EM A alma do homem sob o socialismo
Ensaio
publicado em 1890, traz o indivíduo estético combinado a um socialismo à
wildiana: “a verdadeira perfeição do homem consiste, não no que tem, mas no que
é. A propriedade privada esmagou o verdadeiro individualismo, substituindo-o
por um individualismo falso(...) E, com efeito, pode-se dizer que a
personalidade do homem ficou tão totalmente absorvida pelo que possui, que a
lei inglesa castigou sempre com muito mais severidade os delitos contra a
propriedade privada que os delitos contra as pessoas(...)” (WILDE, 2003,p.
1169). O tom de denúncia do profeta da contradição remete às ações políticas
executadas pela mãe-poeta, Speranza. A crítica ao feitiço pela propriedade
constituía preocupação. Daí ressaltar a importante função dos agitadores (já
apontada por Nietzsche em A gaia ciência).
Contra toda autoridade e ordem estabelecida, estes, sonhadores por natureza,
portadores da paz evitariam a completa absorção do que há dentro de cada
indivíduo: “A única coisa que se possui é aquilo que cada um leva consigo. Tudo
quanto está fora de um homem não deveria ter importância nenhuma.” (WILDE,
2003,p.1170). Acreditava que as pessoas
sabiam o preço de tudo e o valor de nada. Mais uma vez, ante-visões do destino
esperado: “mesmo em um cárcere pode um homem ser absolutamente livre. Sua alma
pode ser livre e sua personalidade permanecer em equilíbrio perfeito. Seu espírito pode
sentir-se em paz consigo mesmo.” (WILDE, 2003,p. 1173) – reconhecidamente já
ouvido de John Ruskin em seu On art and
life: “men may be beaten, chained, tormented, yoked like cattle, slaughtered
like Summer flies, and yet remain in one sense, and the best sense, free.”
. Devia-se esperar o inesperado – esse
seria o espírito moderno. A alma do homem ‘submetida alegremente’ a um sistema
social que lhe garantisse liberdade para a potência criadora era o objetivo
(comenta L.F. Choisy em seu Oscar Wilde
que a geração do ano 2000 talvez se admirasse com a perspicácia desse apóstolo
do individualismo ).
Tendo
nascido em um período de grande expansão industrial, sua geração viu a
Grã-Bretanha se tornar a primeira sociedade predominantemente urbanizada do
mundo. Entretanto, a emergência dos subúrbios, a criação de novos produtos e o
início da disseminação da cultura de massa não evitou a sequência de
contradições que se seguiu. A insatisfação era também resultado de eventos
internacionais como a supressão da Comuna de Paris e o Domingo Sangrento.
Assim, por volta de 1880 e 1890, o art
nouveau, a decadência e o individualismo estético se apresentaram como um
distinto fenômeno social que almejava produzir uma radical mudança nas
tradicionais bases sociais e culturais da Inglaterra.
O ‘socialismo
wildiano’ prega que a igualdade de oportunidades é pré-condição para um mundo
livre da intolerância social, da opressão, de pensamentos ou comportamentos
convencionais. A humanidade, liberada da necessidade, estaria livre para
experimentar o belo; a máquina do Estado deveria garantir o suficiente para que
o indivíduo se sentisse livre para essa experiência. Daí sua personalidade se
revelaria por completo.Cada indivíduo tem temperamento e gostos únicos que
devem florescer de acordo com as leis de seu próprio ser. E isto inclui,
também, a contemplação, a quietude.
As teorias socialistas da época não atraíam o esteta
porque, segundo ele, ainda encontravam-se atingidas por princípios de
autoridade. Toda associação deveria ser voluntária. Seu personagem Gilberto em O crítico como artista afirma: “A ação é
sempre fácil e, quando se nos apresenta sob sua forma mais grave, por ser a
mais contínua, isto é, sob a do trabalho real, converte-se simplesmente no
refúgio das pessoas que não têm absolutamente nada o que fazer(...).É uma coisa
essencialmente incompleta, uma vez que está limitada pelo acaso e ignora sua
direção e está sempre em desacordo com sua finalidade. Sua base é a falta de
imaginação(...)” (WILDE, 2003,p.1125). A maioria dos homens tem deteriorado sua
vida num esforço inoperante para remediar a indigência. A verdadeira sensatez
consistiria em reconstruir a sociedade sobre uma base que tornasse o pauperismo
impossível.
