quinta-feira, 28 de junho de 2012

food for thought-special


UMA EXPERIMENTAÇÃO PARA A CRISE


Stella Maria Ferreira
(texto publicado na Revista Garrafa-Faculdade de Letras da UFRJ)


“Foi despojado do diverso um

E dos rostos, que são o que eram antes

Das ruas próximas, hoje distantes (...)

Resta dos livros o que lhe consente

A memória, essa forma de olvido

Que retém o formato, não o sentido,

E que reflete os títulos somente.

O desnível espreita. Cada passo

Pode ser uma queda. Sou o lento

Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não marca sua aurora nem seu ocaso.

É noite. Não há outros (...)”

1


A ‘cegueira física’ de Jorge Luis Borges é metáfora para uma cegueira que se

instala em nosso tempo – de esgotamento de experimentações. As redes das

significações caracterizam-se pelas dualidades múltiplo

x fragmentado e pluralidade x


anulação. Uma limitada utilização do sentido da visão, tão privilegiado, levou-nos a

desconsiderar o que poderia estar elíptico e isso fez toda a diferença. Na raiz do que

nos é apresentado, pode haver cálculos errôneos, inversões, falhas de apreciação,

desvios. Ver algo significa ignorar alguma coisa também. Outras opções de percepção

são deixadas de lado. Esta ‘cegueira’ deve ser levada em consideração.

Tomando o século XIX como prefaciador das grandes experimentações que se

instaurariam no século XX, passaremos à verificação dos elementos neutralizadores

deste ímpeto de revolucionar-se observado nos dias de hoje, na chamada pósmodernidade.

Como leitor apaixonado que, no manejo da linha, escolhe a entre-linha,

acompanhamos Heráclito quando diz: “...é à vossa vista curta e não á essência das

coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da

evanescência. Usais o nome das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até

o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira

vez.” ( NIETZSCHE, 2002 , p.40), e desejamos o caminho do diálogo que nos re-situe

nesse espaço disseminado. Espaço que gerou uniformidade e não igualdade; espaço

submerso numa multiplicação de tendências que ao invés de ser experimental, gera

padronização.

Para tanto, tomaremos três textos: o conto

Wakefield de Nathaniel Hawthorne


(1835), o romance

A invenção da solidão de Paul Auster (1988) e o ensaio A muralha e


os livros

de Jorge Luis Borges (1950).


O conto do americano Hawthorne – elogiado por Borges como sendo “um mundo

de castigos enigmáticos e de culpas indecifráveis” (citado em TAVARES, 2005,p.50)

– constitui um exercício de duplicidade do sujeito. Hawthorne apresenta inquietações

que serão explicitadas na proposição nietzschiana de que a verdade estaria onde o

estilo de pensamento disse que ela está. Os disfarces de que o protagonista lança

mão, como elementos estéticos para uma nova identidade, ratificam a idéia de que

todas as nossas orientações são produzidas poeticamente, estruturadas

ficcionalmente. As formas de nosso agir, inclusive o conhecer demonstraram caráter

de produção e, se a realidade é construção, é preciso contar com o surgimento de

mundos muito diferentes. Transferimos um estímulo nervoso para uma imagem, esta

para um som e, finalmente, para um conceito. Através dessas transferências de uma

esfera para outra, as camadas de realidade emergem. Assim, o protagonista que dá

título ao conto, em certa tarde de outubro, despede-se da esposa para uma breve

viagem ao campo, alertando-a que não deve passar de três ou quatro dias.

O narrador, onisciente, o segue e diz: “Devemos apressarmo-nos atrás dele pela

rua, antes que se dissipe sua individualidade e se mescle à grande massa da vida

londrina, onde seria inútil procurá-lo.” (p.52). Fazemos aqui uma pausa no trajeto para

acentuar a apontada insatisfação com a progressiva massificação emanada dos inícios

da Revolução Industrial. Continuamos, agora, com o personagem que adentra um

apartamento que provavelmente já havia reservado para aluguel e, a partir daí, passa

a observar pela janela as conseqüências, para a esposa, de sua travessura: “...ele não

retornará enquanto ela não estiver quase morta de medo”, diz o narrador. Passadas

algumas semanas, começa um movimento de carruagens em frente à casa, sendo

uma delas de um médico: “que deposita seu corpanzil solene, coroado por longa

peruca, à porta da casa.” (p.56) e o auto-exilado sente-se compelido a voltar, mas,

surpreendentemente, não o faz: “Havia inventado (ou por outra, sucedera-lhe) de

apartar-se do mundo – desaparecer – abrindo mão de seu lugar e seus privilégios

junto aos vivos, sem com isso ser admitido entre os mortos.” (p.57). Utiliza-se, de

agora em diante, disfarces para seguir de perto os passos da esposa. Diretor e

roteirista do filme de sua vida, no vigésimo ano de seu desaparecimento pára junto à

casa e avista “através das vidraças da sala do segundo andar, o clarão avermelhado e

o bruxuleio e o brilho intermitente de uma aconchegante lareira. No teto se projeta uma

sombra grotesca da boa Sra. Wakefield” . Ele galga os degraus, bate à porta, que se

abre. O narrador termina assim: “Não seguiremos nosso amigo após transpor a

soleira. Ele já nos proporcionou bastante material para reflexão, parte do qual

emprestará sua sabedoria a uma moral e será moldado numa imagem. Em meio à

aparente confusão de nosso mundo misterioso, os indivíduos estão tão bem ajustados

ao sistema e os sistemas entre si e a um todo, que, ao colocar-se à margem por um

instante, o sujeito expõe-se ao temerário risco de perder para sempre seu lugar.”

