OS contos
infantis O rouxinol e a rosa e o Gigante egoísta:
(parte de um capítulo da minha tese)
“Todos
possuímos as nossas plantações e os nossos
jardins
ocultos em nós.”.
O mestre da ironia,
herdeiro da rica tradição oral irlandesa, exercita face de pura ternura acerca
das conseqüências do moderno para a sensibilidade infantil e publica, em 1888, O
Príncipe Feliz e outros contos,
tematizando o valor do amor verdadeiro. As cinco histórias contidas no livro
elevam a pureza que as crianças têm e comove os adultos que dela se esqueceram.
Deveriam ser lidas do ponto de vista do marginalizado, do colonizado, do
desrespeitado, do carente. Desde sua publicação, estas histórias nunca deixaram
de ser atraentes ao público, talvez por apresentarem suavemente idéias caras
aos decadentes. A influência de Pater é marcante, “as a lily will flower in
strange colours if transplanted to a soil containing phosphorus(...)”
. Uma manhã, Wilde lê para Gide um
artigo no qual um crítico o felicita por ‘saber inventar bonitos contos para
vestir melhor seus pensamentos’. Diz Wilde:
“Ils croient(...)que
tontes les pensées naissent nues...Ils ne comprennent pas que je ne peux pas
penser autrement qu’en contes. Le sculpteur ne cherche pás à traduire as pensée;
il pense em marbre, directement(...)” .
Para as duas
escolhidas, o jardim é o lugar natural e também imaginário porque torna
possíveis coisas extraordinárias. Lugar onde passeiam o
que seriam contradições no cotidiano, mas que aqui, encontram perfeita harmonia
junto a uma saudável tristeza. Este
toque também é desestabilizador em Wilde – assim como a ironia marcante de suas
comédias. Pela privação – intencional no rouxinol e reveladora no Gigante -,
chegar-se-ia a força de uma nova existência; a falta eclodindo numa positiva
presença. Os personagens em autogestação se retiram para uma luminosa
transfiguração.
A seguir a primeira delas:
Um rapaz apaixonado
deve levar uma rosa vermelha se quiser dançar na festa real com a amada. O
desespero do estudante, sem recursos em meio a um jardim sem rosas, é percebido
por um rouxinol. A admiração diante do que pensa ser o verdadeiro amor leva o
pássaro a, de roseira em roseira, tentar ajudar o jovem, sem êxito. Uma, porém,
explicou-lhe: “Minhas rosas são vermelhas(...)tão vermelhas como os pés da
pomba e mais vermelhas do que os grandes leques de coral que ondulam para lá e
para cá na caverna do Oceano. Mas o inverno gelou minhas veias e o gelo crestou
meus botões, a tempestade quebrou os galhos e não terei rosa nenhuma o ano
inteiro(...)” (WILDE, 2003,p.240); e faz uma terrível sugestão: “se queres uma
rosa vermelha...deves formá-la com música à luz do luar e tingi-la com o sangue
de teu próprio coração. Deves cantar para mim com teu peito apoiado no espinho.
Deves cantar a noite inteira para mim e o espinho te atravessará o coração e o
sangue de tua vida correrá pelas minhas veias e se converterá em sangue meu.” (WILDE,
2003,p.241). Assim fez o rouxinol – pagando preço baixo, acreditava para ver
realizado um grande amor (“Sê feliz – gritou o Rouxinol -, sê feliz; terás tua
rosa vermelha. Forma-la-ei de música à luz do luar e tingi-la-ei com o sangue
de meu próprio coração.”-WILDE, 2003, p. 241) – e deu ao rapaz a mais rubra das
rosas. A preciosa flor, no entanto, foi desprezada pela jovem. Irado, o
estudante a atira na rua, onde cai na sarjeta.
Com este enredo,
Wilde desenha no estudante o espírito da época; personifica uma frívola
multidão mergulhada na vaidade e na crueldade. Ao ouvir o doce canto de
martírio do rouxinol exclama: “tem estilo(...)Mas tem sentimento? Receio que
não. É de fato como muitos artistas: é todo estilo, sem nenhuma sinceridade.
