quarta-feira, 20 de junho de 2012

Wilde VIII


                 EM A alma do homem sob o socialismo

                                           (da tese)

         Ensaio publicado em 1890, traz o indivíduo estético combinado a um socialismo à wildiana: “a verdadeira perfeição do homem consiste, não no que tem, mas no que é. A propriedade privada esmagou o verdadeiro individualismo, substituindo-o por um individualismo falso(...) E, com efeito, pode-se dizer que a personalidade do homem ficou tão totalmente absorvida pelo que possui, que a lei inglesa castigou sempre com muito mais severidade os delitos contra a propriedade privada que os delitos contra as pessoas(...)” (WILDE, 2003,p. 1169). O tom de denúncia do profeta da contradição remete às ações políticas executadas pela mãe-poeta, Speranza. A crítica ao feitiço pela propriedade constituía preocupação. Daí ressaltar a importante função dos agitadores (já apontada por Nietzsche em A gaia ciência). Contra toda autoridade e ordem estabelecida, estes, sonhadores por natureza, portadores da paz evitariam a completa absorção do que há dentro de cada indivíduo: “A única coisa que se possui é aquilo que cada um leva consigo. Tudo quanto está fora de um homem não deveria ter importância nenhuma.” (WILDE, 2003,p.1170).  Acreditava que as pessoas sabiam o preço de tudo e o valor de nada. Mais uma vez, ante-visões do destino esperado: “mesmo em um cárcere pode um homem ser absolutamente livre. Sua alma pode ser livre e sua personalidade permanecer em equilíbrio perfeito. Seu espírito pode sentir-se em paz consigo mesmo.” (WILDE, 2003,p. 1173) – reconhecidamente já ouvido de John Ruskin em seu On art and life: “men may be beaten, chained, tormented, yoked like cattle, slaughtered like Summer flies, and yet remain in one sense, and the best sense, free.” . Devia-se esperar o inesperado – esse seria o espírito moderno. A alma do homem ‘submetida alegremente’ a um sistema social que lhe garantisse liberdade para a potência criadora era o objetivo (comenta L.F. Choisy em seu Oscar Wilde que a geração do ano 2000 talvez se admirasse com a perspicácia desse apóstolo do individualismo ).

         Tendo nascido em um período de grande expansão industrial, sua geração viu a Grã-Bretanha se tornar a primeira sociedade predominantemente urbanizada do mundo. Entretanto, a emergência dos subúrbios, a criação de novos produtos e o início da disseminação da cultura de massa não evitou a sequência de contradições que se seguiu. A insatisfação era também resultado de eventos internacionais como a supressão da Comuna de Paris e o Domingo Sangrento. Assim, por volta de 1880 e 1890, o art nouveau, a decadência e o individualismo estético se apresentaram como um distinto fenômeno social que almejava produzir uma radical mudança nas tradicionais bases sociais e culturais da Inglaterra.

O ‘socialismo wildiano’ prega que a igualdade de oportunidades é pré-condição para um mundo livre da intolerância social, da opressão, de pensamentos ou comportamentos convencionais. A humanidade, liberada da necessidade, estaria livre para experimentar o belo; a máquina do Estado deveria garantir o suficiente para que o indivíduo se sentisse livre para essa experiência. Daí sua personalidade se revelaria por completo.Cada indivíduo tem temperamento e gostos únicos que devem florescer de acordo com as leis de seu próprio ser. E isto inclui, também, a contemplação, a quietude.

         As teorias socialistas da época não atraíam o esteta porque, segundo ele, ainda encontravam-se atingidas por princípios de autoridade. Toda associação deveria ser voluntária. Seu personagem Gilberto em O crítico como artista afirma: “A ação é sempre fácil e, quando se nos apresenta sob sua forma mais grave, por ser a mais contínua, isto é, sob a do trabalho real, converte-se simplesmente no refúgio das pessoas que não têm absolutamente nada o que fazer(...).É uma coisa essencialmente incompleta, uma vez que está limitada pelo acaso e ignora sua direção e está sempre em desacordo com sua finalidade. Sua base é a falta de imaginação(...)” (WILDE, 2003,p.1125). A maioria dos homens tem deteriorado sua vida num esforço inoperante para remediar a indigência. A verdadeira sensatez consistiria em reconstruir a sociedade sobre uma base que tornasse o pauperismo impossível.

