UMA EXPERIMENTAÇÃO PARA A CRISE
Stella Maria Ferreira
(texto publicado na Revista Garrafa-Faculdade de Letras da UFRJ)
“Foi despojado do diverso um
E dos rostos, que são o que eram antes
Das ruas próximas, hoje distantes (...)
Resta dos livros o que lhe consente
A memória, essa forma de olvido
Que retém o formato, não o sentido,
E que reflete os títulos somente.
O desnível espreita. Cada passo
Pode ser uma queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não marca sua aurora nem seu ocaso.
É noite. Não há outros (...)”
1
A ‘cegueira física’ de Jorge Luis Borges é metáfora para uma cegueira que se
instala em nosso tempo – de esgotamento de experimentações. As redes das
significações caracterizam-se pelas dualidades múltiplo
x fragmentado e pluralidade x
anulação. Uma limitada utilização do sentido da visão, tão privilegiado, levou-nos a
desconsiderar o que poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que
nos é apresentado, pode haver cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação,
desvios. Ver algo significa ignorar alguma coisa também. Outras opções de percepção
são deixadas de lado. Esta ‘cegueira’ deve ser levada em consideração.
Tomando o século XIX como prefaciador das grandes experimentações que se
instaurariam no século XX, passaremos à verificação dos elementos neutralizadores
deste ímpeto de revolucionar-se observado nos dias de hoje, na chamada pósmodernidade.
Como leitor apaixonado que, no manejo da linha, escolhe a entre-linha,
acompanhamos Heráclito quando diz: “...é à vossa vista curta e não á essência das
coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da
evanescência. Usais o nome das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até
o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira
vez.” ( NIETZSCHE, 2002 , p.40), e desejamos o caminho do diálogo que nos re-situe
nesse espaço disseminado. Espaço que gerou uniformidade e não igualdade; espaço
submerso numa multiplicação de tendências que ao invés de ser experimental, gera
padronização.
Para tanto, tomaremos três textos: o conto
Wakefield de Nathaniel Hawthorne
(1835), o romance
A invenção da solidão de Paul Auster (1988) e o ensaio A muralha e
os livros
de Jorge Luis Borges (1950).
O conto do americano Hawthorne – elogiado por Borges como sendo “um mundo
de castigos enigmáticos e de culpas indecifráveis” (citado em TAVARES, 2005,p.50)
– constitui um exercício de duplicidade do sujeito. Hawthorne apresenta inquietações
que serão explicitadas na proposição nietzschiana de que a verdade estaria onde o
estilo de pensamento disse que ela está. Os disfarces de que o protagonista lança
mão, como elementos estéticos para uma nova identidade, ratificam a idéia de que
todas as nossas orientações são produzidas poeticamente, estruturadas
ficcionalmente. As formas de nosso agir, inclusive o conhecer demonstraram caráter
de produção e, se a realidade é construção, é preciso contar com o surgimento de
mundos muito diferentes. Transferimos um estímulo nervoso para uma imagem, esta
para um som e, finalmente, para um conceito. Através dessas transferências de uma
esfera para outra, as camadas de realidade emergem. Assim, o protagonista que dá
título ao conto, em certa tarde de outubro, despede-se da esposa para uma breve
viagem ao campo, alertando-a que não deve passar de três ou quatro dias.
O narrador, onisciente, o segue e diz: “Devemos apressarmo-nos atrás dele pela
rua, antes que se dissipe sua individualidade e se mescle à grande massa da vida
londrina, onde seria inútil procurá-lo.” (p.52). Fazemos aqui uma pausa no trajeto para
acentuar a apontada insatisfação com a progressiva massificação emanada dos inícios
da Revolução Industrial. Continuamos, agora, com o personagem que adentra um
apartamento que provavelmente já havia reservado para aluguel e, a partir daí, passa
a observar pela janela as conseqüências, para a esposa, de sua travessura: “...ele não
retornará enquanto ela não estiver quase morta de medo”, diz o narrador. Passadas
algumas semanas, começa um movimento de carruagens em frente à casa, sendo
uma delas de um médico: “que deposita seu corpanzil solene, coroado por longa
peruca, à porta da casa.” (p.56) e o auto-exilado sente-se compelido a voltar, mas,
surpreendentemente, não o faz: “Havia inventado (ou por outra, sucedera-lhe) de
apartar-se do mundo – desaparecer – abrindo mão de seu lugar e seus privilégios
junto aos vivos, sem com isso ser admitido entre os mortos.” (p.57). Utiliza-se, de
agora em diante, disfarces para seguir de perto os passos da esposa. Diretor e
roteirista do filme de sua vida, no vigésimo ano de seu desaparecimento pára junto à
casa e avista “através das vidraças da sala do segundo andar, o clarão avermelhado e
o bruxuleio e o brilho intermitente de uma aconchegante lareira. No teto se projeta uma
sombra grotesca da boa Sra. Wakefield” . Ele galga os degraus, bate à porta, que se
abre. O narrador termina assim: “Não seguiremos nosso amigo após transpor a
soleira. Ele já nos proporcionou bastante material para reflexão, parte do qual
emprestará sua sabedoria a uma moral e será moldado numa imagem. Em meio à
aparente confusão de nosso mundo misterioso, os indivíduos estão tão bem ajustados
ao sistema e os sistemas entre si e a um todo, que, ao colocar-se à margem por um
instante, o sujeito expõe-se ao temerário risco de perder para sempre seu lugar.”