(p.59).

Vítima de um aparente encantamento, Wakefield enreda-se em uma teia que o

compele a suspender o tempo linear e manipular seu destino. Em meio a

impossibilidades, vê a oportunidade de de-cidir-se para afirmar sua própria liberdade.

Depreende-se, assim, que só houve movimento, ação, durante os vinte anos de

ausência. Até então, fora prisioneiro de uma existência medíocre, pré-determinada.

Como ‘marginal’ que recusa o mesmo, pelo exercício da imaginação, liberou a

inconsciência das amarras do consciente manipulado e manipulável. Experimentou

seu outro, por isso, pôde voltar à casa calmamente – por mais estranho que possa

parecer, depois de vinte anos de ausência – sem culpa. A casa, silenciosos palco do

estertor de uma existência sem perspectivas era, agora, eloqüentemente, um ‘lugar’,

seu lugar. Os olhos de Wakefield foram abertos a partir da audácia que teve para ouvir

de si a urgência de uma mudança.

A experimentação do personagem toma contornos mais interessantes ao

considerarmos que, segundo Borges, Hawthorne teria imaginado o conto a partir de

certa história lida em um jornal : “Hawthorne lera no jornal ou fingiu, com fins literários,

ter lido no jornal, o caso de um senhor inglês que, sem motivo algum, instalou-se a um

passo de sua casa e aí, sem ninguém suspeitar, passou vinte anos

escondido...Quando já o davam por morto...um dia, abriu a porta de casa e

entrou...Hawthorne leu com inquietude o curioso caso e procurou entendê-lo...”

(BORGES,1999 , p. 57).

Consideremos dois pontos: primeiro, uma dúvida intencional que Hawthorne atira

ao leitor sobre ser a base de seu conto um fato real. Isto faz-nos pensar que qualquer

indivíduo comum poderia ter agido como Wakefield. Fez de sua ficção espelho do

sentimento interior de insatisfação do homem da época. Segundo, ao buscar o

entendimento do caso, imagina o homem; sonha a realidade. E este sonho, que é o

conto, nos dá de presente.

Em

A invenção da solidão, Paul Auster apresenta o indivíduo como em um


turbilhão. De início, tenta encontrar a saída e, por fim, sucumbe ao inevitável e tornase

um a mais na multidão confusa, e não mais perplexa. A conseqüência é um vazio e

uma profunda solidão, a que ele se acostuma e aprende a ‘ignorar’.

O autor constrói, assim, uma narrativa labiríntica por meio de fragmentos que, no

exercício da escrita, desvelam uma identidade plural para o homem moderno, tecida

num processo contínuo de descobertas. O ponto de partida escolhido pelo escritorpersonagem

para demonstrar este percurso foi a morte do pai: “um homem morrer

sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é um homem, nos

leva para tão perto da fronteira invisível ente a vida e a morte que não sabemos mais

de que lado estamos. A vida se transforma em morte e é como se essa morte tivesse

possuído essa vida o tempo todo. Morte sem aviso. Em outras palavras: a vida pára. E

pode parar a qualquer momento.” (p.11).

Dividido em duas partes, o romance explora, de início, a conclusão a que chega o

protagonista revirando papéis, fotos e cartas antigas – ‘objetos de um morto” (p.17) de

que tudo o que o pai vivera havia sido uma grande construção e o modo de vida

paterno, aparentemente indiferente, escondia, na verdade, o medo do confronto

consigo mesmo. A imagem do pai era como de alguém sob uma máscara, não porque

desejava ocultar-se, mas porque ela mesma era parte dele: “como nada tinha

importância, ele dava a si mesmo a liberdade de fazer o que bem entendesse...Toda

vez que se sentia pressionado quase a ponto de ter de se revelar, meu pai se

esquivava do aperto contando uma mentira...O que os outros viam quando meu pai se

apresentava diante deles, portanto, não era o meu pai, na verdade, mas uma pessoa

que ele tinha inventado...Ele mesmo permanecia invisível.” (p.23). Pluralidade que

anula a ação no mundo. O protagonista continua seu caminho como em uma cidade

de vidro onde várias imagens se sobressaem, mas a espessura do vidro distorce toda

beleza. A decisão de escrever sua história “em vez de me curar, como pensei que

fosse acontecer, o ato de escrever manteve essa ferida aberta. Algumas vezes,

cheguei até a sentir sua dor concentrada na minha mão direita, como se toda vez que

eu pegasse a caneta e pressionasse a ponta sobre o papel minha mão estivesse

sendo arrancada do braço.” (p.41). Este dilaceramento descrito, no entanto, constitui a

única esperança contra o esquecimento e a fuga pela indiferença. A única maneira de

experimentar saídas ainda é evitar a cicatrização da ferida.