Não se sacrificaria pelos outros. Pensa simplesmente em música e toda a gente
sabe que as artes são egoístas. Contudo, deve-se admitir que possui algumas
belas notas em sua voz. Que pena que nada signifiquem ou produzam algum bem
prático!” (WILDE, 2003,p. 242). A simbólica expressão de amor na ‘confecção’ de
uma rosa traduz-se em inutilidade aos olhos da exigida praticidade.A nobreza
que esta flor inspira dá um matiz especial ao martírio do rouxinol. Este é
chamado a partilhar com a natureza da criação, não de uma viçosa rosa apenas,
mas da mais vermelha das rosas, imagem de amor eterno.Ao lançar uma derradeira
onda de música, “(...)a branca Lua ouviu-a e, esquecendo a aurora, foi ficando
no céu. A rosa vermelha ouviu-o e, extasiada, estremeceu toda, abrindo as
pétalas ao frio ar da manhã. Eco conduziu o canto à sua caverna cor de púrpura
nas colinas e despertou de seus sonhos os pastores adormecidos. Flutuou pelos
caniços do rio que levaram a mensagem ao mar.” (WILDE, 2003,p.243). A morte
gerara nova vida.Para a rosa que exercitou a escuta, o canto do rouxinol teve
ação transformadora. E a loucura aconteceu. O mesmo não ocorre com o estudante,
que se privou ‘conscientemente’ da ‘insensatez’.
O rouxinol revelador do verdadeiro amor
é o mesmo rouxinol de Keats em sua Ode a
um rouxinol, de 1819 (um dos poetas preferidos de Wilde ). Wilde reforça
aqui a intertextualidade, negação da idéia de irredutibilidade. O conto evoca a imagem de gênios relegados, esquecidos. Ele é
aqui o grande artista que oferta ao mundo seu talento, sem medida, sem
esperança de retorno, até o esgotamento. (Quereria Wilde apenas homenagear
mestres ou estaria prevendo – e condenando – seu possível esquecimento?).
O canto do Rouxinol
apresenta-se em três movimentos. “Cantou a princípio o nascimento do amor no
coração de um rapaz e de uma moça. E sobre o ramo mais alto da Roseira brotou
uma rosa maravilhosa(...)pálida como os pés da manhã(...)parecia o reflexo de
uma rosa num espelho de prata(...)”. O suave canto despertou a vida adormecida,
no entanto, ainda não era suficiente para gerar por completo e “o Rouxinol se
apertou mais contra o espinho e cada vez mais alto se elevou seu canto, pois
cantava o nascimento da paixão na alma de um homem e de uma donzela. E um
delicado rubor apareceu nas pétalas da rosa, como o que ruboriza as faces do
noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho não lhe havia ainda alcançado
o coração, de modo que o coração da rosa permanecia branco(...)”. Assim, chega
ao terceiro e último movimento – clímax de entrega, respiro de liberdade -: “E
o Rouxinol se apertou mais contra o espinho e o espinho tocou-lhe o coração(...)Quanto
mais acerba a dor, mais impetuoso lhe saía o canto, pois cantava o Amor
sublimizado pela Morte, ou o Amor que não morre no túmulo. E a maravilhosa rosa
começou a tornar-se vermelha, como a rosa do céu nascente. Vermelha era a coroa
de pétalas e vermelho como um rubi o coração.” (WILDE, 2003,p.242). Compositor
se transfigura em sinfonia: “-Olha! Olha – gritou a Roseira -, a rosa está
terminada agora. Mas o Rouxinol não respondeu, pois jazia morto sobre as altas
ervas(...)” (WILDE, 2003,p.243). Em O
crítico como artista, Wilde comenta sobre o encanto da música:
“A música(...)cria
para nós um passado que desconhecíamos e enche-nos do sentimento de tristezas
que estiveram ocultos às nossas próprias lágrimas(...)imagino um homem que(...)de
repente descobrisse que sua alma, sem que ele notasse, tinha passado por
terríveis experiências e conhecido alegrias espantosas ou violentos amores
românticos ou grandes renúncias”
Assim esperava que se
sentisse o leitor ao ‘escutar’ pelas linhas o canto do pássaro.
Wilde apresenta o
impossível como possível .O ciclo mais uma vez se completava. O rouxinol vivera até então como
a espera, a escuta de um sentido para a vida. Sua música fê-lo dançar
interiormente. O momento chegara; valera a pena as horas de aparente ócio
porque, agora, sua ação geraria vida nova. Seu sangue faria a rosa ‘pulsar’. A
morte pareceu prevalecer e o sacrifício ser em vão.
