quarta-feira, 20 de junho de 2012

Wilde VII


EM  A DECADÊNCIA DA MENTIRA

                        (mais uma parte da minha tese)

Contido no volume Intenções de 1891, é claro resgate e homenagem aos diálogos empreendidos pelos gregos. Wilde intenta, com o ‘protesto’ a que Vivian se propõe, revitalizar a esquecida prática da mentira como elemento constitutivo da verdade. Afinal, “os únicos personagens reais são os que nunca existiram.” (WILDE, 2003,p. 1075). O insinuante jogo de palavras destaca que “todas as ficções estão profundamente coloridas como sonhos. Cada inteligência é uma arma carregada de vontade até a boca(...)” (WILDE, 2003,p. 1077). Então, que lhe seja dada voz! O diálogo entre os amigos Vivian e Cirilo – nomes dos filhos de Wilde – se desenrola a partir da aposta grega de que a vida, “graças à arte, adquire não somente a espiritualidade, a profundeza do pensamento e de sentimento, a perturbação ou a paz de alma, mas pode adaptar-se às linhas e às cores da arte.” (WILDE, 2003,p. 1084). O que é a verdade da vida de cada um senão uma série de ‘mentiras’ nutrida por uma imaginação quixotesca?: “Schopenhauer analisou o pessimismo que caracteriza o pensamento moderno, mas Hamlet o inventou(...)” (WILDE, 2003,p. 1085). O recurso do diálogo nos permite imaginar o movimento de máscaras executado por Wilde: ora sendo Cirilo, ora como Vivian e uma vez mais o cenário é uma biblioteca.

Cavaleiros andantes, esquecemos que a garantia de uma existência eterna está na capacidade de sonhar: “A vida segura o espelho para a arte(...)ou realiza com fatos o que foi sonhado como ficção.” (WILDE, 2003,p.1087). Se a ‘verdade’ aprisiona, a ‘mentira’ deve libertar. Para ‘ver’ as coisas como realmente são, devemos tê-las imaginado um sem número de vezes. Para uma compreensão da beleza é preciso um movimento para além do imediatamente percebido. Assim, “os fatos serão olhados como desacreditados, a verdade será vista a chorar sobre suas cadeias e a ficção, com seu maravilhoso caráter, voltará à terra. O aspecto mesmo do mundo mudará diante de nossos olhos.” (WILDE, 2003,p. 1093). Diz Nietzsche em A gaia ciência:



“Vós, homens sóbrios, que vos sentis tão protegidos contra a paixão e as quimeras e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um orgulho e um ornamento de seu vazio, dais-vos, a vós próprios, o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos parece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade(...)” .



          Mentir para viver muitas e muitas vidas. Mentir para não se deixar levar pelo comum, pelo ordinário. Mentir para fazer diferença; como acessórios, estabeleceríamos nuances no barro de que somos todos feitos.

         Diz Vivian: “(...)a tapeçaria moderna, com seus efeitos aéreos, sua cuidada perspectiva,suas amplas extensões de céu inútil, seu fiel e laborioso realismo, não possui a menor beleza(...)Na Inglaterra começamos a tecer tapetes admiráveis,porque voltamos ao método e ao espírito orientais(...) Sabiam que a vida, graças à arte, adquire não somente...a perturbação ou a paz de alma, mas pode adaptar-se às linhas e às cores da arte(...)As coisas existem porque as vemos e o que vemos e como vemos depende das artes que influíram em nós(...)”.(WILDE, 2003,ps. 1081, 1084, 1088).

         O pacto da literatura é com o indecifrável, “(...)a Arte revela sua própria perfeição e a multidão surpreendida que observa a florescência da maravilhosa rosa de pétalas múltiplas sonha que é sua própria história a que lhe contam e que é seu próprio espírito que acaba de exprimir-se sob uma nova forma(...)” (WILDE, 2003,p.1089) e que é seu próprio destino que está selado. A linguagem pode ser dúbia, comodidade ‘escorregadia’, conversar é aprender a contar mentiras. A moralidade mais elevada residiria na nobre mentira. Esta protegeria o artista da mediocridade. Criativa, a mentira mergulha cada vez mais no indeterminado. À serviço da ficção, a mentira move o indivíduo a uma realização mais profunda, ‘trabalhando’ com a mistura dos sentidos, impedindo que a visão se conformasse a uma face do real.

