domingo, 17 de junho de 2012

Wilde VI


o poema Vita Nuova

 (parte da tese)

         Permaneci de pé junto do mar que não se pode vindimar, até que as úmidas ondas encharcaram de espuma meu rosto e meus cabelos; as longas e vermelhas chamas do dia agonizante ardiam no Poente; o vento silvava tristemente; e as gritantes gaivotas fugiam para terra. ‘Ai – exclamei ‘. – ‘Minha vida está repleta de dor e quem poderia armazenar fruto ou grão dourado nesses campos estéreis, em faina que não cessa?’

         Minhas redes tinham largos rasgões, numerosos buracos; deitei-as, não obstante, ao mar, pela última vez e esperei minha sorte final.

         Quando, oh! Repentina glória! Vi ascender o argênteo esplendor de uns brancos membros e naquela alegria esqueci meu torturado passado.



         Publicado no jornal irlandês Irish Monthly, em 1877, este poema faz parte da coletânea denominada Rosa Mystica e mostra-nos um Wilde, ainda em Oxford (só deixaria a academia em 1879),  com a efervescente idéia de um modo de vida diferente.

         Imerso em sofrimento, o poeta chora a sorte quando é tocado pelo frescor das águas e pelas flamas ardentes do Sol. Algo aconteceria, já que as ondas revoltas que lhe tocaram a pele e os cabelos não voltariam ao mar da mesma maneira, assim, como ele, também, deveria sofrer uma modificação. O meio de trabalho – as redes – não estava em condições de provê-lo do que necessitava e, prestes a desistir, insiste mais uma vez, dá um passo a mais. Qual não é sua surpresa ao ‘ver’ o brilho prateado de uma vida nova, que só lhe pedia que deixasse para todo o resto para trás e abraçasse a alegria. Este indivíduo renovado perdera os temores antigos e sabia que não morreria mais porque o próprio Universo seria sua imortalidade. Era parte de um todo agora.

         Influenciado na adolescência pela poesia engajada da mãe, Wilde, aqui, traduz também uma insatisfação. De certo cunho político, inevitavelmente, e, no entanto,  mais comprometida com o entusiasmo estético que já se apoderara dele. A contradição que alguns críticos (como Norbert Khol, por exemplo em seu Oscar Wilde: the Works of a conformist rebel, de 1989) apontaram – atitude moralizante e política para quem se dizia completamente devotado à Arte – foi precocemente exercitada. Em A verdade das máscaras diria que a verdade na Arte deve incluir também a contradição. As figuras tão caras a ele, Baudelaire, Ruskin, Pater e mesmo Whistler, formaram um conjunto que só se harmonizaria se a dicção de pluralizasse. Questionamos aqui o ponto de vista de Karl Benson em seu Wilde’s as poet quando discorda da idéia de que a devoção wildiana da arte pela arte foi imutável. Acreditamos que as contradições, os paradoxos, eram parte intencional do jogo a que se propunha. Até a vivência e reconhecimento do tormento deveriam comparecer e integrar este quadro que aos poucos se desenhava. Ora, se tudo parecesse ser de maneira apenas contrária à convenção vitoriana não haveria ganho, apenas troca de papéis. Entrelaçar mentira e verdade, colorir a natureza diferentemente sempre foi seu ideal. O poetar de Wilde o protege da aversão que poderia ter em contemplar amorosamente esta fusão de imagens. Todo este tumulto tornou-se para ele visão de gênio.

No caminho do texto, poderíamos identificar os ‘campos estéreis’, onde nada poderia ser armazenado,  como uma sociedade na qual os direitos dos indivíduos fossem subtraídos ou neutralizados em nome do lucro desenfreado; sociedade que empalidecia as faces, murchava o vermelho das bocas juvenis, insistia em ruínas para cortinas dos leitos62, aprisionando e fazendo dos homens lacaios. O vento soprava ‘tristemente’ e as gaivotas afastavam-se daquele ‘lugar’ que não oferecia alimento necessário. Este passado torturante, porém, fora deixado para trás quando a luz do Sol inebriou o poeta e o fez acreditar novamente no sonho. Lembramos aqui o que diz Nietzsche em  O nascimento da tragédia, capítulo 1:





“Seja por influência da beberagem narcótica, da qual todos os povos e homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa aproximação da primavera a impregnar toda a natureza de alegria,despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja intensificação o subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento(...)” .