Ainda uma vez as
cores verde e amarelo se insinuam: a preocupada Lagartixa Verde que pergunta ao
estudante em lágrimas porque sofria com a face nas mãos e corpo sobre a relva e
a primeira roseira visitada pelo pássaro, que cresce em redor do relógio do
sol. Além do branco que se torna vermelho, as duas são curiosamente as únicas
mencionadas. Toda a ambiência concordava para uma transformação deste real pela
força do único sentimento com asas cor de chamas, corpo cor de fogo, lábios
doces como o mel e hálito como incenso. O Rouxinol só balbuciou um pedido ao
estudante: “Tudo quanto de te peço em troca é que sejas um amante verdadeiro,
pois o Amor é mais sábio que a Filosofia, ainda que esta o seja, e mais forte
do que o Poder, ainda que este o seja(...).” (WILDE, 2003,p.241). Só poderia o
pássaro, no entanto, fazer-se ouvir por um igual. E o estudante estava longe da
escuta desejada. Aqui, Wilde critica a Filosofia que freara o desenvolvimento
mais completo do indivíduo, sem contudo negar-lhe importante papel, se voltada
para o objetivo primeiro. Daí ser companheira ideal para o estudante no final
do conto: “Que estúpido é o amor(...)Na verdade, não é nada prático e, como
nesta época ser prático é tudo, voltarei á Filosofia(...)” (WILDE, 2003,p.241).
Com uma lógica emocional interna,
parece-nos ouvir a fábula cantada e contada pela voz ‘dourada’ de Wilde entre
amigos ou em casa, cercado pelos filhos.
Acreditamos que a dor
do Rouxinol é a dor do espírito grego que, reconhecendo a profundidade dos
defeitos da humanidade, optou pela alegria interna, imperturbável. Esta
alegria de ser outro e, por isso, ele mesmo, realizando seu pleno destino, moveu
o pássaro. O sentimento, no entanto, parece, à primeira vista, muito contido;
uma leitura mais atenta, porém, faz com que transborde pelas linhas. O canto é,
assim, de pura festa. Festa em culto a beleza irrevogável da vida.
Em O gigante egoísta, o castelo do
protagonista ergue-se em meio a um grande e belo jardim, com “relva macia e
verde”.É comum na
Inglaterra os grandes jardins das propriedades serem abertos à visitação.
Neste, porém, o gigante controlador classificava de intrusos as crianças que
viam no lugar espaço para recreação. A expressão da autoridade cerceando a
liberdade criativa de uma juventude pródiga que reconhecia no aconchego,
vitalidade e paz exuberante do jardim, fonte para novas experiências. Castigado
por seu egoísmo, o Gigante vive em seu terreno um eterno inverno, sem cor, sem
a música das aves. No dia em que viu pela janela que flores e pássaros voltaram
a povoar seu jardim entendeu que na presença das crianças estava a renovação
das coisas, a chance de fazer desse instante algo duradouro . O desejo de proibir
a entrada em seu ‘mundo’ garantiria que o espaço não seria maculado por aqueles
que, com certeza, o rejeitavam por sua aparência física. A percepção do Gigante
de que só viveria a primavera se compartilhasse é lição para um todo vindo com
a modernidade que, ao massificar e condenar a pausa como improdutiva, reprimia
a troca de experiências, mesmo correndo o risco de ir ao encontro de intenso
sofrimento. O texto parece ressaltar a contradição no fato da figura grotesca
do Gigante, avesso a qualquer tipo de interação, viver num jardim – imagem do
mundo com tudo que o cerca e o faz lugar de todos, ser ‘ensinado’ por uma
criança – símbolo de inocência e pureza
e propositalmente de lado ( porque, impossibilitada de subir em uma das árvores)
– a ter acesso ao valor da amizade, fazendo
do texto a alegria de uma atmosfera mais leve e clara.
A figura do Gigante
possivelmente suscitava temor ou repulsa; esse ‘diferente’ não poderia
encontrar simpatia e, conseqüentemente,
retribuía com atitude sempre hostil. Para a criança que se permitiu um
olhar de perspectiva diversa, um par foi descoberto. A simples mensagem, para
Wilde, essencial, era a de que, com os decadentistas, a sombra, o sombrio –
lição da pintura – incrementava as
gradações de luz. O segredo do primor de uma obra poderia estar no manejo do
obscuro. Encontrando positividade no negativo, o artista decadente ressalta que
o que perece também dá vida à arte; a relação com ignóbil preenche as lacunas
que até então se percebia na vida cotidiana. A falta do medo da morte e da
destruição fazia com que ao artista fosse visto como mórbido. Muito pelo
contrário, mais do que qualquer um abraçava a vida no que tinha de suave e
trágico. Gigantes desprezados num mundo de idéias conservadores, os decadentes
fizeram questão de enfeitar ocultamente suas personagens, repletos de vícios,
com as doces flores do girassol e do lírio. A luminosidade e a suavidade
fizeram contraste tal que aos olhos pareciam cegar. Pronta a primeira
manifestação.
