na meia-noite
do coração em A balada da prisão de Reading.
(texto adaptado de um capítulo de minha tese)
“(...)Pois quem vive mais de uma vida deve
Morrer também mais de uma morte.” .
O
som metálico de correntes é a música incidental que embala o poema publicado em
1898 – e que não parou desde então de ser reimpresso e traduzido na maioria das
línguas do mundo. Obra prima,
universalmente admirada, com três cores predominantes: branco, vermelho e
cinza, que acompanham os últimos dias de condenados à forca. Foi iniciado no
chalé de Bourgeat em Berneval, França, em 1897, após sua saída da prisão. De
todos os poemas por ele confeccionados, mostra-se o mais comovente, o mais
carregado de experiência e de sentimento humanos. Em carta inédita de 19 de
julho, declara seu propósito:
“La poésie est um art difficile, mais j’aime la plus grande
part de
ce que j’en ai fait jusqu’ici.” .
O
compasso das palavras faz com que acompanhemos o prisioneiro-narrador e Wilde no banho de sol, nas refeições, no árduo
trabalho, na solidão de mil e uma noites sem contos, sem letras, tomadas, por
vezes, de fantásticas e sobrenaturais experiências. Os dois corpos agora são um. Diante do
espelho, os rostos podem parecer diferentes, mas a dor os iguala; dobra-se sobre
si mesmo e o embalo que conseguiu imprimir, angustia. O cumprimento da sentença
poria fim às inúmeras ‘mortes’ enfrentadas a cada dia: viveu mais de uma vida,
então “deve morrer também mais de uma morte.” (WILDE, 2003,p. 978). Os versos
de um condenado cuja perturbação está no fato de que: “(...)igual a um ano é
cada dia, ano de dias infindáveis.” (WILDE, 2003,p. 982). A rima, produz neste
ambiente um forte eco, “que no mais fundo do vale das Musas cria sua própria
voz e a ela responde; a rima, que em mãos de um verdadeiro artista é não
somente um elemento material de beleza métrica, mas um elemento espiritual de
pensamento e de paixão, porque desperta novos estados da alma, dá lugar a um
ressurgimento de idéias e abre, com sua doçura e com a sugestão de sonoridade,
portas de ouro que a própria imaginação não conseguiu abrir(...)” (WILDE, 2003,p.1114).
O chamado da Balada não segue o apelo das baladas tradicionais de rua; nela, a
voz de Wilde é angustiada e determinante para que o poema fosse recebido com
elogios.
O esteta, prisioneiro
C3.3, constata, inversamente ao bardo Shakespeare, que os homens matam a quem amam (Bassanio
pergunta a Shylock: ‘Os homens matam aquilo que não amam?’)e matou-se, ao cair
nas teias de uma justiça que desprezava, para renascer da lama e do lodo. Um
dos prisioneiros do poema matou a mulher amada e morreria – não que esse fosse
o destino de todos os criminosos no mundo, mas certamente o seu ( “já não usava
a túnica vermelha/ Pois sangue e vinho são vermelhos;/ E sangue e vinho havia
em suas mãos/ Quando co’a morta o encontraram,/ A pobre mulher morta a quem
amava/ E assassinara no seu leito(...)./Uns matam seu amor, quando são jovens,
Outros quando velhos estão(...)Uns matam a chorar, com muitas lágrimas, Outros
sem mesmo suspirar../.Mas nem todos hão de morrer(...)”- WILDE, 2003,p.
969/970) .
No mesmo ano de 1898,
após sua liberação, escreve ao diretor do Daily Chronicle “na qualidade de
homem que conhece a vida em uma prisão inglesa por experiência pessoal(...)” (WILDE,2003,p.1446)
sobre as condições e possíveis reformas no sistema presidiário, pois, uma das
coisas mais trágicas da vida na prisão é petrificar o coração humano. Os sentimentos e o afeto
natural, como todos os demais, necessitam nutrir-se de algo, porque morrem
facilmente de inanição...” (WILDE, 2003,p.1449). Assim, o condenado narrador da Balada, sucumbe ao irresistível desejo de
morrer diante da aterradora solidão, pois “(...) nunca se aproxima voz humana/
Para dizer meiga palavra;/ Os olhos que da porta nos vigiam/ São duros e sem
compaixão(...)” (WILDE, 2003,p.983). Esperava ansioso o derradeiro véu.
