PRIMEIRAS
PALAVRAS
Muito foi dito e
escrito sobre Oscar Wilde, e cada máscara coube-lhe com perfeição. Escolhemos, aqui, mascararmo-nos e adentrar em seu
labirinto – assumindo o risco de nos perdermos para sempre – a fim de
experimentar sua ousada escrita.
Nosso percurso não
segue uma lógica: é movimento inquietante que parece ora nos levar para frente
ora fazer-nos retroceder! No entanto, é só progressão e nunca fracasso ou
decepção. O alvo é o infinito – a que não se chega, porque se pudéssemos
fazê-lo, não mais o seria. Porém, não residiria aí a resposta para a
‘felicidade’? Não é o calor da busca que impulsiona e faz com que nos sintamos
tons de eternidade?! Buscar já não é uma forma de conhecer?
Começamos em
movimento espiral pelo centro por ele escolhido: a obra de arte a partir da
qual se viveria sob modelos supra-humanos. Por ela e nela nos moveremos daqui
por diante, como a Alice de Carroll: às vezes, temerosos, presos ao que
pensamos ser seguro, mas vertiginosamente do centro para a periferia e
vice-versa, sempre para cima. Sentimo-nos seus ‘novatos eleitos’, mas sabemos
que, para o sermos, de fato, precisamos poetizar-nos, deixando que o esteta nos
conduza. A condição, no primeiro momento, é deixarmo-nos ser, sorvendo suas
idéias com atenção, para além das cortinas tecidas pela razão. O esteta guia
nossos primeiros passos; depois parece abandonar-nos. Sua figura, central,
recua cada vez mais do possível lugar de uma revelação. Sabe que a chave que
desarma a aventura esboça outros enigmas e se diverte.
Adentramos, assim,
seu mundo, mas, sem sairmos de nós próprios, narrando, destarte, as aventuras
de nossas almas nos seios das obras. Afinal, acreditamos que para nos
conhecermos, precisamos renunciar ao que imaginamos de nossa individualidade.Seguimos
esse audacioso mestre da iluminação em silencioso andar pelo mutável.
Enamorado da
filosofia shopenhauriana, por volta do verão de 1876, em troca de idéias com a
mãe2 , acreditamos ter-se voltado para a alegria a Nietzsche,
rejeitando a auto-anulação da vontade e a mortificação dos sentidos passando
por entre lutas e paixões, aventuras e perigos. Se a vontade é fonte de todo
sofrimento, só por ela, compondo-se pela ruptura, exercitaria a liberdade
poética. Como diz Michel Foucault:
“Após
Zaratustra, o retorno da filosofia-teatro; não absolutamente reflexão sobre o teatro; não absolutamente
teatro prenhe de significações. Mas a filosofia tornada
cena, personagens, signos, repetição de
um acontecimento único e que jamais se
reproduz.”
À medida que nos embrenhamos
em suas paisagens, o esteta sorri-nos.
E, como aqui tudo é
possível, voamos para uma visão panorâmica e constatamos, sem surpresa, ser
tudo um grande livro - tema recorrente: a obra literária como ponto de
convergência de um labirinto. Seguimos no livro – como num jogo de liga-pontos
– em que a imagem de um rosto é traçada em cada capítulo, para logo adiante
desaparecer; cada página contendo elementos representativos de sua obra.
Escolhidos por nós? Não sabemos mais. Diverte-se o trocista. Desvendar seus
segredos, seus enigmas, classificá-lo seria uma segunda morte.
Este trabalho pode
definir e explicar as várias impressões recebidas da obra de arte, entretanto,
a escolha buscou ser a de coincidir com o que nela há de único e inexprimível.
A obra diz e esconde, faz-se e nunca está feita porque exige perspectivismo Oscar Wilde não se resumiu a sua obra e, sim,
resumiu-se nela. Apesar de parecer sempre ‘preencher’,‘ornamentar’ as narrativas
por inteiro, deixa espaços em branco à espera. Obra irreal como um tapete
persa; força de oralidade numa escrita que não se cristaliza porque se sabe
recebida de maneiras diversas. O interesse de Wilde estava em como seu público
poderia ser afetado e afetar as histórias – que poderiam, assim, ser recriadas
indefinidamente.