(p.59).
Vítima de um aparente encantamento, Wakefield enreda-se em uma teia que o
compele a suspender o tempo linear e manipular seu destino. Em meio a
impossibilidades, vê a oportunidade de de-cidir-se para afirmar sua própria liberdade.
Depreende-se, assim, que só houve movimento, ação, durante os vinte anos de
ausência. Até então, fora prisioneiro de uma existência medíocre, pré-determinada.
Como ‘marginal’ que recusa o mesmo, pelo exercício da imaginação, liberou a
inconsciência das amarras do consciente manipulado e manipulável. Experimentou
seu outro, por isso, pôde voltar à casa calmamente – por mais estranho que possa
parecer, depois de vinte anos de ausência – sem culpa. A casa, silenciosos palco do
estertor de uma existência sem perspectivas era, agora, eloqüentemente, um ‘lugar’,
seu lugar. Os olhos de Wakefield foram abertos a partir da audácia que teve para ouvir
de si a urgência de uma mudança.
A experimentação do personagem toma contornos mais interessantes ao
considerarmos que, segundo Borges, Hawthorne teria imaginado o conto a partir de
certa história lida em um jornal : “Hawthorne lera no jornal ou fingiu, com fins literários,
ter lido no jornal, o caso de um senhor inglês que, sem motivo algum, instalou-se a um
passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte anos
escondido...Quando já o davam por morto...um dia, abriu a porta de casa e
entrou...Hawthorne leu com inquietude o curioso caso e procurou entendê-lo...”
(BORGES,1999 , p. 57).
Consideremos dois pontos: primeiro, uma dúvida intencional que Hawthorne atira
ao leitor sobre ser a base de seu conto um fato real. Isto faz-nos pensar que qualquer
indivíduo comum poderia ter agido como Wakefield. Fez de sua ficção espelho do
sentimento interior de insatisfação do homem da época. Segundo, ao buscar o
entendimento do caso, imagina o homem; sonha a realidade. E este sonho, que é o
conto, nos dá de presente.
Em
A invenção da solidão, Paul Auster apresenta o indivíduo como em um
turbilhão. De início, tenta encontrar a saída e, por fim, sucumbe ao inevitável e tornase
um a mais na multidão confusa, e não mais perplexa. A conseqüência é um vazio e
uma profunda solidão, a que ele se acostuma e aprende a ‘ignorar’.
O autor constrói, assim, uma narrativa labiríntica por meio de fragmentos que, no
exercício da escrita, desvelam uma identidade plural para o homem moderno, tecida
num processo contínuo de descobertas. O ponto de partida escolhido pelo escritorpersonagem
para demonstrar este percurso foi a morte do pai: “um homem morrer
sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é um homem, nos
leva para tão perto da fronteira invisível ente a vida e a morte que não sabemos mais
de que lado estamos. A vida se transforma em morte e é como se essa morte tivesse
possuído essa vida o tempo todo. Morte sem aviso. Em outras palavras: a vida pára. E
pode parar a qualquer momento.” (p.11).
Dividido em duas partes, o romance explora, de início, a conclusão a que chega o
protagonista revirando papéis, fotos e cartas antigas – ‘objetos de um morto” (p.17) de
que tudo o que o pai vivera havia sido uma grande construção e o modo de vida
paterno, aparentemente indiferente, escondia, na verdade, o medo do confronto
consigo mesmo. A imagem do pai era como de alguém sob uma máscara, não porque
desejava ocultar-se, mas porque ela mesma era parte dele: “como nada tinha
importância, ele dava a si mesmo a liberdade de fazer o que bem entendesse...Toda
vez que se sentia pressionado quase a ponto de ter de se revelar, meu pai se
esquivava do aperto contando uma mentira...O que os outros viam quando meu pai se
apresentava diante deles, portanto, não era o meu pai, na verdade, mas uma pessoa
que ele tinha inventado...Ele mesmo permanecia invisível.” (p.23). Pluralidade que
anula a ação no mundo. O protagonista continua seu caminho como em uma cidade
de vidro onde várias imagens se sobressaem, mas a espessura do vidro distorce toda
beleza. A decisão de escrever sua história “em vez de me curar, como pensei que
fosse acontecer, o ato de escrever manteve essa ferida aberta. Algumas vezes,
cheguei até a sentir sua dor concentrada na minha mão direita, como se toda vez que
eu pegasse a caneta e pressionasse a ponta sobre o papel minha mão estivesse
sendo arrancada do braço.” (p.41). Este dilaceramento descrito, no entanto, constitui a
única esperança contra o esquecimento e a fuga pela indiferença. A única maneira de
experimentar saídas ainda é evitar a cicatrização da ferida.
