EM A DECADÊNCIA DA MENTIRA
Contido no volume Intenções de 1891, é claro resgate e
homenagem aos diálogos empreendidos pelos gregos. Wilde intenta, com o
‘protesto’ a que Vivian se propõe, revitalizar a esquecida prática da mentira
como elemento constitutivo da verdade. Afinal, “os únicos personagens reais são
os que nunca existiram.” (WILDE, 2003,p. 1075). O insinuante jogo de palavras
destaca que “todas as ficções estão profundamente coloridas como sonhos. Cada
inteligência é uma arma carregada de vontade até a boca(...)” (WILDE, 2003,p.
1077). Então, que lhe seja dada voz! O diálogo entre os amigos Vivian e Cirilo
– nomes dos filhos de Wilde – se desenrola a partir da aposta grega de que a
vida, “graças à arte, adquire não somente a espiritualidade, a profundeza do
pensamento e de sentimento, a perturbação ou a paz de alma, mas pode adaptar-se
às linhas e às cores da arte.” (WILDE, 2003,p. 1084). O que é a verdade da vida
de cada um senão uma série de ‘mentiras’ nutrida por uma imaginação quixotesca?:
“Schopenhauer analisou o pessimismo que caracteriza o pensamento moderno, mas
Hamlet o inventou(...)” (WILDE, 2003,p. 1085). O recurso do diálogo nos permite
imaginar o movimento de máscaras executado por Wilde: ora sendo Cirilo, ora
como Vivian e uma vez mais o cenário é uma biblioteca.
Cavaleiros andantes,
esquecemos que a garantia de uma existência eterna está na capacidade de
sonhar: “A vida segura o espelho para a arte(...)ou realiza com fatos o que foi
sonhado como ficção.” (WILDE, 2003,p.1087). Se a ‘verdade’ aprisiona, a
‘mentira’ deve libertar. Para ‘ver’ as coisas como realmente são, devemos
tê-las imaginado um sem número de vezes. Para uma compreensão da beleza é
preciso um movimento para além do imediatamente percebido. Assim, “os fatos
serão olhados como desacreditados, a verdade será vista a chorar sobre suas
cadeias e a ficção, com seu maravilhoso caráter, voltará à terra. O aspecto
mesmo do mundo mudará diante de nossos olhos.” (WILDE, 2003,p. 1093). Diz
Nietzsche em A gaia ciência:
“Vós, homens
sóbrios, que vos sentis tão protegidos contra a paixão e as quimeras e que
tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um orgulho e um ornamento de seu
vazio, dais-vos, a vós próprios, o nome de realistas e dais a entender que o
mundo é verdadeiramente tal como vos parece; que sois os únicos a ver a verdade
isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade(...)”
.
Mentir para viver muitas e muitas vidas. Mentir
para não se deixar levar pelo comum, pelo ordinário. Mentir para fazer
diferença; como acessórios, estabeleceríamos nuances no barro de que somos
todos feitos.
Diz
Vivian: “(...)a tapeçaria moderna, com seus efeitos aéreos, sua cuidada
perspectiva,suas amplas extensões de céu inútil, seu fiel e laborioso realismo,
não possui a menor beleza(...)Na Inglaterra começamos a tecer tapetes
admiráveis,porque voltamos ao método e ao espírito orientais(...) Sabiam que a
vida, graças à arte, adquire não somente...a perturbação ou a paz de alma, mas
pode adaptar-se às linhas e às cores da arte(...)As coisas existem porque as
vemos e o que vemos e como vemos depende das artes que influíram em nós(...)”.(WILDE,
2003,ps. 1081, 1084, 1088).
O
pacto da literatura é com o indecifrável, “(...)a Arte revela sua própria
perfeição e a multidão surpreendida que observa a florescência da maravilhosa
rosa de pétalas múltiplas sonha que é sua própria história a que lhe contam e
que é seu próprio espírito que acaba de exprimir-se sob uma nova forma(...)” (WILDE,
2003,p.1089) e que é seu próprio destino que está selado. A linguagem pode ser
dúbia, comodidade ‘escorregadia’, conversar é aprender a contar mentiras. A
moralidade mais elevada residiria na nobre mentira. Esta protegeria o artista da
mediocridade. Criativa, a mentira mergulha cada vez mais no
indeterminado. À serviço da ficção, a mentira move o indivíduo a uma realização
mais profunda, ‘trabalhando’ com a mistura dos sentidos, impedindo que a visão
se conformasse a uma face do real.