         O trabalho de Wilde consiste em experimentos do pensamento acerca dos limites sociais atuando sobre a autonomia estética. Aproxima-se do proferido por Nietzsche no aforismo 285 de Humano demasiado humano:



“(...)Por falta de sossego, nossa civilização corre para uma nova barbárie. Em nenhuma época, os homens de ação, ou seja, os irrequietos, foram mais estimados. Reforçar em grande medida o elemento contemplativo faz parte, por conseguinte, das necessárias correções que devem ser realizadas no caráter da humanidade(...).



E ainda em A gaia ciência, aforismo 329:



“(...)Neste ritmo as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que não se ousará mais ceder, sem desprezo por si próprio e sem experimentar remorso ao gosto da vida contemplativa, ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos. Pois, antigamente, a maneira era inversa: era o trabalho que sofria de má consciência(...)” .



Para Wilde seria algo maravilhoso ver a verdadeira personalidade humana, isto é, a que crescerá naturalmente, que “nunca se encontrará em desacordo. Nunca argumentará, nem disputará. Não quererá demonstrar coisa alguma(...).Seu valor não se medirá por meio de coisas materiais. Não terá nada e, não obstante, possuirá tudo, tão rica será(...).”(WILDE,2003,p.1171). Assim, o individualismo apresenta-se como o fim a ser alcançado a partir do socialismo.  Quando o indivíduo puder viver sem coagir o outro, nem a si mesmo, estará em harmonia, as atividades serão gratuito deleite, o que fará dele um ser mais vigoroso, mais sadio, mais ele mesmo: “(...)há muitos outros homens que, carecendo de qualquer propriedade pessoal, e achando-se sempre, por assim dizer, à beira do abismo da fome, vêem-se forçados a trabalhar como bestas... Sua força coletiva é muito útil à prosperidade material da Humanidade...Mas esta utilidade é meramente material e o homem carece de toda importância. Não é mais do que o átomo infinitesimal de uma força que, longe de tê-lo em conta, o esmaga(...)” (WILDE, 2003,p.1166). A paralisia provocada pela ação desmedida sufoca o sonho, e, conseqüentemente, submete a imaginação: “(...)Verdade é que, nas condições presentes, reduzido número de homens que dispunha de meios de existência próprios, como Byron, Shelley, Vítor Hugo, Baudelaire e outros, pôde realizar, mais ou menos completamente, sua personalidade(...)” (WILDE, 2003,p.1169). Aqui, mais uma vez elege e combina seus textos-tutores (termo cunhado pelo Prof. Luiz Edmundo Bouças Coutinho) para dizer:


A natural ‘autoridade’ exercida sobre si mesmo extinguiria da sociedade o castigo. Para Wilde, quanto maior a edição de brutos castigos, mais crimes parecem ser cometidos. Completa dizendo que: “a fome, e não o pecado, é que engendra o crime moderno(...)” (WILDE, 2003,p.1175). Fome de realização pessoal e não de pão: “O Estado tem por objeto fazer o que é útil; o indivíduo, fazer o que é belo(...)” (WILDE, 2003,p.1176). Enquanto o conflito estiver instaurado, o que poderia ser feliz destino estará ameaçado: “A forma mais vantajosa para o artista é a ausência total de governo(...)” (WILDE, 2003,p.1187). Sentido dúbio: governo entendido apenas como um sistema político primariamente instituído para o bem do povo; governo visto de maneira mais ampla como controle, repressão da loucura a que todos são chamados a experimentar para uma vida plena: “(...)Viver-se-á. E viver é a coisa mais rara que há no mundo. Porque a maioria dos homens existe, nada mais(...)” (WILDE, 2003,p.1170). A maquinaria cessará de empobrecer o homem e o servirá; ela fará o trabalho indispensável, enquanto a humanidade se divertirá. Reitera mais uma vez sua aversão às leis em A Duquesa de Pádua, sua segunda peça, datada de 1882, quando do regresso dos Estados Unidos da América:



“A mim não me agrada nenhuma sentença. Se não houvesse leis, não poderiam ser violadas, de modo que todos os homens seriam virtuosos(...)”.