Haveria, assim, paz? Não sabia. O desespero interior que o corroera por dentro
só deixara brecha para esperança na morte: “A água salobra que bebemos lenta/
Com lodo, escorre, repugnante;/ E o amargo pão que pesam em balanças/ Está cheio
de cal e gesso/ E de olhar desvairado insone vaga/ O Sono o Tempo a implorar.”
(WILDE, 2003,p.983). Indiferente a tudo a seu redor – assim aprendera com os
anos de confinamento : “E assim enferrujamos a corrente/ Da Vida, sós e
degradados;/ Alguns praguejam, outros homens choram,/ E outros nem um gemido
dão(...)” (WILDE, 2003,p.983) – aguarda contrito “as mãos sagradas que levaram/
O Bom Ladrão ao Paraíso(...)” (WILDE, 2003,p.984). O narrador está entregue a
profunda desilusão, de onde se pergunta insistentemente se poderá renascer em outra vida. Ele e seus
companheiros, porém, “Esquecidos de que grande ou pequeno/ Fora o mal por nós
praticado, olhávamos com triste olhar de espanto/ O homem à forca condenado/ E
era estranho que o véssemos passar/ Alegre e leve a caminhar /E era estranho
que o véssemos olhando/ Tão ansioso a luz do dia,/ E era estranho pensar que
ele tivvesse /Tamanha dívida a pagar.” (WILDE, 2003,p.972). O condenado, diferentemente dos outros – até
do narrador- abraçara o destino com estranha alegria; superara o sofrimento do
erro e sentia ser a morte a libertação dele que matara a quem amara. O impacto
deste comportamento do companheiro foi tão grande que tem, certa noite – que
podia ser qualquer uma ou todas - uma visão estarrecedora : a dança de
criaturas imaginadas que, moviam-se loucamente e pareciam mais vivas e reais
que ele – de corpo e alma agrilhoados e, aqui, o efeito hipnótico da dança – marcadamente
assustadora e macabra – “(...)E rápidos passavam, deslizavam,/ Como na névoa os
viajantes; /Imitavam a lua numa dança/ De giro e curvas delicados,/ E com passo
solene e graça vil /Ao sabá chegavam as almas. /Passar vimos com careta e
momos,/ Quais frágeis sombras de mãos dadas,/ Em tropel fantasmal rodopiando/
Dançaram a sarabanda:/ Os danados grotescos como o vento/ Na areia traçam
arabescos!/ Com piruetas de marionetes/ Em pontas de pé saltitavam;/ Mas as
plantas do Medo retiniam/ Naquela horrenda mascarada/ E cantavam bem alto e
longamente(...)” (WILDE, 2003,p.976). O texto, portanto, guarda o elemento de
sedução da morte tão peculiar nos decadentistas. A idéia, no entanto, fica
ainda mais significativa quando, adiante, descrevendo o dia de trabalho, tece
uma comparação: “A girar pelo pátio, lentamente,/ Éramos loucos em parada!(...)E
a cabeça rapada e pés de chumbo/ Formam alegre mascarada./ Cordas alcatroadas
esfiávamos/ Com unhas roídas a sangrar;/ Esfregávamos porta, co chão
limpávamos, /Púnhamos grades a luzir; /Aos grupos, o soalho ensaboávamos,/
Chocando baldes com barulho(...)” (WILDE, 2003,p.974). Wilde convida mais uma
vez para essa manifestação artística, recurso para que sentimentos sejam
expostos. Desta vez, não marcada pela sedução que pode levar à morte, como em
Salomé, mas pela morbidez, como se o personagem experimentasse o pesadelo anterior
à fatídica visita da morte.
Enfim, este serão lúgubre chega ao fim,
o galo canta, as formas tortuosas se recolhem nos recantos das celas,
deslizarão como fantasmas. Marionetes conduzirão o hediondo mascarado e
cantarão para despertar o condenado. Enfim a sombra das barras se perfila sobre
o muro caiado; o silêncio reina; o hálito gelado da Morte enche a prisão. Não
há ofício nesse dia. Os detentos permanecem fechados até o meio-dia. Aí então,
os guardas com suas chaves abririam cada cela, os prisioneiros desceriam
pesadamente a escada de ferro. O passeio os faria notar a cal no sapato dos
guardas: o trabalho estava feito, a horrível tarefa cumprida. Na prisão de
Reading ficou o cadáver de um miserável devorado pela cal. Este túmulo de
infâmia não tem nome.