O trabalho de Wilde consiste em
experimentos do pensamento acerca dos limites sociais atuando sobre a autonomia
estética. Aproxima-se do proferido por Nietzsche no aforismo 285 de Humano demasiado humano:
“(...)Por falta de
sossego, nossa civilização corre para uma nova barbárie. Em nenhuma época, os
homens de ação, ou seja, os irrequietos, foram mais estimados. Reforçar em
grande medida o elemento contemplativo faz parte, por conseguinte, das
necessárias correções que devem ser realizadas no caráter da humanidade(...).
E ainda em A gaia ciência, aforismo 329:
“(...)Neste ritmo
as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que não se ousará mais ceder, sem
desprezo por si próprio e sem experimentar remorso ao gosto da vida
contemplativa, ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos.
Pois, antigamente, a maneira era inversa: era o trabalho que sofria de má
consciência(...)” .
Para Wilde seria algo
maravilhoso ver a verdadeira personalidade humana, isto é, a que crescerá
naturalmente, que “nunca se encontrará em desacordo. Nunca argumentará, nem
disputará. Não quererá demonstrar coisa alguma(...).Seu valor não se medirá por
meio de coisas materiais. Não terá nada e, não obstante, possuirá tudo, tão
rica será(...).”(WILDE,2003,p.1171). Assim, o individualismo apresenta-se como
o fim a ser alcançado a partir do socialismo. Quando o indivíduo puder viver sem coagir o
outro, nem a si mesmo, estará em harmonia, as atividades serão gratuito
deleite, o que fará dele um ser mais vigoroso, mais sadio, mais ele mesmo: “(...)há
muitos outros homens que, carecendo de qualquer propriedade pessoal, e
achando-se sempre, por assim dizer, à beira do abismo da fome, vêem-se forçados
a trabalhar como bestas... Sua força coletiva é muito útil à prosperidade
material da Humanidade...Mas esta utilidade é meramente material e o homem
carece de toda importância. Não é mais do que o átomo infinitesimal de uma
força que, longe de tê-lo em conta, o esmaga(...)” (WILDE, 2003,p.1166). A
paralisia provocada pela ação desmedida sufoca o sonho, e, conseqüentemente,
submete a imaginação: “(...)Verdade é que, nas condições presentes, reduzido
número de homens que dispunha de meios de existência próprios, como Byron,
Shelley, Vítor Hugo, Baudelaire e outros, pôde realizar, mais ou menos
completamente, sua personalidade(...)” (WILDE, 2003,p.1169). Aqui, mais uma vez
elege e combina seus textos-tutores (termo cunhado pelo Prof. Luiz Edmundo
Bouças Coutinho) para dizer:
A natural
‘autoridade’ exercida sobre si mesmo extinguiria da sociedade o castigo. Para
Wilde, quanto maior a edição de brutos castigos, mais crimes parecem ser
cometidos. Completa dizendo que: “a fome, e não o pecado, é que engendra o
crime moderno(...)” (WILDE, 2003,p.1175). Fome de realização pessoal e não de
pão: “O Estado tem por objeto fazer o que é útil; o indivíduo, fazer o que é
belo(...)” (WILDE, 2003,p.1176). Enquanto o conflito estiver instaurado, o que
poderia ser feliz destino estará ameaçado: “A forma mais vantajosa para o
artista é a ausência total de governo(...)” (WILDE, 2003,p.1187). Sentido
dúbio: governo entendido apenas como um sistema político primariamente
instituído para o bem do povo; governo visto de maneira mais ampla como
controle, repressão da loucura a que todos são chamados a experimentar para uma
vida plena: “(...)Viver-se-á. E viver é a coisa mais rara que há no mundo.
Porque a maioria dos homens existe, nada mais(...)” (WILDE, 2003,p.1170). A
maquinaria cessará de empobrecer o homem e o servirá; ela fará o trabalho
indispensável, enquanto a humanidade se divertirá. Reitera mais uma vez sua
aversão às leis em A Duquesa de Pádua,
sua segunda peça, datada de 1882, quando do regresso dos Estados Unidos da
América:
“A mim não me
agrada nenhuma sentença. Se não houvesse leis, não poderiam ser violadas, de
modo que todos os homens seriam virtuosos(...)”.