Um singelo conto repassado por André Gide ilustra muito bem a constante vigilância exigida do artístico mentiroso e como pode ser frustrante o momento em que os ‘olhos’ do contador ‘baixam a guarda’ e a Vida empurra a Arte para fora do círculo, nada mais restando para ser contado. Diz ele em L’esprit D’Oscar Wilde:



“Il y avaint un jour un homme que, dans son village, on aimait parce qu’il racontait des histoires. Tous les matins il sortait du village, et, quand le soir il y rentrait, tous les travailleurs du village, après avoir peiné tout le jour, s’assemblaient tout autour de lui et disaient; Allons! Raconte: Qu’est-ce que tu as vu aujourd’hui? Il racontait; J’ai vu dans la forêt un faune qui jouaint de la flûte, et qui Faisait danser une ronde de petits sylvains.

         - Raconte encore: qu’as-tu vu? Disaient les hommes.

         - Quand je suis arrivé sur lê bord de la mer, j’ai vu trois sirenes, aun bord des vagues, et qui peihnaient avec un peigne d’or leurs cheveux verts.

Et les hommes l’aimaient parce qu’il leur racontaint des histoires.Un matin il quitta, comme touts les matins, son village, mais quand il arriva sur le bord de la mer, voici qu’il aperçut trois sirènes, trois sirènes, trois sirenes au bord des vagues, et qui peignaient avec un peigne d’or leurs cheveux verts. Et comme il continuait sa promenade, il vit, arrivant près du bois, un faune qui jouaint de la flûte à une ronde de sylvains(...)Ce soir-là, quand il rentra dans son village et qu’on lui demanda, comme lesautres soirs: Allons! Raconte. Qu’as-tu vu? Il répondit; Je n’ai rien vu.” .        

   

         O esteta subverte, assim, a idéia de inocência. Quanto mais experiências tiver o indivíduo, mais próximo estará da inocência. Diante deste espelho, a arte é a mais verdadeira das realidades. Ela cria a beleza, não se rende a nenhuma autoridade, é soberana absoluta, faz surgir monstros do fundo do abismo, florir árvores no inverno ou tombar a neve sobre os campos de trigo. A arte não deve ser fiel à natureza, deve dominá-la do alto, subjugá-la. Os nevoeiros ingleses são criação dos impressionistas; o melhor retrato é aquele que menos contém do modelo e mais do artista. A arte é, então, antes de tudo, mentira. A mentira é narração de belas coisas falsas, isto é, o fim supremo da arte. As narrações mais irreais seriam as mais belas. Ser natural é ser evidente e, por conseguinte, inartístico. O Realismo aprisionara o discurso e impusera a natureza como as barras.  Para Wilde, o Realismo separava a vida da arte, o realismo do romance e não vice-versa. A linguagem se veste nos personagens para demonstrar nossas similaridades; Wilde a queria nua, exposta, para que, desta forma, iluminasse nossas maravilhosas distinções. O que para alguns é fato natural é mentira para outros.

         Vivian conta ao amigo dois exemplos de um misterioso e irresistível impulso que pode enlaçar pessoas ‘comuns’ nas redes da ficção: “pouco depois de ter Stevenson publicado sua curiosa história psicológica de transformação, um amigo meu, chamado Hyde, encontrava-se no norte de Londres e, na sua pressa de chegar a uma estação, tomou o caminho que acreditou mais curto e se perdeu, encontrando-se em um labirinto de ruas sórdidas de aspecto sinistro(...)” (Hyde perdera-se do real e adentrara o labirinto da Arte). “(...)de repente, um menino, que saltou de uma passagem abobadada, veio meter-se entre suas pernas(...)Hyde tropeçou nele e pisou-o; o garotinho cheio de medo...pôs-se a gritar(...)rodearam meu amigo, perguntando seu nome. Ia ele dizê-lo, quando se recordou, de repente, do incidente com que começa a narrativa de Stevenson. Horrorizado diante da idéia de viver aquela cena terrível e tão bem escrita e tendo repetido o ato que o Hyde da ficção realiza deliberadamente fugiu a toda velocidade(...)” (WILDE, 2003,p.1086).