Projetando-se como mergulhador délio, em
luta contra a insaciabilidade, do prazer que durou os instantes de pouco mais
de quarenta anos, passou a experimentar a dor de uma vida inteira enquanto
esteve na prisão - “não há verdade comparável com a dor e há momentos em que
penso que a dor é a única verdade possível(...) da dor que surgiram os mundos e
sempre houve sofrimento ao nascer uma criança ou uma estrela(...)” (WILDE,
2003, p.1396). Entretanto, refuta a renúncia ao mundo; liberdade que viria de
outra constatação: “o amor, qualquer que seja sua categoria(...)” (WILDE,
2003, p.1397). “Compreendi que a única coisa que poderia fazer era aceitar Tudo. Desde então, por estranho que pareça, tenho sido
mais feliz(...)” (WILDE, 2003, p.1402).Percebeu que cada ato escolhido
de vida importava e que o não vivido permaneceria dentro dele, em seu
inconsciente por toda uma eternidade. Tornou-se um porque passou pelas cinzas; não sofreu pelo que não viveu. Esta
adesão à força da vida, ativa e não passiva, fortificou sua presença de homem
moderno e o fez crer que algo se introduziria em sua obra, “ (...)uma plena
memória verbal, cadências mais ricas, efeitos mais curiosos, uma ordem
arquitetônica mais simples ou, quando menos, certa qualidade estética. (WILDE, 2003, p.1413). É inegável o
impacto schopenhauriano e o surpreendente ultrapassamento. Destaca Joseph
Pearce em The Unmasking of Oscar Wilde que, em carta à mãe, Wilde sintetizara a
questão do pessimismo naquele filósofo, dizendo que ele acreditava que toda a
humanidade deveria se encaminhar para o mar e deixar o mundo; o problema era
que, invariavelmente, furtivos elementos se esconderiam, deixados para trás, e
povoariam o mundo novamente. Tem-se, então, uma clara oposição entre o trágico
como elemento fundador da existência humana e a seriedade da reflexão acerca
das dores da vida. Para ser o homem que buscou em tudo a superação – um
super-homem para um super-tempo -, colocou-se
ao lado de outras pessoas, conseguindo um vivenciamento de si como outro.
Esteticamente, na categoria de outro, alcança o esbanjamento interior, mas não
solitário, do corpo. Rejeita a resignação, pois se assim não fosse se negaria
como obra de arte.
Alegria, essa satisfação incoerente, força de superfície que
cresce do conhecimento do caráter trágico da vida e que, por isso, permite uma
profundidade outra; força que capacita para um saber alquímico.
O chão falseia, sentimo-nos invadidos
pelo simulacro, com o mundo desrealizado à nossa volta. O espaço sulcado exige
a conformidade do corpo – ora alargando-o, ora encolhendo-o. Pergunta-nos se
vacilamos. Não! Como estagnar ao sol se somos do tamanho do que vemos! 9
Participamos, agora,
da mesma viagem por ele empreendida, partilhando do fascínio que esta escrita
que se quis e se viu condensadora de sentimentos e atitudes suscitou, sem,
contudo, estabelecer níveis ou constituir valor. Sabemos não ser possível
fundir-nos a ele para não deixar escapar
o acontecimento que foi sua vida. Só queremos (como ele o quis)
parecer ser mais do que somos na realidade; não podemos ver nossa presença
genuína - efetivamente nunca acreditamos até o fim que somos apenas este aqui e
agora.Ele escolheu refletir seus
mestres.Com a vida reconstruída, neste mundo visível, teve rostos ímpares em
toda a sua plenitude. Criou um todo estético que permitiu ao contemplador uma
co-vivência.
Como leitores,
obedecemos, somos ensinados, provocados, irritados Lutamos com a
obra, contornando-a, somos vencidos pela letra que ordena. A palavra acorda
quando o livro é escolhido e atualiza-se, age, para de novo sumir. Se a letra
passa, nós, os leitores, ficamos, alterados por ela. Diz Elysio de Carvalho –
admirador de Wilde e um declarado ‘nietzschiano’ em Esplendor e decadência da sociedade brasileira:
“a vida tem de
fazer-se, como a composição de um poema
ou de um quadro, é arranjada por um
artista, como se faz uma
obra de arte(...)” .
Nossa tentação aqui
foi a de juntar às obras a nossa leitura no embalo da ilusão de um criador em segundo
grau.Aceitamos o convite feito no prefácio de O retrato de Dorian Gray e buscamos o
que há sob a superfície – conscientes do perigo de que a arte espelha a nós,
espectadores, e não à vida:a nós, múltiplos e mutáveis Esculpimos,
fixamos algumas perspectivas pelas obras que parecem mundos autônomos,
instintivamente procurando nelas nossos traços. Aprendemos, então, que na busca pelo
significado das obras, refletimos, na verdade, sobre o porquê da necessidade
desta busca. Encaramos o fato de que o percurso nos torna diferentes e não as
conclusões a que possamos chegar.
A obra artística de
Wilde nos escolheu para confundir nossas certezas, questionar nossos limites. A
impressão que isso nos causa? Seu efeito, seu prazer? Percebermos que, vivendo
na idéia de que não existimos em toda a nossa potencialidade, levamos a eterna
esperança na permanente possibilidade do milagre interior de um nascimento,
Como nos lembra
Foucault, para sonhar não é preciso fechar os olhos e sim, ler A
vida quando estamos despertos não dispõe das mesmas interpretações que se nos
apresentam na vida de sonho; é refreada, uma linguagem convencional, com juízos
morais,limites e a eleição do ‘essencial’. Essas avaliações, de fato, escondem
um desconhecido onde estranhos instintos esperam por serem saciados. Viver é
imaginar, disseram Wilde e Nietzsche em várias ocasiões. E o esteta nos
aconselha a deixar a língua falar e não tentar dominá-la.
Sonhamos, assim,
nosso sonho, em que as difusas formas, repetidamente, nutriram estas
páginas. Nada nos parece ser tão nós
mesmos.
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