Na segunda parte do livro, intitulada
Livro da Memória , o estilo entrecortado,
recortado, é espelho de seu interior. Percebe-se em um processo irreversível, no
caminho de encontrar-se junto a zonas de escuridão. Sua primeira reação é o
isolamento. E, tendo a escrita como aliada para iluminação, Auster retoma a idéia da
história em movimentos cíclicos e, assim, ‘dentro da baleia’, resgata textos bíblicos,
relatos de sobreviventes e vítimas do holocausto, mitos como o de Édipo e descrições
de pinturas como as de Van Gogh. Este caminho é montagem efervescente de
imagens descontínuas – saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Mundo de
cores e formas para onde o protagonista se leva ou leva a história da família, da
humanidade, experimentando as essências da beleza e do sofrimento humanos – “um
mundo em que tudo é duplo, em que a mesma coisa sempre acontece duas vezes.”
(p.95). As recordações vão surgindo espontâneas, perdidas no meio dos
pensamentos. Na memória, as figuras são construídas para depois serem destruídas,
lugar de transformações constantes onde os eventos se desencadeiam de fora para
dentro e vice-versa. A solidão deve ser re-inventada. Auster deixa clara a idéia ao citar
Pascal: “toda infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar
sossegado no seu quarto.” (p.95).
A aceitação das diferentes identidades presentes em cada um assusta, mas pode
levar à consideração das diversas vozes até então silenciadas. Ser plural é admitir a
insegurança que se insiste em combater, mas que pode constituir força que rejeita e
desconstrói estereótipos. Produto de uma crise finissecular, este homem moderno
apresentado por Auster busca um espaço onde a comunicação se origina. Não há
mais lugar para as ‘certezas’. Auster não se limitou a descrever o impacto do sujeito,
mas convoca os indivíduos a se repensarem como seres livres.
Afinal, o intrigante
A muralha e os livros que Borges, no terno retorno de todas as
coisas, assim inicia: “Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase
infinita muralha chinesa foi aquele primeiro imperador, Che-Huang-Ti, que também
mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas operações –
as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição
da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoa e serem de certo modo
seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me.
Indagar as razões dessa emoção é o fato desta nota...” (p.9). A partir daí, como em um
sonho – tal qual Hawthorne – imagina Che-Huang-Ti e seus motivos: “...Che-Huang-Ti
talvez quisesse suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam” (de ter
condenado a mãe ao desterro por libertinagem) “...Pode ser que o Imperador tenha
tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o
primeiro...Talvez a muralha fosse uma metáfora, Talvez Che-Huang- Ti tenha
condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado,
tão néscia e tão inútil...” (p.10). Fazemos aqui uma pausa para sonhar um destaque ao
caráter volátil do passado para Che-Huang-Ti. Enquanto séculos mais tarde, Auster
lutará para que a memória o ajude a não perder referências, o imperador chinês ‘reescreve’
três mil anos de cronologia ao ordenar a queima dos textos antigos,
produzindo, magicamente, o elixir da imortalidade.
Os experimentos literários apresentados garantem a contínua repetição. O
primeiro sonho, o de Hawthorne, acrescentou maior entendimento aos enigmas
humanos que a literatura, desejando ou não decifrar, imprime inegável selo pictórico. O
segundo, o de Auster, ouve pelo espelho da memória seu destino dedáleo, mas repleto
de sublime esperança. No terceiro, o de Borges, é proposto o seguinte, ao final: “A
música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos
crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos
ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não
se produz, é talvez o fato estético.” (p.11).
Nos dias atuais, parece-nos imposta uma cultura de ócio que inibe a
criatividade; tudo nos é dado prontamente. Na projeção inversa dos séculos XIX e XX,
precisaríamos redescobrir o descontentamento que mobiliza. Há necessidade de um
passo além.
Sonhamos agora nosso sonho; sonho onde formas se repetem e algumas delas
nutriram estas páginas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AUSTER, P. A invenção da solidão. SP: Companhia das Letras, 1999.
BORGES, J.L. Obras Completas II. SP: Editora Globo, 1999.
FOULCAULT, M. Ditos e escritos III (org. Manoel Barros da Motta). RJ: Editora Forense,
2006.
NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 2002.
TAVARES B. (org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. RJ: Casa da palavra, 2005.
1 BORGES, J.L.O cego in Obras Completas II – p.510 )
Stella, no texto você faz umas emendas, como um quebra-cabeças e um texto completa o outro.
ResponderExcluirO que me parece há uma falta de liberdade interior que castra os personagens a darem um passo além (como você colocou). Seria isto?
Qual o nome do poema do início do texto?
Bjs,
Elisabeth de A Pinto