Na segunda parte do livro, intitulada

Livro da Memória , o estilo entrecortado,


recortado, é espelho de seu interior. Percebe-se em um processo irreversível, no

caminho de encontrar-se junto a zonas de escuridão. Sua primeira reação é o

isolamento. E, tendo a escrita como aliada para iluminação, Auster retoma a idéia da

história em movimentos cíclicos e, assim, ‘dentro da baleia’, resgata textos bíblicos,

relatos de sobreviventes e vítimas do holocausto, mitos como o de Édipo e descrições

de pinturas como as de Van Gogh. Este caminho é montagem efervescente de

imagens descontínuas – saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Mundo de

cores e formas para onde o protagonista se leva ou leva a história da família, da

humanidade, experimentando as essências da beleza e do sofrimento humanos – “um

mundo em que tudo é duplo, em que a mesma coisa sempre acontece duas vezes.”

(p.95). As recordações vão surgindo espontâneas, perdidas no meio dos

pensamentos. Na memória, as figuras são construídas para depois serem destruídas,

lugar de transformações constantes onde os eventos se desencadeiam de fora para

dentro e vice-versa. A solidão deve ser re-inventada. Auster deixa clara a idéia ao citar

Pascal: “toda infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar

sossegado no seu quarto.” (p.95).

A aceitação das diferentes identidades presentes em cada um assusta, mas pode

levar à consideração das diversas vozes até então silenciadas. Ser plural é admitir a

insegurança que se insiste em combater, mas que pode constituir força que rejeita e

desconstrói estereótipos. Produto de uma crise finissecular, este homem moderno

apresentado por Auster busca um espaço onde a comunicação se origina. Não há

mais lugar para as ‘certezas’. Auster não se limitou a descrever o impacto do sujeito,

mas convoca os indivíduos a se repensarem como seres livres.

Afinal, o intrigante

A muralha e os livros que Borges, no terno retorno de todas as


coisas, assim inicia: “Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase

infinita muralha chinesa foi aquele primeiro imperador, Che-Huang-Ti, que também

mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas operações –

as quinhentas a seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição

da história, isto é, do passado – procederem da mesma pessoa e serem de certo modo

seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me.

Indagar as razões dessa emoção é o fato desta nota...” (p.9). A partir daí, como em um

sonho – tal qual Hawthorne – imagina Che-Huang-Ti e seus motivos: “...Che-Huang-Ti

talvez quisesse suprimir os livros canônicos porque estes o acusavam” (de ter

condenado a mãe ao desterro por libertinagem) “...Pode ser que o Imperador tenha

tentado recriar o princípio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o

primeiro...Talvez a muralha fosse uma metáfora, Talvez Che-Huang- Ti tenha

condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado,

tão néscia e tão inútil...” (p.10). Fazemos aqui uma pausa para sonhar um destaque ao

caráter volátil do passado para Che-Huang-Ti. Enquanto séculos mais tarde, Auster

lutará para que a memória o ajude a não perder referências, o imperador chinês ‘reescreve’

três mil anos de cronologia ao ordenar a queima dos textos antigos,

produzindo, magicamente, o elixir da imortalidade.

Os experimentos literários apresentados garantem a contínua repetição. O

primeiro sonho, o de Hawthorne, acrescentou maior entendimento aos enigmas

humanos que a literatura, desejando ou não decifrar, imprime inegável selo pictórico. O

segundo, o de Auster, ouve pelo espelho da memória seu destino dedáleo, mas repleto

de sublime esperança. No terceiro, o de Borges, é proposto o seguinte, ao final: “A

música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos

crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos

ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não

se produz, é talvez o fato estético.” (p.11).

Nos dias atuais, parece-nos imposta uma cultura de ócio que inibe a

criatividade; tudo nos é dado prontamente. Na projeção inversa dos séculos XIX e XX,

precisaríamos redescobrir o descontentamento que mobiliza. Há necessidade de um

passo além.

Sonhamos agora nosso sonho; sonho onde formas se repetem e algumas delas

nutriram estas páginas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


AUSTER, P. A invenção da solidão. SP: Companhia das Letras, 1999.

BORGES, J.L. Obras Completas II. SP: Editora Globo, 1999.

FOULCAULT, M. Ditos e escritos III (org. Manoel Barros da Motta). RJ: Editora Forense,

2006.

NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 2002.

TAVARES B. (org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. RJ: Casa da palavra, 2005.

1 BORGES, J.L.O cego in Obras Completas II – p.510 )

Um comentário:

  1. Stella, no texto você faz umas emendas, como um quebra-cabeças e um texto completa o outro.
    O que me parece há uma falta de liberdade interior que castra os personagens a darem um passo além (como você colocou). Seria isto?
    Qual o nome do poema do início do texto?
    Bjs,
    Elisabeth de A Pinto

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