Um singelo conto
repassado por André Gide ilustra muito bem a constante vigilância exigida do
artístico mentiroso e como pode ser frustrante o momento em que os ‘olhos’ do
contador ‘baixam a guarda’ e a Vida empurra a Arte para fora do círculo, nada
mais restando para ser contado. Diz ele em L’esprit
D’Oscar Wilde:
“Il y avaint un jour un homme que, dans son village, on
aimait parce qu’il racontait des histoires. Tous les matins il sortait du
village, et, quand le soir il y rentrait, tous les travailleurs du village,
après avoir peiné tout le jour, s’assemblaient tout autour de lui et disaient;
Allons! Raconte:
Qu’est-ce que tu as vu aujourd’hui? Il racontait; J’ai vu dans la forêt un
faune qui jouaint de la flûte, et qui Faisait danser une ronde de petits
sylvains.
- Raconte encore: qu’as-tu vu? Disaient
les hommes.
- Quand je suis arrivé sur lê bord de
la mer, j’ai vu trois sirenes, aun bord des vagues, et qui peihnaient avec un
peigne d’or leurs cheveux verts.
Et les hommes
l’aimaient parce qu’il leur racontaint des histoires.Un matin il quitta, comme
touts les matins, son village, mais quand il arriva sur le bord de la mer,
voici qu’il aperçut trois sirènes, trois sirènes, trois sirenes au bord des
vagues, et qui peignaient avec un peigne d’or leurs cheveux verts. Et comme il
continuait sa promenade, il vit, arrivant près du bois, un faune qui jouaint de
la flûte à une ronde de sylvains(...)Ce soir-là, quand il rentra dans son
village et qu’on lui demanda, comme lesautres soirs: Allons! Raconte. Qu’as-tu
vu? Il répondit; Je n’ai rien vu.” .
O
esteta subverte, assim, a idéia de inocência. Quanto mais experiências tiver o
indivíduo, mais próximo estará da inocência. Diante deste espelho, a arte é a
mais verdadeira das realidades. Ela cria a beleza, não se rende a nenhuma
autoridade, é soberana absoluta, faz surgir monstros do fundo do abismo, florir
árvores no inverno ou tombar a neve sobre os campos de trigo. A arte não deve
ser fiel à natureza, deve dominá-la do alto, subjugá-la. Os nevoeiros ingleses
são criação dos impressionistas; o melhor retrato é aquele que menos contém do
modelo e mais do artista. A arte é, então, antes de tudo, mentira. A mentira é
narração de belas coisas falsas, isto é, o fim supremo da arte. As narrações
mais irreais seriam as mais belas. Ser natural é ser evidente e, por
conseguinte, inartístico. O Realismo aprisionara o discurso e impusera a
natureza como as barras. Para Wilde, o Realismo
separava a vida da arte, o realismo do romance e não vice-versa. A linguagem se
veste nos personagens para demonstrar nossas similaridades; Wilde a queria nua,
exposta, para que, desta forma, iluminasse nossas maravilhosas distinções. O
que para alguns é fato natural é mentira para outros.
Vivian
conta ao amigo dois exemplos de um misterioso e irresistível impulso que pode
enlaçar pessoas ‘comuns’ nas redes da ficção: “pouco depois de ter Stevenson
publicado sua curiosa história psicológica de transformação, um amigo meu,
chamado Hyde, encontrava-se no norte de Londres e, na sua pressa de chegar a
uma estação, tomou o caminho que acreditou mais curto e se perdeu,
encontrando-se em um labirinto de ruas sórdidas de aspecto sinistro(...)” (Hyde
perdera-se do real e adentrara o labirinto da Arte). “(...)de repente, um
menino, que saltou de uma passagem abobadada, veio meter-se entre suas pernas(...)Hyde
tropeçou nele e pisou-o; o garotinho cheio de medo...pôs-se a gritar(...)rodearam
meu amigo, perguntando seu nome. Ia ele dizê-lo, quando se recordou, de
repente, do incidente com que começa a narrativa de Stevenson. Horrorizado
diante da idéia de viver aquela cena terrível e tão bem escrita e tendo
repetido o ato que o Hyde da ficção realiza deliberadamente fugiu a toda
velocidade(...)” (WILDE, 2003,p.1086).