         A outra narrativa de um real que acaba por ser ficcional tem como ‘protagonista’ um duplo de A esfinge: “(...)No ano de 1879, justamente depois que eu deixei Oxford, encontrei em uma recepção em casa de um representante diplomático, uma mulher de uma beleza curiosamente exótica. Tornamo-nos grandes amigos(...)seu caráter de total vaguidão. Parecia não ter personalidade alguma, mas simplesmente a possibilidade de representar muitas...era uma espécie de Proteu(...)Um dia começou a publicar-se um romance em série em uma revista francesa(...)e bem me lembro da grande surpresa que senti ao chegar à descrição da heroína. Era tão parecida com minha amiga que lhe levei a revista e ela reconheceu-se imediatamente(...)Devo dizer-lhe, a propósito, que a obra era traduzida de um escritor russo falecido, de modo que o autor não tinha podido tomar minha amiga por modelo(...)Alguns meses depois, achando-me em Veneza, vi a revista no salão do hotel e abri-a para conhecer qual tinha sido a sorte da heroína. Tratava-se de uma história lamentável. A jovem tinha acabado de fugir com um homem absolutamente inferior a ela, não somente na posição social, mas também no caráter e na inteligência. Escrevi naquela mesma noite à minha amiga...para dizer-lhe que a sua ‘duplicata’ do romance havia-se portado de maneira muito estúpida...Pois bem, antes que minha carta lhe tivesse chegado às mãos, fugiu com um homem que a abandonou seis meses depois. Tornei a vê-la, em 1884, em Paris(...)e perguntei-lhe se aquela narração era responsável pelo seu ato. Confessou-me que se tinha sentido impelida por uma força absolutamente irresistível a seguir, passo a passo, a heroína, em sua marcha estranha e fatal e que foi tomada de um autêntico terror à medida que esperava os últimos capítulos. Quando foram publicados, pareceu-lhe que estava obrigada a reproduzi-los na vida e assim o fez.” (WILDE, 2003,p.1087).        

      O imaginativo argumento para a assertiva de que a Vida imita a Arte remete-nos para o percurso e desenlace do enredo da existência de Wilde – seguidor de suas próprias palavras, um herdeiro de Ulisses, admirado imensamente pelos gregos, segundo Nietzsche por sua engenhosidade em mentir.


      Temos, então, aqui, a ‘oscilação’ como uma tática, a alternância como energia de existência. O que é a verdade ou o que é mentira permanece como indagação única daqueles para quem a necessidade de definir tem ainda todo o valor. A definição limita, restringe, mas, ao mesmo tempo, assegura um horizonte nítido, sem penumbras; criar mundos exige esforço para o alívio da angústia e não pronta solução. Na noite, em que tudo parece uno, é preciso a lâmpada da individuação e, para isso, o homem precisa produzir como artista. Por vezes parece ser mais fácil convencer os outros do que convencer-se, converter os outros do que converter-se. Wilde repetia, às vezes, que o tolo pergunta e o sábio não ousa responder. A ‘verdade’ passa a ser não o que se acredita necessariamente, mas o que se quer dar a acreditar. Wilde acredita, no entanto, que só quem exercita continuamente a multiplicidade na personalidade pode compreender isto; alguém cujo mundo faça e refaça suas superfícies constitutivas; alguém que se utilize da ‘ilusão’, no sentido wildiano, isto é, que escape das definições e utilize uma pena envenenada pronta para forjar mundos. A máscara é superfície para uma incomum profundidade, mensurada por seu desvio da norma.  Wilde reforça a inadequação do discurso artístico como única escolha coerente. Diz Vivian: “(...)a Arte revela sua própria perfeição e a multidão surpreendida que observa a florescência da maravilhosa rosa de pétalas múltiplas sonha que é sua própria história a que lhe contam e que é seu próprio espírito que acaba de exprimir-se sob uma nova forma...”(WILDE, 2003,p.1089).A rosa é a do rouxinol e é a nossa cotidiana. No entanto, seu efeito não termina aí, quer ainda mais: “A arte superior rejeita a carga do espírito humano e encontra maior interesse em um novo meio ou em materiais inéditos...Desenvolve-se, simplesmente, segundo suas próprias linhas... (WILDE, 2003,p.1090)....A revelação final é que a Mentira, isto é, o relato das belas coisas falsas, é a própria finalidade da Arte...” (WILDE, 2003,p.1094). Não existe realidade alguma separada das aparências. A ilusão está em girar com a vida e coadjuvar com a irrealidade. Isto é estar permanentemente em uma prisão, sem grades.

         Wilde não olhava as coisas só de maneira panorâmica; os detalhes, as possibilidades de acréscimos ao já instituído seduziam seu espírito criador. Mentir ou permitir expansão do caótico cenário do ordinário? O real pronto atrai, sossega, mas não nutre, nem sacia. Fazer arte é estar marcado por imagens o tempo todo e admitir a não significância do real é fonte de amor à vida. Dissimular é expressar. E Oscar Wilde fez isto como ninguém.


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