pode ser feita por um grande homem e este o faz sem esforço algum
. Sem contestar o mestre, parece-nos que Wilde não concordaria com a idéia por
completo. Um indivíduo que se reconhece como artista da vida – e só assim vendo
nele um destino – exigiria de si enorme esforço para que a contradição estivesse
sempre a frente para que não sucumbisse a comodidade dos que esqueceram o valor
da criação. Wilde sabia que qualquer tremulação faria com que um borrão de
tinta manchasse as linhas cuidadosamente preparadas. Mesmo a passos largos,
estes deveriam ser firmes o bastante para evitar tropeços. Olhos fixos embaixo,
no papel, e pensamento fortemente postos no alto. O cuidado, no entanto, não
deveria fazê-lo evitar o confronto com adversários. Estes fortificariam ainda
mais seus ideais e fariam com cada vez mais articulasse réplicas imaginárias,
acendendo dia-a-dia suas vozes interiores. Em Oxford já travava um combate.
Da
brilhante combinação dos dois mestres, Wilde mostrou-se particularmente
interessado em uma re-organização da sociedade que permitisse a ação
libertadora da arte; introduzir dúvidas numa era de
certezas. Sua visão poética permitiu-lhe a reunião em um mesmo ensaio, já por
si uma obra de arte, suas impressões sobre as diversas manifestações
artísticas; falaria da arte concretamente ao fazer reviver o pensamento grego
somado a agitação da vida moderna. Se, ao agir, o homem moderno se parece com
uma marionete, ao falar, ao escrever, seria um poeta. A visão do que se senta e
assiste é ilimitada e absoluta e, aqui, nota-se claramente influência de Chuang
Tzu*. Se é ilimitada, seus
segredos últimos nunca poderão ser revelados point for an ideal . Inegável e talvez desnecessário reafirmar a forte
influência de Speranza. A firmeza das posições político-sociais da mãe fizeram
de Wilde também um leitor à frente de seu tempo. A viagem interior estava em progresso e o
mundo o chamava; obediente, vai ao encontro dos antigos.
Em 1875, já agraciado com a bolsa de estudos
no Magdalen College, viaja nas férias
para a Itália com o Prof Mahaffy
– antigo mentor, um artista nas palavras vívidas e no silêncio eloqüente e
sobre a inesquecível experiência diz em carta à mãe, datada de 24 de junho de
1875:
“(...)Believe me Venice in beauty
of architecture and colour is beyond
description. It is the meeting
place of the Byzantine and Italian Art –
a city belonging to the East as
much as to the West(...)Arrived in Milan
in a shower of rain.(about the
Cathedral): These moderns don’t see
that
the use of a window in a church is to show a beautiful massing
together
and blending of colour – a
good old window has the rich
pattern
of a Turkey carpet(...)Milan is a second
Paris( ...)” .
(Daí o comentário de João do Rio - no prefácio para a edição de Intenções de Wilde – de que só na
cidade-máscara poderia fielmente escrever sobre o esteta irlandês). Parecia
reconhecer de imediato as observações de Ruskin sobre a cidade-máscara: sua
redundância, sua indomesticabilidade; é grotesca e suave, obstinada e generosa,
evocando perturbadora imaginação, perpétua mobilidade, trânsito contínuo.
Parecia arrebatado e rendido a essa silenciosa melodia. Tornara-se escritor. Como
resultado da excursão, presenteia o público com uma série de poemas de
exaltação às imagens – já tão conhecidas pelos lábios incendiários do mestre
Ruskin -, que vieram a ser publicados em 1881 sob o título Poemas. O jovem aprendiz despertava um ardor pelos ternos acordes
que fariam vibrar as fibras de sua carne. Chama-nos um fragmento de O
túmulo de Keats, escrito em Roma em 1877:
“Libertado da injustiça do mundo e de sua dor,
repousa por fim sob o céu azul de Deus:
arrebatado da vida,
quando a vida e o amor eram novos,
aqui jaz o mais juvenil dos mártires(...)
Oh! poeta-pintor de nossa terra
inglesa!
Teu nome foi escrito na
água(...)e perdurará(...)”
Em 1876, a ida à
Grécia, berço de uma Antigüidade que privilegiara o culto à beleza, completa o
circuito para uma leitura prática do pensamento clássico fazendo uma ‘leitura prática’ para uma trajetória
intelectual que ansiava ser singular.A alegria da visita ficou registrada em
seu Impression de Voyage:
“O mar tinha a cor de safira e o céu ardia como uma opala acesa;
içamos a vela. O vento soprava
com a força do lado dos países
azuis que se
estendem para o Oriente.
Da proa escarpada
contemplei, com a mais viva atenção, Zakynthos,
E cada enseada, as
costas de Ítaca, o pico nevado de Licaon e todas as
colinas da
Arcádia com suas galas floridas.
O palpitar da vela
contra o mastro, as ondulações que se formavam aos
lados na água e as do riso
das moças na proa; nenhum outro ruído.
Quando o Ocidente se
incendiou e um sol vermelho balançou-se sobre
Os mares,
achei-me, por fim, sobre o solo da Grécia!” .
De Platão a
Aristóteles, passando por Kant, Hegel, Locke, Hume, Berkeley, Mill e Spencer
suas escolhas ilustram a combinação que desejava: antigo e moderno enlaçando as
verdades eternas do pensamento clássico e as novas especulações progressistas. Um êxito vem coroar o ano de 1878: seu poema Ravenna recebe o prêmio Newdigate. Sucesso merecido.