Pensamento que
justificará mais tarde suas opiniões sobre as prisões inglesas. As leis e as
punições visavam uma ‘correção’ que levasse o indivíduo à reproduzir o
comportamento tido como legal.
Romântico, cínico, sentimental e satírico, Wilde ressalta
em seu texto que os modos científicos de entendimento, essa ‘objetividade’,
estava levando à opressão . A idéia de que um imperador ou um rei se baixaria
para pegar o pincel de um pintor, mas a democracia quando se abaixa é só para
lançar lama ilustra o pensamento de que
seria fácil simpatizar com as penas , mas é preciso nobreza para se alegrar com
o sucesso. A renúncia de si mesmo interrompe o progresso. Não se deve procurar
o sofrimento ou o prazer, e sim, simplesmente viver com toda intensidade e
plenitude. O indivíduo que se disfarçava com o capote da moral tornava-se um
animal enfermo, mutilado, domesticado; já o animal de presa, almejado pelos
artistas não julgava necessário disfarçar sua ferocidade. O
homem de ação recolhe os sufrágios da sociedade, já o sonhador, escudado pela
arte, recolhe plena harmonia em dobras largas e majestosas, fortes e
embriagadores perfumes que duram eternamente (enquanto os efeitos da natureza
são passageiros).
O artista brinca com
as idéias a fim de aumentar a alegria, liberar os oprimidos e alargar a
simpatia entre os indivíduos; coloca entre o indivíduo e a realidade a cortina
do belo estilo e da visão decorativa. Diz Jorge Luis Borges em Enquetes, de 1946, citado por Julian:
“By reading and re-reading Wilde in the course of the
years, I have
noticed a fact which his panegyrists seem not to have
suspected: the simple , easy-to-verify fact that Wilde was nearly always right.
‘The soul of man under socialism’ is not only eloquent but fair(...).He offered
to the age that which it carved, emotional comedies for the many, verbal
arabesques for the few, and he accomplished these dissimilar tasks with a kind
of careless happiness...Wilde, a man who despite being used to evil and
misfortune, retained an invulnerable innocence.”
Oscar
Wilde foi feliz ao fazer uma parada em Utopia, discursar, e partir novamente,
incansável, insaciável. O destino final não era atracar em Utopia, mas repetir
o trajeto até ela quantas vezes fosse possível. A liberdade estaria aí:
caminhar sempre e nunca se satisfazer com um ponto final.Tinha para si que se
poderia passar anos sem viver realmente e então, de repente, toda a vida vir
concentrada numa feliz e única hora. Esta hora era a sua, matematicamente
ajustada para obter a beleza como resultado. Nenhum governo, de tipo algum,
poderia ditar ao artista o que fazer porque se assim fosse, a Arte se esvairia
ou ainda se degenaria em uma forma ignóbil de pretensa criação. Diz ele em O crítico como artista:
“A Inglaterra
nunca será civilizada, enquanto não anexar em seus
domínios a Utopia.
Poderia trocar vantajosamente alguma de suas
colônias por tão
formosa terra. Precisamos de pessoas não práticas
que vejam mais
além do momento e pensem mais além da
época(...)”
A alma do homem sob o socialismo
permanece como realce da veia revolucionária irlandesa herdada de Speranza e
por ele ornamentada para o culto da Beleza. Uma sociedade bela só poderia
existir sob moldes propícios para o desenvolvimento total de cada um, para que
assim, a personalidade dos outros fosse melhor entendida e a convivência social
fosse algo mais do que apenas tolerável. O dinamismo da vontade – conseqüência
natural – traria novas e belas
revelações de tudo o que se poderia ainda ser. A linguagem utilizada tem a
força do revolucionário .
Wilde deve ter mesmo sacudido as bases conservadoras da época em que viveu. Tinha um socialismo próprio baseado principalmente na plena realização da pessoa humana, em sua inteira liberdade.
ResponderExcluirEstou aprendendo muito com seus textos. Obrigada
Bjs
Elisabeth