sábado, 9 de junho de 2012

Wilde IV




          a prosa poética O discípulo
                      
                                    ( PARTE DE MINHA TESE )

        

         A concepção das histórias, dos poemas em prosa surgia de jantares e encontros com amigos. Na biblioteca, após a refeição com dúzias de convidados à sua volta, um espelho, um retrato ou pintura curiosa sob a luz , levava o escritor a recitais .O desenrolar das histórias, assim como seu desfecho, dependia da recepção e atenção dos ouvintes. As pausas para suspense eram frequentes e a audiência exigia com os olhos brilhantes algo inusitado vindo de Wilde. O sucesso era tão certo que os convivas tinham-no como principal atração, tamanho fascínio que seus relatos provocavam. A satisfação de Wilde era tanta que se deleitava em modificar de quando em vez algum detalhe para que uma enorme diferença se operasse e, mais uma vez, o encanto se produzisse fortemente. Modela e maneja os meios de expressão como jóias raras, sendo o que se segue um exemplo, publicado em 1894.

         A re-leitura do mito narcísico toma formas inusitadas nas mãos do esteta. O jovem não é mais o protagonista isolado da tragédia. O domínio do sentido da visão, tão caro à tradição, é mais uma vez desconstruído (já o fora em Salomé).  O que se vê também está sujeito a inevitáveis interpretações para re-atualização do momento mítico. Se o mito fosse identificado como fonte de conhecimento porque, como os sonhos, estaria vinculado ao inconsciente, a mensagem de Wilde inquieta.  A única cor mencionada é o verde dos cabelos das belas Oréades, figuras fantasiosas que apiedando-se do choroso lago, soltam as madeixas para consolá-lo. Ora, o verde já anunciaria ao leitor a iminente revolução que se instalara. Confrontamo-nos com o Caos que determina uma nova criação. Esta operação, mediada pela Arte – sempre - revela um pacto com a magia que levará o lago a ultrapassar o limiar de sua origem. Comenta Nietzsche no aforismo 515 de Humano demasiado humano que o absurdo de uma coisa não é uma razão contra sua existência, é antes  uma condição dela. Wilde desafia mais uma vez o leitor a desacreditar-se de tudo o que parece óbvio. Nossa existência depende de admitirmos a ficção em nossas noções habituais . A escolha do tema por Wilde não foi casual. Parecendo decalcar o mito, revela (será?) ao leitor o ‘real’ discípulo.

         Perguntado pelas Oréades,após a morte de Narciso, se sofria, o lago afirma que só tivera no jovem fonte para a observação de sua própria beleza. O leitor é, então precipitado na dupla face que ecoa no poema. A tristeza decorria do fato de não poder mais mirar-se em seus olhos. Todos os sentidos humanos podem ser enganadores se privilegiados em separado. E especialmente a visão, considerado sentido não enganador. O estranhamento causado pela pergunta traz, embutido, um sutil toque de ironia, que abre uma brecha de cumplicidade com o leitor, ao desestabilizá-lo.

         O pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti penetra no bosque ‘Entre-dois-mundos’ em seu poema Sudden Light, de 1870, encontrando lagos que dão acesso a milhares de outros mundos. Poderíamos imaginar ser este um deles – já que a influência em Wilde deste grupo de escritores foi flagrante . No contato com o espelho de suas águas, Narciso deixa o mundo em que vivia, para mergulhar num sonho de paixão. E, surpreendentemente, o próprio lago experimenta uma viagem de transformação a partir da ausência de Narciso. A doçura do lago se esvai sendo substituída pelo sal da dor, pois a dependência que o lago, objeto amante e amado, tinha, opera uma mutação. A mudança de natureza é, assim, sua morte também. O sal de suas lágrimas reanimará uma nova vida: ‘realidade’ desfeita e refeita; nada é perdido. No reverso singular da evolução natural, um novo ecossistema lacustre se apresenta. Wilde, por assim dizer, ‘humaniza’ o mito. O protagonista não é mais só Narciso, um ser dotado de beleza incomparável, mas um lago que mergulhando e mergulhado em sua própria imagem não é mais o mesmo .

O espelho das límpidas águas do lago; o espelho dos olhos de Narciso: a mesma imagem gerando resultados diferentes. O que Narciso julgava ver era a imagem de outrem; alguém de quem se enamorou. Reflexo inverso de Dorian que se apaixonou pela eterna jovialidade de sua imagem. Diferentemente do lago que apreciava ver a si e tinha nos olhos de Narciso uma fonte de deleite constante. Com a morte do jovem, para sobreviver, transfigurou-se.  A linguagem expõe-se à emergência do inconsciente – onde tudo é possível.