A personagem perfeita
para a expressão seria a criança: inocente dos pré-conceitos, pronta para
revelações, brava diante do perigo, olhos postos no coração do mundo. Com essa
bela criatura, a fera de enormes proporções se aceita, deixa de se proteger e
abraça pela primeira vez, com ardor, o sofrimento .A criança já contempla o
mundo como fenômeno estético. Este menino, em particular, articula forma de
trazer o Gigante para a harmonia que esta visão gerava constantemente. O olhar
deste menino não foi para o sombrio, o pessimista, o odioso e sim, para a carga
luminosa que acercava a obscuridade que a ‘realidade’ teimava por privilegiar.
Após a alegria da
amizade, de participar deste sublime espetáculo, o Gigante se acha pronto para
‘deixar o mundo’ e retornar ao jardim – o primevo.
Paradoxal pareceria ao leitor comum o fato de, ao se abrir, receber o abraço da
morte; mas o leitor mascarado vê, mais uma vez, renascimento. A beleza dinâmica
brota do ‘feio’.
Instalando-se
em uma pequena localidade próxima a Paris, Berneval, após a liberação da
prisão, torna-se querido por todos os vizinhos . Uma vez decide fazer uma festa para as
crianças, aproveitando a ocasião do Jubileu de diamante da Rainha Vitória. Abre as portas de
seu pequeno jardim e com uma grande mesa repleta de guloseimas recebe os
pequeninos.O gigante da letra, escreve num gesto o que lhe fora impedido por três
anos e, re-afirma sua negativa em descer do palco e encena atrás das cortinas.
Este era o único mundo em que poderia sobreviver – o da re-edição de suas
ficções.
Ao Gigante, após a
entrada no jogo com a criança, não caberiam mais sentimentos de rancor de sua
‘velha’ existência. A dor está lá, a
ferida também, mas a alegria somada a seu espírito faz com que só a cor e a
beleza sejam ressaltadas. Viu-se no Gigante – ou vice-versa. Disse certa vez a
amigos que a experiência é uma questão de instinto acerca da vida; pois bem,
levado por este instinto seu Gigante ‘ morre’ para seu jardim quando a amada
criança se vai para renascer. A generosidade do olhar daquela criança fez com
que passasse a viver num mundo diferente. Wilde se adianta, por já ter
saboreado diversas vezes, principalmente na prisão, a morte, e desempenha sua
nova vida, “rápido demais tu corrias / Só agora que tu cansaste / te alcança a
tua alegria.”39.
Diz Alvin Redman em The
wit and humor of Oscar Wilde :
“Wilde surveyed life through benign, if at times complacent
eyes, and he never lost his feelings of benevolence towards the world in general. Friendliness was one
of the main characteristics of Wilde’s personality and his friends were many
and varied(...)”.
Para o escritor, A
desmesura trouxe liberdade, serenidade, harmonia. A arte mais uma vez agiu como
tônico, estimulando uma memória perdida e longínqua que mais uma vez o define
como artista, o que garantiu muitas amizades.
Como sempre, Stella, posso observar o caminho percorrido por Wilde na sua escrita clara, inebriante e contagiante, que nos fixa nesta teia que é a Literutura.
ResponderExcluirÉ fácil enredar-se nos textos wildianos - sempre cheios de complexa simplicidade. Obrigada pela visita e pelo gentil comentário. Até.
ExcluirAi, a tristeza... Ela me invadiu ao terminar a leitura do texto "O rouxinol e a rosa". Como podemos fazer com que sentimento tão sublime como o amor possa ser substituído e desvalorizado com tanta rapidez... Stella, sua interpretação me faz ver muito além das palavras inseridas no texto, obrigada por essa luz! Beijos, Ana Cristina.
ResponderExcluirDe Wilde dizia-se que seus contos infantis eram para crianças grandes. 'O rouxinol e a rosa' é um de meus textos favoritos e choro oceanos toda vez que releio. Que bom você ter gostado! Obrigada pela visita.
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