(texto adaptado do publicado pela Revista Garrafa, da Faculdade de Letras da UFRJ)
Por Stella Maria Ferreira
As linhas escarlates e serpentinas que se seguem deslizam pelo papel
para destacar o traçado de palavras que comporta sinuosidades
desconcertantes de contraditória maestria. Este é, de fato, um elogio dirigido
ao leitor atento à música das letras, cujos passos rejeitem a monotonia; leitor
que se abandona “com toda essa alegria serena e segura que a gente goza
somente quando captou algo que os séculos não podem enfraquecer” (WILDE,
2003, p.1260); leitor para quem a vida real “é com frequência a que ele não
vive e podem ser tecidas belas poesias como se fossem ricos fios de
brilhantes sedas em múltiplos desenhos, em numerosos modelos,
maravilhosos e diferentes de todos.”(WILDE, 2003, p.1260); leitor que ama a
obra de arte pelo que ela é, fatalmente incompreensível.
Em 30 de novembro de 1900 o irlandês Oscar Wilde morreu. Nasce neste
instante o texto, alimentado por ininterruptos enigmas, que ansiava por colimar
mentes adormecidas. Texto inteiramente dedicado a este leitor que, de posse
do segredo do prazer duradouro, “abandonará sem pesar muitas coisas que
em outro tempo tinham sido preciosas para ele.” (WILDE, 2003, p.1261).A
admiração por esta escrita peregrina de Wilde – montra de ironia, perversão e
ternura – se revela na pura e inusitada consagração de um artista à Arte.
Na escolha das cores, na imobilidade das personagens, nos provocantes
epigramas, na crítica ferina, na tristeza contida, na incontestável alegria, o
amante do paradoxo aceitou da existência o lado luminoso sem renegar o
sombrio. A chave do labirinto saltou-lhe das mãos e a Arte, sua musa e guia,
concedeu-lhe uma eterna e impressionante capacidade de sonhar.
Desconsiderando tempo e espaço – numa repulsa às glórias da ação -
apostou no ócio como facilitador do exercício do pensamento que procura
trazer de volta à individualidade o seu lugar. A veemente temática do Belo,
no reconhecimento das instâncias cotidianas, libertaria a expressão.
Sob a máscara da excelência da produção ficava cada vez mais retida a
identidade criadora. A consciência, impossibilitada de fixar seu domínio, se
veria convidada ao repouso da incerteza. A leitura outra para este corpo
comunicaria o incognoscível.Concentrado em si mesmo, percebeu-se em luta
inevitável com o ‘mundo real’. A tranquilidade, porém, foi sua marca, já que
garantira a completitude de si ao decidir-se pela construção de um mundo
poético, multiforme, fruto da improvisação, com a superioridade absoluta do
inconsciente. Recorrendo à melodia interior, banhada de mistério, opera uma
transformação radical questionando toda solidez. O fixo deveria ser usurpado;
a solução residia na aparência. Lembra-nos Foucault que “o saber não é feito
para compreender; ele é feito para cortar”.
Aos olhos imaginativos de Wilde pululavam diversas máscaras que
objetivariam um encontro com os outros ‘eus’. Seus ‘eus’ e de tantos quantos
se arriscassem no mergulho. Ocultando o rosto por meio deste artifício,
poderiam ser reveladas facetas da personalidade. A superficialidade
promoveria profundas e marcantes mudanças de comportamento para aqueles
que se quisessem livres dos grilhões de uma vida óbvia. Para uma época de
‘certezas’, só a opção pelo obscuro, pelo disforme, levaria os sentidos ao
completo exercício. Visão, olfato, audição e tato, todos a serviço da Arte. E ela,
agradecida, possibilitaria que aromas fossem vistos, sons fossem tocados e
cores exalassem perfumes exóticos num louco e vertiginoso bailado.
Este discurso ‘alternativo’ tornaria a percepção mais extensa e intensa a
partir da exaltação do efêmero. Oscar Wilde re-traduziu-se e foi banido da vida
ordinária. Buscou na auto-superação a grandeza possível do humano e cada
porção de seu organismo formou o retrato de uma vida que se sabia desde
sempre artística. A rebeldia deste corpo marcado pela estranheza acompanhou
e executou o destino de cada personagem de sua vasta obra confirmando o
princípio de Beleza “pelo qual as sombras inconstantes de sua existência são
captadas no momento mais fugaz e fixadas perduravelmente.” (WILDE, 2003,
p.1261). A extraordinária simplicidade levaria olhos míopes à cegueira,
enquanto ele se dirigia a passos largos em direção ao Sol, tal qual o mitológico
Ícaro.
Ignorando o tempo da natureza, irrequieto, buscou vivenciar experiências
de séculos anteriores – exatamente como seu Dorian Gray define a ‘ação’ do
anti-herói Des Esseintes.Para tanto, olhou tudo e a ele se revelaram
diferentes mundos, os que podia ver e os que uma memória encantada
desnudava. Se aos olhos até então só era permitido ver o que estavam
treinados a ver, Wilde admitiu plena atuação das forças imaginativas. Os
espaços visitados perderam suas fronteiras geográficas para, unidos, formarem
o palco ideal para um super-artista, um artista de superação de limites. O efeito
hipnótico de sua escrita permite ao leitor caminhar por entre o luxo e o
escombro, o digno e o ignóbil, a evidência dos salões e o mistério da rua. Cada
pensamento expresso apresentava um capítulo sempre no tempo-presente. Da
glória dos teatros passando pela meia-noite do coração na Prisão de Reading
até o quase ostracismo dos últimos anos entendeu que precisava manter-se
atento para inventar-se constantemente – o que lhe permitiria estar no local
para onde queria transportar seu texto. Escalou o zênite de cada dia entre a
aurora e a noite numa escrita de mecanismos cujo propósito era o infinito.
Neste abandono às impressões, chegou ao amor absoluto pela arte, pois,
“quem não necessita da arte em tudo, dela não necessita para nada” (WILDE,
2003, p.1019), Daí ter contagiado – e ainda contagiar – inúmeros leitores em
todo o mundo. Ao longo dos anos, elegeu discípulos que, como ele, transitam
com a imaginação por lugares maravilhosos – reais, porque literários,
garantindo o eterno retorno deste corpo-viajante.
Oscar Wilde existe agora em uma inacreditável gama de imagens, traços,
pedaços de identificações desvelada a cada leitura; ele continua a convocar o
leitor para ser não o que os outros são, mas tudo o que pode ser. Esta foi a
dedicatória esculpida por indomável artista para o leitor no texto definitivo que
foi sua vida.
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Linda dedicatória, entendendo-se até mesmo como uma homenagem a Oscar Wilde. Tanta minuciosidade de detalhes só mesmo uma pessoa conhecedora de toda a obra deste grande escritor poderia fazer, através de uma linguagem envolvente e emocionante.
ResponderExcluirBjs.
Elisabeth de A. Pinto
Que bom que você gostou, Elisabeth. Os textos wildianos encantam mesmo. Até a próxima teia.
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