As redes, rasgadas, pelo trabalho árduo, incessante e sem recompensas são tocadas pelas mãos deste novo homem e voltam a fornecer frutos. Frutos diferentes,  certos,  para uma procura de vida inteira. Peregrino, cansado da luta, deixa-se entregar, pela primeira vez, e do desespero retirou um rasgo de esperança, o que fez toda a diferença. As cores escolhidas pelo poeta foram o vermelho apaixonado e o prateado. O ardor da angústia é aliviado pela doçura da prata brilhante.

         Wilde elucidava a força da mudança na simbólica rede, tecida, retorcida, de forma a agüentar o peso do que fosse recolhido e as reviravoltas das ondas do mar. Assim, também, queria o texto. Forte para abarcar toda a dor silenciosa de muitos e, mesmo, criticado, com buracos, ainda pronto para fazer ‘falar’ da inebriante alegria à almas torturadas. Observamos como o sentido de beleza já se destacava no jovem estudante. Inegável a participação na arquitetura do poema das idéias ruskianas. Wilde começa por associar um sensível posicionamento social a idéia de restauração que só a beleza poderia proporcionar. Do trabalho das mãos visto como arte, e não apenas como meio de subsistência, frutos fluiriam. A condição de artífice seria abraçada de tal forma que o resultado só poderia ser a alegria.

         O poema é início do pensamento de que “não há nada que a arte não possa expressar(...)posso agora recriar vida de um modo que antes estava oculto. Uma forma sonhada em dias de meditação.” (WILDE, 2003,p.63). O sutil convite era para que outros experimentassem o efeito revigorante das águas e vissem no trabalho a manifestação artística que era. E ainda, que se vissem como obras em construção constante, sempre necessitadas de um passo a mais, passo corajoso em direção à  música encantadora da Fortuna. O que se nota muito claramente é um caráter quase instrutivo no processo de restauração do gosto pela vida. Em seus textos, não deixa de expressar a dor que precede a revelação. Tudo está em sintonia para que a sensibilidade progrida. Wilde sustentou a convicção de que percebendo a existência como arte, trabalho artístico, todo e qualquer indivíduo ‘veria’ a ‘repentina glória’. Um fulgor, então, fulmina esta natureza até aqui silenciada pelo condicionamento e este ‘desequilíbrio’ acentua o sinal de interna agitação. Seguir-se-á a calmaria – fuga da monotonia até então vivenciada – e este novo olhar – desmedido – se dintinguiria agora, estonteador.

         A simplicidade do poema não surpreende. Para Wilde, a passagem pelo entendimento da importância da arte na vida era de uma naturalidade impressionante, porque já inerente ao indivíduo. As regras impostas para a vida distinguiram bem as periferias e qualquer tentativa de ultrapassá-la só resultaria em tropeço. O olhar do artista, porém, divisa o susto e de mãos dadas com a musa, seu remédio e repouso, rompe a medida do círculo e como quem joga uma pedrinha nas águas para provocar um infinito de ondas, multiplica este mesmo círculo em outros, largos, inundando seu mundo de cores impensadas.

Lembramos Nietzsche que diz da necessidade de afastar-nos dos pormenores e obrigar o olhar a acrescentar outros para que a visão seja mais nítida. Assim fez o poeta, esquecendo-se dos rasgos da rede e permitindo que ela lhe abrisse a vita nuova, o desmedido deleite que, nascido da dor, fala de assalto ao coração. A vontade de soltar-se das algemas e propor um  modo singular de encarar a vida acompanhou o jovem Wilde em todos os momentos. Não haveria ‘tempo’ para hesitação; a apreciação do plural que redigia o mundo tinha que ser derramada por uma escrita caracterizada pela sinuosidade. Esta linguagem angular, incômoda – porque admitia a dor – paradoxalmente exaltaria a aparência como se tudo falasse de uma planície. Esta face de avesso é aqui provocada pelo jovem poeta. As mãos não precisariam agora abandonar as redes ou delas depender. Chegara o momento de alcançar as atitudes sonhadas com a rapidez de um relâmpago . A partir de novas ‘maquinações’ esta vida outra se impregnaria de sentidos que voariam do ordinário para o ‘impossível’.

Vita nuova é esboço, primeira linha, ponto de interrogação que já enuncia exclamação, pressão que se quer maturada pela espera, luta com as palavras, garantia de fracasso do bom-senso. Poema curto e cheio de fôlego, suposta versão final para o início de percurso, trabalho literário que queria primeiro devorar para ser alegremente devorado, afinal.

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