A perfeição da forma
do poema se junta às emoções sugeridas pela vida na prisão - o pavor, a
piedade, o desespero, a indignação – ali desenvolvidas com uma simplicidade
trágica.
Wilde,
condenado como o outro a morte do banimento, das profundezas de sua dor,
desejou ainda alguns passos, algumas doces palavras ainda. Os duplos se
encontram na memória do esteta. Dois condenados, o mesmo temor, a mesma
humilhação, a mesma escuridão - diferentes? Um dia se cruzam: “(...)não na
noite santa/ Mas foi no dia, que vergonha(...)” (WILDE, 2003,p.973); havia
morrido o companheiro e “(...)Um novo muro da prisão nos circundava/ A nós dois
míseros proscritos; O mundo nos havia repelido(...)” (WILDE, 2003,p.973); o
outro, porém, encontrara a paz da morte.
Ao prisioneiro da Balada “de vermelho o
homem que lê a Lei /Deu-lhe, de vida, três semanas,/ Só três semanas para lhe
curar/ A alma da luta de sua alma,/ E limpar de qualquer mancha de sangue/ A
mão que a faca segurava.” (WILDE, 2003,p.984). A Wilde foram dados cerca de três
anos e, num colóquio nomeado Reunião em
Paris, ciclicamente conclui: “Por
muito que nos esforcemos, nunca chegaremos a alcançar, por trás das
aparências das coisas, a sua realidade. E a razão terrível de tudo isto talvez
seja a seguinte: que não existe realidade alguma nas coisas, se são separadas
de sua aparência.” (WILDE, 2003,p.1453).Se assim não fosse,
como entender um condenado tão surpreendentemente feliz com seu destino,
contemplando “(...) com tão embevecido olhar, Aquela pequenina tenda azul/ Que
os presos chamam de firmamento...” (WILDE, 2003,p.969)(...)” “ E cada nuvem
errante, que arrastava/ No ar seus desmanchados velos. /As mãos não retorcia
como fazem /Aqueles néscios que pretendem,/ Na caverna do negro Desespero/ Erguer
a Esperança enganosa,/ O sol ficava a contemplar, apenas,/ Sorvendo a brisa da
manhã.” (WILDE, 2003,p.971). A tristeza da reclusão transforma-se na alegria do
fim.
Richard Aldington em The Portable Oscar Wilde cita as
seguintes palavras ditas por Wilde a André Gide acerca da leitura de livros na
prisão:
“I thought, at first, that what would please me most would
be Greek
literature, so I asked for Sophocles, but I could not get a
relish for it. Then I thought of the Fathers of the Church, but I found them
equally uninteresting. And suddenly I thought of Dante. Oh! Dante. I read Dante every day, in Italian, and all through, but
neither the Purgatorio nor the Paradiso seemed written for me. It was
his Inferno above all that I read;
how could I help liking it? Cannot you guess? Hell, we were in it – Hell, that
was prison.” .
Wilde foi libertado em maio de 1897 e
diria que se tivesse sido libertado um pouco antes teria deixado o lugar
sentindo por ele e seus funcionários um ódio amargo que teria envenenado sua
vida. Agora relembra as grandes bondades que quase todos tiveram por ele, no
último ano (o diretor havia sido trocado e fora permitido ao esteta a leitura
de jornais e uma alimentação mais diferenciada).
O prisioneiro C3.3
foi a máscara de ferro que mudou sua fisionomia, fez a cabeça tombar, mas
redobrou o amor à vida. Desse conflito chegou à harmonia da luz e da treva; ao
se colocar meditativamente acima das consideráveis conseqüências da dor, gerou
mais uma vez a obra de arte. Terminado o poema, Ross tentou que uma grande
editora aceitasse publicá-lo, mas só conseguiu com a livraria-alfarrabista
Smithers, especialista em livros de venda clandestina. Diz Wilde a Ross, em carta:
“(...)C’est une sortr de choca troce pour moi,
de constater qu’il
s’élève une telle
barrière entre moi et lê public. Il fault que j’examine à nouveau ma situation,
car je ne puis continuer à vivre ici sur lê pied actuel, bien que je sache que
changer as vie est une chose vaine :on tourne et tourne simplement dans le
cercle de sa propre personnalité.” .
Em 13 de fevereiro, é publicada a primeira edição
composta de 30 exemplares ao preço de um guinéu em papel Japão e de 800
exemplares sobre papel Holanda vendidos por meia-coroa.