                           

Pensamento que justificará mais tarde suas opiniões sobre as prisões inglesas. As leis e as punições visavam uma ‘correção’ que levasse o indivíduo à reproduzir o comportamento tido como legal.                       

Romântico, cínico, sentimental e satírico, Wilde ressalta em seu texto que os modos científicos de entendimento, essa ‘objetividade’, estava levando à opressão . A idéia de que um imperador ou um rei se baixaria para pegar o pincel de um pintor, mas a democracia quando se abaixa é só para lançar lama ilustra  o pensamento de que seria fácil simpatizar com as penas , mas é preciso nobreza para se alegrar com o sucesso. A renúncia de si mesmo interrompe o progresso. Não se deve procurar o sofrimento ou o prazer, e sim, simplesmente viver com toda intensidade e plenitude. O indivíduo que se disfarçava com o capote da moral tornava-se um animal enfermo, mutilado, domesticado; já o animal de presa, almejado pelos artistas não julgava necessário disfarçar sua ferocidade. O homem de ação recolhe os sufrágios da sociedade, já o sonhador, escudado pela arte, recolhe plena harmonia em dobras largas e majestosas, fortes e embriagadores perfumes que duram eternamente (enquanto os efeitos da natureza são passageiros).

O artista brinca com as idéias a fim de aumentar a alegria, liberar os oprimidos e alargar a simpatia entre os indivíduos; coloca entre o indivíduo e a realidade a cortina do belo estilo e da visão decorativa. Diz Jorge Luis Borges em Enquetes, de 1946, citado por Julian:




“By reading and re-reading Wilde in the course of the years, I have

noticed a fact which his panegyrists seem not to have suspected: the simple , easy-to-verify fact that Wilde was nearly always right. ‘The soul of man under socialism’ is not only eloquent but fair(...).He offered to the age that which it carved, emotional comedies for the many, verbal arabesques for the few, and he accomplished these dissimilar tasks with a kind of careless happiness...Wilde, a man who despite being used to evil and misfortune, retained an invulnerable innocence.”

                                              

         Oscar Wilde foi feliz ao fazer uma parada em Utopia, discursar, e partir novamente, incansável, insaciável. O destino final não era atracar em Utopia, mas repetir o trajeto até ela quantas vezes fosse possível. A liberdade estaria aí: caminhar sempre e nunca se satisfazer com um ponto final.Tinha para si que se poderia passar anos sem viver realmente e então, de repente, toda a vida vir concentrada numa feliz e única hora. Esta hora era a sua, matematicamente ajustada para obter a beleza como resultado. Nenhum governo, de tipo algum, poderia ditar ao artista o que fazer porque se assim fosse, a Arte se esvairia ou ainda se degenaria em uma forma ignóbil de pretensa criação. Diz ele em O crítico como artista:



“A Inglaterra nunca será civilizada, enquanto não anexar em seus

domínios a Utopia. Poderia trocar vantajosamente alguma de suas

colônias por tão formosa terra. Precisamos de pessoas não práticas             

que vejam mais além do momento e  pensem mais além da época(...)”

                                        

         A alma do homem sob o socialismo permanece como realce da veia revolucionária irlandesa herdada de Speranza e por ele ornamentada para o culto da Beleza. Uma sociedade bela só poderia existir sob moldes propícios para o desenvolvimento total de cada um, para que assim, a personalidade dos outros fosse melhor entendida e a convivência social fosse algo mais do que apenas tolerável. O dinamismo da vontade – conseqüência natural – traria  novas e belas revelações de tudo o que se poderia ainda ser. A linguagem utilizada tem a força do revolucionário .

Um comentário:

  1. Wilde deve ter mesmo sacudido as bases conservadoras da época em que viveu. Tinha um socialismo próprio baseado principalmente na plena realização da pessoa humana, em sua inteira liberdade.
    Estou aprendendo muito com seus textos. Obrigada
    Bjs
    Elisabeth

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