a prosa poética O discípulo
( PARTE DE MINHA TESE )
A
concepção das histórias, dos poemas em prosa surgia de jantares e encontros com
amigos. Na biblioteca, após a refeição com dúzias de convidados à sua volta, um
espelho, um retrato ou pintura curiosa sob a luz , levava o escritor a recitais
.O desenrolar das histórias, assim como seu desfecho, dependia da recepção e
atenção dos ouvintes. As pausas para suspense eram frequentes e a audiência
exigia com os olhos brilhantes algo inusitado vindo de Wilde. O sucesso era tão
certo que os convivas tinham-no como principal atração, tamanho fascínio que
seus relatos provocavam. A satisfação de Wilde era tanta que se deleitava em
modificar de quando em vez algum detalhe para que uma enorme diferença se
operasse e, mais uma vez, o encanto se produzisse fortemente. Modela e maneja
os meios de expressão como jóias raras, sendo o que se segue um exemplo,
publicado em 1894.
A
re-leitura do mito narcísico toma formas inusitadas nas mãos do esteta. O jovem
não é mais o protagonista isolado da tragédia. O domínio do sentido da visão,
tão caro à tradição, é mais uma vez desconstruído (já o fora em Salomé). O que se vê também está sujeito a inevitáveis
interpretações para re-atualização do momento mítico. Se o mito fosse
identificado como fonte de conhecimento porque, como os sonhos, estaria
vinculado ao inconsciente, a mensagem de Wilde inquieta. A única cor mencionada é o verde dos cabelos
das belas Oréades, figuras fantasiosas que apiedando-se do choroso lago, soltam
as madeixas para consolá-lo. Ora, o verde já anunciaria ao leitor a iminente
revolução que se instalara. Confrontamo-nos com o Caos que determina uma nova
criação. Esta operação, mediada pela Arte – sempre - revela um pacto com a
magia que levará o lago a ultrapassar o limiar de sua origem. Comenta Nietzsche
no aforismo 515 de Humano demasiado
humano que o absurdo de uma coisa não é uma razão contra sua existência, é
antes uma condição dela. Wilde desafia
mais uma vez o leitor a desacreditar-se de tudo o que parece óbvio. Nossa
existência depende de admitirmos a ficção em nossas noções habituais . A
escolha do tema por Wilde não foi casual. Parecendo decalcar o mito, revela
(será?) ao leitor o ‘real’ discípulo.
Perguntado pelas Oréades,após a morte de
Narciso, se sofria, o lago afirma que só tivera no jovem fonte para a
observação de sua própria beleza. O leitor é, então precipitado na dupla face
que ecoa no poema. A tristeza decorria do fato de não poder mais mirar-se em
seus olhos. Todos os sentidos humanos podem ser enganadores se privilegiados em
separado. E especialmente a visão, considerado sentido não enganador. O
estranhamento causado pela pergunta traz, embutido, um sutil toque de ironia, que
abre uma brecha de cumplicidade com o leitor, ao desestabilizá-lo.
O
pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti penetra no bosque ‘Entre-dois-mundos’ em
seu poema Sudden Light, de 1870,
encontrando lagos que dão acesso a milhares de outros mundos. Poderíamos
imaginar ser este um deles – já que a influência em Wilde deste grupo de
escritores foi flagrante . No contato com o espelho de suas águas, Narciso
deixa o mundo em que vivia, para mergulhar num sonho de paixão. E,
surpreendentemente, o próprio lago experimenta uma viagem de transformação a
partir da ausência de Narciso. A doçura do lago se esvai sendo substituída pelo
sal da dor, pois a dependência que o lago, objeto amante e amado, tinha, opera
uma mutação. A mudança de natureza é, assim, sua morte também. O sal de suas
lágrimas reanimará uma nova vida: ‘realidade’ desfeita e refeita; nada é
perdido. No reverso singular da evolução natural, um novo ecossistema lacustre
se apresenta. Wilde, por assim dizer, ‘humaniza’ o mito. O protagonista não é
mais só Narciso, um ser dotado de beleza incomparável, mas um lago que
mergulhando e mergulhado em sua própria imagem não é mais o mesmo .
O espelho das
límpidas águas do lago; o espelho dos olhos de Narciso: a mesma imagem gerando
resultados diferentes. O que Narciso julgava ver era a imagem de outrem; alguém
de quem se enamorou. Reflexo inverso de Dorian que se apaixonou pela eterna
jovialidade de sua imagem. Diferentemente do lago que apreciava ver a si e
tinha nos olhos de Narciso uma fonte de deleite constante. Com a morte do
jovem, para sobreviver, transfigurou-se.