          A força e a importância da aparência retiram de cena o ‘herói’ e fazem aquele que seria o co-adjuvante ascender. A paixão de Narciso por si mesmo fez com que desistisse da vida. O lago, ao contrário, tinha tamanho amor, que a intensidade da dor permitiu-lhe a modificação para ainda ter a chance de conviver com o objeto de sua paixão.

Wilde abusa de repetições para mais uma vez nos fazer crer que desejaria que seu texto fosse lido com os ouvidos. Sobre isto comenta em O crítico como artista:



“Os gregos consideravam a arte de escrever como simplesmente um meio de contar. Sua prova era sempre a palavra falada em suas relações musicais e métricas(...)” p.224



 Curto, surpreende pela objetividade das palavras. O lago não precisava de mais palavras para transmitir sua ‘tragédia’, as Óréades, silenciosas, partilharam de imediato sua dor. E a nós, leitores, deixa sufocado implicitamente um soluço.  

Texto-discípulo de vários deuses - do deus das metamorfoses, a quem tudo era permitido, do deus da magia e da palavra, Hermes, e do deus da plástica, Dionísio - o poema é emblema da possibilidade do improvável, idéia que transita pela corrente da escrita wildiana sem parar. Na tela da página, ‘atirou’ sem parar tintas fortes, aparentemente destoantes, asfixiantes, que exigiam do leitor, presença. E ainda, o lago como discípulo, aparente reverenciador do rapaz, era mestre e submetia Narciso. A bela aparência deste que se torna um mundo de sonhos tem a marca da mentira que alivia a dor das contradições de um real caracterizado por fatos. Escrito pouco antes da tragédia que se abateria sobre Wilde, a bela mensagem de O discípulo é a da superação a que todo indivíduo é chamado antes mesmo que seja arrebatado ao mar de sofrimentos.

         Escrito por volta de 1894, carrega o pressentimento da dolorosa fase que viria e, ao mesmo, tempo, enuncia uma cintilante retomada. O conhecimento da dor que duraria uma vida inteira fora modelado em novo gozo. O ciúme da beleza de Narciso gerou o oráculo de sua morte caso se olhasse, tomando, assim, consciência da sua  semelhança com a perfeição da divindade. Narciso, atraído ao lago pela força competidora dos deuses, como Dorian Gray, ao apaixonar-se por si mesmo, morre. Mortes diversas: a de um, física; a do outro, da consciência. Narciso não escapa ao destino imposto pelos oráculos. Porque de alguma forma se deixa controlar. O lago faz seu destino, acredita, e suas lágrimas conseguem o inimaginável. Wilde dá a ele, no entanto, um tom de ignorância da força que representou a passagem pela dor e a resistência em sucumbir. Quando o desejo voa nas asas do inconsciente, quando seu idealizador não procura uma lógica para atingir a meta, tudo pode acontecer, tudo pode ser revertido. Loucura? Concordemos com o absurdo. Aprendemos com Wilde  que,como Nietzsche destaca, de um livro louco,  a razão só pode evoluir para o absurdo. A prudência se despede; o excesso toma o seu lugar. O simulacro não é mais subterrâneo, tornou-se manifesto e faz de O discípulo, texto que cativa também pelo indizível. À procura por novos discípulos,  desnudados do esperado e amantes do inesperado, prontos para a liberação dos duplos. O convite de Wilde é para que, margeando o lago, abracemos de sua superfície  desdobramentos para o corpo. A mensagem cifrada  convida ainda para o espanto; para o espanto como habitação. O leitor se sente impelido a repetir o mito, garantindo-lhe a permanência. Wilde esteve, como seus escritos mostram até hoje, aberto a re-elaborações, variantes versões que circulariam como anéis, marcas de reconhecimento daqueles que aceitaram o labirinto.

2 comentários:

  1. Lindo, lindo texto Stella. Muito bem contextualizado em sua tese.
    À mim transmite a mensagem da impermanência de todas as coisas. Tudo nesta vida se transforma e sempre se transformará.
    Entendo o por que de Wilde ter desejado que seus textos fossem lidos com os ouvidos, pois a visão não alcança a verdade dos fatos (as aparências enganam). Adorei.
    Bjs, e boa noite,
    Elisabeth de Abreu Pinto

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É isso mesmo, Elisabeth.Há que se considerar sempre o ponto de vista do outro. Os sentidos devem trabalhar em conjunto em nós. Obrigada pelo belo comentário. Até.

      Excluir

Qual sua personagem favorita? II

O Rouxinol... O Rouxinol e a Rosa é um adorável conto infantil do querido Oscar Wilde. O pássaro tão cantado pelos poetas personifica um ve...