A
outra narrativa de um real que acaba por ser ficcional tem como ‘protagonista’
um duplo de A esfinge: “(...)No ano
de 1879, justamente depois que eu deixei Oxford, encontrei em uma recepção em
casa de um representante diplomático, uma mulher de uma beleza curiosamente
exótica. Tornamo-nos grandes amigos(...)seu caráter de total vaguidão. Parecia
não ter personalidade alguma, mas simplesmente a possibilidade de representar
muitas...era uma espécie de Proteu(...)Um dia começou a publicar-se um romance
em série em uma revista francesa(...)e bem me lembro da grande surpresa que
senti ao chegar à descrição da heroína. Era tão parecida com minha amiga que
lhe levei a revista e ela reconheceu-se imediatamente(...)Devo dizer-lhe, a
propósito, que a obra era traduzida de um escritor russo falecido, de modo que
o autor não tinha podido tomar minha amiga por modelo(...)Alguns meses depois,
achando-me em Veneza, vi a revista no salão do hotel e abri-a para conhecer
qual tinha sido a sorte da heroína. Tratava-se de uma história lamentável. A
jovem tinha acabado de fugir com um homem absolutamente inferior a ela, não
somente na posição social, mas também no caráter e na inteligência. Escrevi
naquela mesma noite à minha amiga...para dizer-lhe que a sua ‘duplicata’ do
romance havia-se portado de maneira muito estúpida...Pois bem, antes que minha
carta lhe tivesse chegado às mãos, fugiu com um homem que a abandonou seis
meses depois. Tornei a vê-la, em 1884, em Paris(...)e perguntei-lhe se aquela
narração era responsável pelo seu ato. Confessou-me que se tinha sentido
impelida por uma força absolutamente irresistível a seguir, passo a passo, a
heroína, em sua marcha estranha e fatal e que foi tomada de um autêntico terror
à medida que esperava os últimos capítulos. Quando foram publicados,
pareceu-lhe que estava obrigada a reproduzi-los na vida e assim o fez.” (WILDE,
2003,p.1087).
O imaginativo argumento para a assertiva
de que a Vida imita a Arte remete-nos para o percurso e desenlace do enredo da
existência de Wilde – seguidor de suas próprias palavras, um herdeiro de
Ulisses, admirado imensamente pelos gregos, segundo Nietzsche por sua
engenhosidade em mentir.
Temos, então, aqui, a ‘oscilação’ como
uma tática, a alternância como energia de existência. O que é a verdade ou o
que é mentira permanece como indagação única daqueles para quem a necessidade
de definir tem ainda todo o valor. A definição limita, restringe, mas, ao mesmo
tempo, assegura um horizonte nítido, sem penumbras; criar mundos exige esforço
para o alívio da angústia e não pronta solução. Na noite, em que tudo parece
uno, é preciso a lâmpada da individuação e, para isso, o homem precisa produzir
como artista. Por vezes parece ser mais fácil convencer os outros do que
convencer-se, converter os outros do que converter-se. Wilde repetia, às vezes,
que o tolo pergunta e o sábio não ousa responder. A ‘verdade’ passa a ser não o
que se acredita necessariamente, mas o que se quer dar a acreditar. Wilde
acredita, no entanto, que só quem exercita continuamente a multiplicidade na
personalidade pode compreender isto; alguém cujo mundo faça e refaça suas
superfícies constitutivas; alguém que se utilize da ‘ilusão’, no sentido
wildiano, isto é, que escape das definições e utilize uma pena envenenada
pronta para forjar mundos. A máscara é superfície para uma incomum
profundidade, mensurada por seu desvio da norma. Wilde
reforça a inadequação do discurso artístico como única escolha coerente. Diz
Vivian: “(...)a Arte revela sua própria perfeição e a multidão surpreendida que
observa a florescência da maravilhosa rosa de pétalas múltiplas sonha que é sua
própria história a que lhe contam e que é seu próprio espírito que acaba de
exprimir-se sob uma nova forma...”(WILDE, 2003,p.1089).A rosa é a do rouxinol e
é a nossa cotidiana. No entanto, seu efeito não termina aí, quer ainda mais: “A
arte superior rejeita a carga do espírito humano e encontra maior interesse em
um novo meio ou em materiais inéditos...Desenvolve-se, simplesmente, segundo
suas próprias linhas... (WILDE, 2003,p.1090)....A revelação final é que a
Mentira, isto é, o relato das belas coisas falsas, é a própria finalidade da
Arte...” (WILDE, 2003,p.1094). Não existe realidade alguma separada das
aparências. A ilusão está em girar com a vida e coadjuvar com a irrealidade.
Isto é estar permanentemente em uma prisão, sem grades.
Wilde não olhava as coisas só de
maneira panorâmica; os detalhes, as possibilidades de acréscimos ao já
instituído seduziam seu espírito criador. Mentir ou permitir expansão do caótico
cenário do ordinário? O real pronto atrai, sossega, mas não nutre, nem sacia.
Fazer arte é estar marcado por imagens o tempo todo e admitir a não
significância do real é fonte de amor à vida. Dissimular é expressar. E Oscar
Wilde fez isto como ninguém.
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