A linguagem expõe-se à emergência do inconsciente – onde tudo é
possível.
A força e a importância da aparência retiram
de cena o ‘herói’ e fazem aquele que seria o co-adjuvante ascender. A paixão de
Narciso por si mesmo fez com que desistisse da vida. O lago, ao contrário,
tinha tamanho amor, que a intensidade da dor permitiu-lhe a modificação para
ainda ter a chance de conviver com o objeto de sua paixão.
Wilde abusa de repetições para mais uma
vez nos fazer crer que desejaria que seu texto fosse lido com os ouvidos. Sobre
isto comenta em O crítico como artista:
“Os gregos
consideravam a arte de escrever como simplesmente um meio de contar. Sua prova
era sempre a palavra falada em suas relações musicais e métricas(...)” p.224
Curto, surpreende pela objetividade das
palavras. O lago não precisava de mais palavras para transmitir sua ‘tragédia’,
as Óréades, silenciosas, partilharam de imediato sua dor. E a nós, leitores,
deixa sufocado implicitamente um soluço.
Texto-discípulo de
vários deuses - do deus das metamorfoses, a quem tudo era permitido, do deus da
magia e da palavra, Hermes, e do deus da plástica, Dionísio - o poema é emblema
da possibilidade do improvável, idéia que transita pela corrente da escrita
wildiana sem parar. Na tela da página, ‘atirou’ sem parar tintas fortes,
aparentemente destoantes, asfixiantes, que exigiam do leitor, presença. E
ainda, o lago como discípulo, aparente reverenciador do rapaz, era mestre e
submetia Narciso. A bela aparência deste que se torna um mundo de sonhos tem a
marca da mentira que alivia a dor das contradições de um real caracterizado por
fatos. Escrito pouco antes da tragédia que se abateria sobre Wilde, a bela
mensagem de O discípulo é a da
superação a que todo indivíduo é chamado antes mesmo que seja arrebatado ao mar
de sofrimentos.
Escrito por volta de 1894, carrega o pressentimento
da dolorosa fase que viria e, ao mesmo, tempo, enuncia uma cintilante retomada.
O conhecimento da dor que duraria uma vida inteira fora modelado em novo gozo.
O ciúme da beleza de Narciso gerou o oráculo de sua morte caso se olhasse,
tomando, assim, consciência da sua
semelhança com a perfeição da divindade. Narciso, atraído ao lago pela
força competidora dos deuses, como Dorian Gray, ao apaixonar-se por si mesmo,
morre. Mortes diversas: a de um, física; a do outro, da consciência. Narciso não
escapa ao destino imposto pelos oráculos. Porque de alguma forma se deixa
controlar. O lago faz seu destino, acredita, e suas lágrimas conseguem o
inimaginável. Wilde dá a ele, no entanto, um tom de ignorância da força que
representou a passagem pela dor e a resistência em sucumbir. Quando o desejo voa nas asas do inconsciente,
quando seu idealizador não procura uma lógica para atingir a meta, tudo pode
acontecer, tudo pode ser revertido. Loucura? Concordemos com o absurdo.
Aprendemos com Wilde que,como Nietzsche
destaca, de um livro louco, a razão só
pode evoluir para o absurdo. A prudência se despede; o excesso
toma o seu lugar. O simulacro não é mais subterrâneo, tornou-se manifesto e faz
de O discípulo, texto que cativa
também pelo indizível. À procura por novos discípulos, desnudados do esperado e amantes do inesperado,
prontos para a liberação dos duplos. O convite de Wilde é para que, margeando o
lago, abracemos de sua superfície
desdobramentos para o corpo. A mensagem cifrada convida ainda para o espanto; para o espanto
como habitação. O leitor se sente impelido a repetir o mito, garantindo-lhe a
permanência. Wilde esteve, como seus escritos mostram até hoje, aberto a
re-elaborações, variantes versões que circulariam como anéis, marcas de
reconhecimento daqueles que aceitaram o labirinto.
Lindo, lindo texto Stella. Muito bem contextualizado em sua tese.
ResponderExcluirÀ mim transmite a mensagem da impermanência de todas as coisas. Tudo nesta vida se transforma e sempre se transformará.
Entendo o por que de Wilde ter desejado que seus textos fossem lidos com os ouvidos, pois a visão não alcança a verdade dos fatos (as aparências enganam). Adorei.
Bjs, e boa noite,
Elisabeth de Abreu Pinto
É isso mesmo, Elisabeth.Há que se considerar sempre o ponto de vista do outro. Os sentidos devem trabalhar em conjunto em nós. Obrigada pelo belo comentário. Até.
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