Os 2000 exemplares da sétima edição
impressos em 23 de julho de 1899 trazem na capa sob o número C3.3 o nome de
Oscar Wilde entre parênteses. Em seguida, Leonard Smithers vai à falência. No
entanto, continua a imprimir, clandestinamente, edições da Balada – mesmo após
a morte de Wilde.
Em 1913, uma importante edição em língua francesa foi
precedida de um relato histórico acerca das circunstâncias que permearam a
composição e publicação do poema em língua francesa na Coleção Autores estrangeiros
de “Mercure de France”. O texto em inglês foi colocado ao lado da tradução no
volume à venda. A principal razão seria oferecer um número de páginas razoável
que justificasse o alto preço, o que preocupou Smithers, pela concorrência. A grande novidade foi ser ilustrada – o
artista deveria interpretar a expressão tragicamente simbólica do destino
humano, este canto de dor vindo das profundezas da pior miséria - e Gabriel
Daragnés foi o escolhido. Wilde havia conhecido as alegrias e o orgulho do
sucesso, o futuro lhe ofertara a miragem da celebridade, das honras e da glória,
mas chegou à imortalidade por uma estrada imprevista. Amante do desenho, Wilde
imaginara a composição, o formato, a encadernação e fazia disso um jogo no qual
os recursos de seu gosto delicado e de sua faustosa imaginação eram infinitos.
O esteta sabia que seu poema não era uma obra de circunstância, mas inspirado
por um suplício físico e moral de dois anos; por isso, estava destinado a
co-mover tantos quantos o lessem. Conta D-Dravray, o tradutor francês, da
relutância de Wilde em transpor o poema para esta língua. Ele sentia algum
embaraço para justificar sua recusa, tentando dissimular com um sorriso
contido, uma faísca no olhar; parecia não entender que D-Davray pensava numa
versão em prosa. Entendida a intenção, disse que o mérito do poema residia em
grande parte na sua forma e sem a música do verso não restaria nada. Começou
por desafiá-lo a traduzir com perfeição e esmero passagens de Keats, Racine,
Shakespeare, Coleridge, Shelley e William Morris, torturando a memória do tradutor. Continua D-Davray que Wilde
parecia escutá-lo com um ar ao mesmo tempo divertido e surpreso. O último
argumento para convencer Wilde foi fazê-lo observar que os próprios poetas ao
traduzirem poetas, haviam recorrido à prosa, por exemplo, Mallarmé com sua
versão do Corvo de Allan Poe.
Sentiram a necessidade de escapar aos entraves e às restrições da métrica. E
termina dizendo que o próprio Wilde teve a experiência, já que sua Salomé é um poema em prosa. Gargalhando,
o esteta se dá por vencido e ambos passam a trabalhar na primeira versão,
pronta em poucos dias, com cada palavra pensada, cada frase lida em voz alta,
relida, silabada, com todas as entonações possíveis. Os detalhes sobre a prisão
desconhecidos pelo tradutor eram explicados com toda boa vontade por Wilde, que
reconhecia o esforço de D-Davray, mas repetia que faltava a ele ter estado em
uma prisão, e inglesa! Até lá, não possuiria uma versão completa e a tradução
estaria imperfeita. E sobre isto, certo dia declara num tom solene estar tudo
resolvido para que D-Davray passasse uma temporada em uma cela na prisão de
Reading, por Wilde alugada. O tradutor estremece e diverte o esteta. A partir
da jocosa sugestão passa a se mostrar indulgente e bem-humorado. D-Davray
termina o relato desculpando-se por entrar em cena, mas a intenção foi evocar a
luminosa e inesquecível figura do poeta. É preciso ler, reler e descobrir novas
maneiras de admirar este raro exemplo de harmonia entre o artista e o poeta
. Com a Balada, deixa de ser o
Sirius – estrela mais brilhante do céu,
da constelação do Grande Cão – da comédia irônica, atitude ensaiada em De Profundis (ainda escrita no cárcere).
Acolhe a tragédia com mais veemência.
A Balada é fruto do martírio; visa a
eternidade. E verdadeiramente a atingiu.
De quem é a tradução dos trechos citados nete (belíssimo) artigo sobre "A Balada da Prisão de Reading"? Tenho trechos das traduções de Gondim da Fonseca e de Oscar Mendes e não consegui identificar se é de algum deles. Existem ainda as traduções de Elysio de Carvalho e da dupla Julia Tettamanny e Maria Angela Aguiar que desconheço. Certamente não é de Vizioli que usa outro metro...
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