Um corpo destinado à pluralidade, mas reprimido na homogeneidade. Corpo
fiel seguidor do provocante Baudelaire. Diz de suas Flores do mal em O crítico
como artista:
“Leia o livro inteiro, deixe que
revele à alma um só de seus segredos
e sua alma sentirá
ânsias de saber mais e se alimentará
de mel
envenenado e quererá arrepender-se de estranhos crimes que não
cometeu e expiar terríveis prazeres que nunca conheceu. E depois,
quando estiver
você fatigado dessas flores do mal, volva-se para as
flores que crescem no Jardim de Perdita e refresque sua fronte
encarolado
em seus cálices úmidos de rocio e que sua graça adorável
cure
e reanime sua alma(...)”
A grande obra artística a ser
considerada seria a de uma vida devotada às idas e vindas deste corpo viajante
sempre às voltas com o infinitoOlha tudo e a ele se revelam diferentes mundos, os que podia ver
e os que uma memória encantada desnudava. Se aos olhos até então só era
permitido ver o que estavam treinados a ver, admitiu plena atuação das forças
imaginativas. Os espaços visitados perderam suas fronteiras geográficas para,
unidos, formarem o palco ideal para um super artista, um artista de superação
de limites. Uma dança de véus se inicia e Wilde sabia que para nunca terminar,
pois recolheria frutos velejando em mares fecundos.
Escolheu no presente
sem fim o tema da sombra, do esquecido, do silêncio, do proibido, do futuro que
é passado. Flanêur literário, acentuando a memória como arte, utilizou-se de
nomes de lugares na Inglaterra visitados para identificar alguns de seus
personagens. Temos, então, com Goring, seu Lorde Goring de Um marido ideal ; e com Worthing, seu John Worthing de
A importância de ser prudente
. Das margens do Lago Windermere, na Escócia, deu-nos a protagonista de O leque da Sra. Windermere . Leitor apaixonado, escritor louco, promoveu um texto
inédito. Wilde
repousa suas personagens sobre os efeitos – para alguns – repugnantes do então
movimento das cidades. Para seus dândis e suas fortes figuras femininas de
comédia, a rua é deleite, invasão de Eros para completar o ciclo de sedução. O
texto wildiano permanece atual porque dotado de estupefaciante originalidade de
um corpus a ser cumprido.
A
quietude do texto falaria nas atitudes do esteta irlandês, articuladoras de um
caminho outro. Sabia que o maior perigo estava no que já não era mais percebido
: que o corpo achava-se controlado, ‘despoetizado’. Seu questionamento visava
esta serventia. À força de definições, conceitualizações e representações, os
indivíduos haviam se enfraquecido. Fez-se conhecer em seus escritos não porque
achasse que fosse preciso, mas porque não poderia deixar de fazê-lo. Havia uma
‘urgência’ que o impulsionava a este jogo circular. Mesclando sentimentos,
ele-autor ‘confunde’ ele-leitor, cruzando realidade e imaginação – almejando
ser caçado. Era preciso uma experiência real com a linguagem: banquetear-se de
poesia. Para ele e para o outro. A tradução das novas idéias viria também pelo
gesto. Este sustentaria o dito. Para ele e para o outro. O leitor-escritor,
como ator, deslocando as medidas, ateando fogo às palavras em uma predileção
pelo frasear acentuadamente sedutor, frente a um horizonte em constante deslocamento.
Ao
ler-se como obra artística, realizou-se, foi participante ativo de um mundo
cuja dinamicidade encontrava-se equivocadamente unida ao lucro. Assumindo cada
minuto como único e não apenas mais um, movimenta-se em espiral ascendente ao,
paradoxalmente, mergulhar nas paixões dos sentidos. Protegido pelas mãos trágicas
de um destino que não se destacaria pelo acaso, mas pela muda previsão dos
oráculos, Renega o corpo como valor de mercado, morre para fora e assume um
ritmo interior eletrizante que o faria galgar as alturas da des-preocupação
grega e romper com os grilhões da prosa.
Ao concluir, fechar,
seu único romance, Wilde se abre mais plenamente como texto; torna-se discípulo
de si mesmo. Nas nervuras das linhas, na plástica de uma rede original é
desafiado a uma insólita aventura. As palavras em relevo, num exercício
perspicaz, formam uma teia que levaria o esteta, num movimento singular, a
assumir-se como leitura. Leitura provocadora, angustiante, inquieta. Texto
morto como informação, mas prenhe de uma nova linguagem. Feita a troca de sua
existência com ou pela letra, nomeando-se obra de arte, Wilde morre e renasce
numa linguagem de simultaneidade. Wilde trouxe ao ar um
aroma estonteante, de confusão. Fusão de harmonia e caos. O que Borges, menino,
temia acontecer durante a noite quando fechava um livro- que as letras se
embaralhassem -, Wilde fez com tranqüilidade e destreza. Embaralhou-se.
Preferiu o risco, a incerteza das várias leituras para uma obra do que a vida
corrente de cidadão comum. Trocista, inocente, sarcástico, bondoso, malévolo,
abriu-se a todas as máscaras permitidas pela escritura.
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